Depois da conversa no jardim, nosso relacionamento passou a uma outra fase. Embora ela não tenha comentado nada sobre o livro, seu choro silencioso foi uma confirmação do quanto havia de não ficção ali.
Nos dias seguintes, ela agiu como se nada tivesse acontecido, nem as lágrimas, nem meu questionamento. Jantávamos juntas, caminhávamos com a Lelé, assistíamos filmes, mas ninguém tocava no assunto ficção ou autobiografia. Eu continuava a leitura do livro e a cada página mais me convencia de que ela vivera todas as vírgulas e os pontos daquela história.
Uma noite, ela entrou no meu quarto sem avisar e me pegou em uma discussão com a minha amiga de fora da cidade. Olhou para a tela do meu tablet e perguntou “por que esse monte de letras maiúsculas? Esqueceu o caps lock ligado?”
“Não, é um sinal da minha irritação. Aquela menina com quem converso com mais intimidade, ela quer vir me visitar. Eu disse que por enquanto não, que preciso de mais um tempo, mas ela não está querendo aceitar e começou a chorar.” Desliguei o tablet e me sentei na cama.
“Como você sabe que ela estava chorando?”
“Porque estavámos conversando por chamada de voz.”
“Talvez ela goste de você mais do que você sequer imagina. Deixa que ela venha, que mal há nisso?” Ela brincava com a pedra de cristal que sempre carregava pendurada no pescoço.
“Essa choradeira me irrita, é coisa de gente fraca.”
“Cacau, entenda uma coisa, às vezes as pessoas não choram porque são fracas, mas porque foram fortes por muito tempo. Chega uma hora que elas não aguentam mais e desabam. A estrutura se rompe e nem sempre é fácil saber o que fazer com os pedaços.”
Vi passar aquela sombra pelos olhos dela, novamente. Porém, dessa vez – não sei se por que era noite – o ponto de tristeza que ficava no fundo dos olhos não era mais apenas um ponto, ele se esparramara.
“Foi isso o que aconteceu outro dia no jardim? Você se rompeu?” Fiquei surpresa com a minha ousadia em perguntar tal coisa, mas não aguentava mais o silêncio que caiu sobre isso.
Ela se sentou ao meu lado na cama e segurou minha mão. “Foi. Eu achava que depois de tantos anos, e de ter colocado tudo no papel, eu tivesse suturado todos os cortes, desde os mais superficiais até os mais profundos, mas parece que os pontos esgarçaram um pouco. E o que me faz sentir uma tristeza imensa, Cacau, não é o abandono, é ter a certeza de que ela nunca me amou.”
Agora era eu quem segurava sua mão, levei-a até meus lábios e a beijei com o mesmo carinho com que beijava a mão da minha mãe. O que ela precisava era de aconchego.
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Estranho é o amor quando já não está foi o último livro publicado pela Elô, há oito anos. Depois dele, ela publicara apenas livros acadêmicos e contos, era o que dizia o site da editora. Um livro escrito na maturidade para um amor vivido na maturidade. Um livro que eu teria de ler mais de uma vez para entendê-lo e entendê-la, talvez devido a minha inabilidade como leitora, ou talvez por todo sentimento que o livro continha. Porém, por enquanto, eu ainda estava na minha primeira leitura, tateando a história.
Elô era professora de História Medieval, e por conta disso estava sempre viajando e participando de eventos, congressos e bancas de avaliação, o que atualmente não ocorria mais. Agora, ela até se recusava a ter orientandos, preferia apenas escrever e dar aulas, no entanto, há dez anos, a vida dela era assim, uma hora aqui outra ali. Seu livro começa exatamente com uma viagem, a protagonista é escritora e vai participar de um encontro sobre literatura.
“A cidade onde ocorreu o encontro era pequena e ficava rodeada por montanhas, ao largo dela passava um rio de pedras, e como estávamos em meados da primavera, as flores abundavam. Todo esse cenário somado ao silêncio do lugar dava-me a impressão de estar em um local que não pertencia ao nosso mundo caótico e barulhento. Talvez fosse esse o mundo ideal ou real, e não o outro em que eu vivia.
Éramos em seis escritoras convidadas para, durante um final de semana, falar sobre o feminino na literatura, a mim caberia a parte do papel da mulher no contexto histórico-literário. Eu chegara na quinta-feira, pois assim poderia descansar dois dias e fazer umas caminhadas pelas montanhas que circundavam a cidadezinha. Os organizadores do evento haviam reservado quartos para os participantes num hotel que ficava fora do centro, um local com ar de hotel fazenda.”
Vi Lelé se dirigir saltitante para a porta de entrada, provavelmente era Elô quem estava chegando. Deixei a leitura de lado e fui recebê-la. “Oi, finalmente conseguiu chegar mais cedo em casa.”
“Cacau, vou precisar viajar depois de amanhã e tenho que arrumar umas coisas antes de ir.” Me deu um beijo na testa e foi para o quarto.
Fui atrás dela e me encostei no batente da porta. “Mas viajar assim, sem aviso prévio?”
“Me deram aviso prévio, fui avisada hoje.” Sentou-se na cama e começou a desamarrar o tênis.
Quando ela me disse que não conseguira escapar e que teria que participar de uma mesa num congresso, não achei nada demais, porém quando ela me falou onde seria o congresso tive que me sentar na cadeira encostada ao lado da porta.
“Mas é o mesmo hotel do seu livro, você vai assim mesmo?”
Ela parecia confusa com a minha reação. “Eu tenho que ir, não tenho escolha. E além do mais é um hotel agradável.”
A história do livro me passava tanto desapontamento que se fosse eu nunca mais passaria perto da cidadezinha, só para que as lembranças não me atormentassem.
Ela se levantou, pegou uma toalha e foi para o banheiro, mas antes me perguntou: “Você não quer ir comigo? Posso levar um acompanhante. E o hotel aceita cachorro.”
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A cidadezinha, a primeira vista, era exatamente como ela descrevera no livro, calma, aconchegante, cheia de flores – mesmo sendo outono –, com um rio lindo e umas montanhas em volta que ao sol pareciam mais azuis do que verdes. Ao chegarmos, ela deu uma volta com o carro pelas ruelas para que eu pudesse ver mais do lugar e ao final da tarde nos dirigimos para o hotel.
Era um hotel com arquitetura retrô, muito bem arrumado e com instalações modernas. Já que a Lelé era pequena, deixaram que ela ficasse comigo no quarto.
“Cacau, vou até meu quarto tomar um banho, depois passo aqui e descemos para jantar.” Como eu sabia que o banho seria demorado, desfiz minha mala, peguei um suco no frigobar, abri meu laptop e fui ler um pouco.
“Depois que os debates do dia terminaram, eu fui até o bar do hotel para tomar um conhaque, chovia e fazia um frio desproporcional para aquela época do ano. A organização do encontro havia me convidado para jantar, porém, após ficar o dia todo ouvindo as pessoas falarem e discutirem, tudo o que eu queria era ficar sozinha um pouco.
Peguei meu copo e me sentei numa mesa. O bar, além de mim, da cantora, do pianista e demais funcionários, estava completamente vazio. Como de praxe em bares com poucos clientes, quando me viram o pianista e a cantora se puseram a postos e começaram a trabalhar. A música era boa, a voz dela das melhores, com um tom de rouquidão quando cantava Just The Way You Are.
O repertório ia de Joe Cocker a Frank Sinatra, passando por Marvin Gaye, e como o conhaque estava me esquentando, a lareira do bar deixava tudo tão confortável e a música batia nos meus ouvidos de uma maneira muito peculiar, eu fui ficando.
Até que depois do terceiro conhaque ela apareceu. Eu olhei para a porta e a vi caminhando em direção a minha mesa. Tinha pendurado no pescoço o crachá de identificação do encontro de literatura, eu a havia visto sentada na plateia, assim como vira outras pessoas. Era baixa, o cabelo mais para o curto do que para o longo e os olhos grandes e escuros. Andava com calma, medindo os passos para ter certeza aonde estava indo.
“Olá, posso me sentar?” Perguntou ao parar em frente a minha mesa.
Finalmente, você chegou até mim, foi exatamente isso o que pensei quando ela me perguntou se podia sentar. “Claro, um pouco da sua companhia será um prazer. Você está participando do encontro, não é?”
Ela sentou em silêncio, pediu um drink e cravou os olhos em mim. “Estou.” Intuí que fosse quieta, quase monossilábica, o que iria se confirmar mais tarde. Sendo assim, era melhor que eu começasse a conversa.
Durante as duas horas que ficamos conversando no bar, fiquei sabendo que ela escrevia contos, no momento estava tentando engrenar uma história mais longa, e que viera ao evento porque precisava sair de seu apartamento um pouco e conhecer gente, e nada melhor do que pessoas ligadas ao seu universo, o literário.
Entre drinks, queijos, azeitonas (que ela disse detestar) e castanhas, ela foi, aos poucos, soltando a voz e me contando do que gostava e do que não gostava, onde morava e que tinha recém-terminado o casamento com uma garota que tinha metade da idade dela.
Sentada a sua frente, fui percebendo o quanto tínhamos em comum além da literatura, mas muito além das semelhanças ela conseguia me segurar àquela cadeira e a ela como se fosse um imã atraindo minha energia. Seus olhos eram profundos como só os olhos muito escuros podem ser, e eu queria entrar neles e me abrigar. Se ela sentia o mesmo eu nunca saberei dizer, afinal o coração do outro é, e sempre será, terra estrangeira, mas naquele momento a única coisa que eu desejava era levá-la para o meu quarto.”
Deixei a leitura e fui atender o telefone que tocava na mesinha de cabeceira. “Pronto.”
“Cacau, sou eu. Vou demorar um pouco mais no banho, estou aproveitando que tem uma hidro no quarto. Você está com muita fome? Quer descer e comer sozinha?”
“Não, eu espero você. Pode ficar à vontade.” Estava tão entretida com a leitura que nem lembrei que tinha de comer algo, nem que ia jantar com a Elô. Peguei um chocolate que tinha na mochila e me sentei para continuar a ler.
“Perguntei se ela não gostaria de continuar a conversar no meu quarto, ela aceitou sem expressar nenhuma objeção.
Quando entramos, não falamos nada. Apenas nos olhamos demoradamente para nos reconhecermos, e esse momento de reconhecimento só me trouxe a certeza de que ela já existia para mim há muito tempo.
Acendi apenas as luzes que ficavam ao lado da cama. “Acenda tudo, eu quero te ver.” Ela pediu.
Sentei-me na beirada da cama, ela se aproximou e me abraçou. Senti seu corpo tremer quando a puxei para mais perto de mim, ela cheirava meu pescoço, meu cabelo e sua respiração vibrava na minha pele. Perguntei se estava tudo bem, e ela me respondeu que sim, que se sentia emocionada ao meu lado, que quando me vira no encontro sabia que meu cheiro era exatamente como o que sentia agora.
Sua mão estava úmida quando a senti entrar por dentro da minha camiseta e tocar minhas costas. Mordia meu queixo como se quisesse levar um pedaço dele com ela, e o desejo que mostrava por mim só me dava vontade de lhe dar tudo o que ela quisesse, sem restrições.
Sem deixar de me beijar e morder, tirou minha roupa e me deitou de costas na cama, disse que era assim que me queria, de costas e com as pernas abertas. Como as aparências enganam, era muito mais ativa do que parecia a primeira vista.
Ficou nua e deitou sobre mim, sentia ela se mexer pressionando a perna no meio das minhas, o que me tirou um gemido. Me olhava nos olhos, como se buscasse o lugar onde estaria guardado todo o prazer que queria arrancar de mim. A cada suspiro meu ela me pressionava mais. Quando tentei beijar seu pescoço, ela primeiro o afastou, depois se entregou e pensei que fosse gozar só com as mordidas que lhe dava.
Nossa excitação era tanta que parecíamos dois garotos de colégio com pressa, quando nos demos conta disso rimos e nos acalmamos. Empurrei sua cabeça para os meus seios e senti o corpo derreter quando ela cravou os dentes no meu bico, primeiro o direito que ela mordeu de leve e chupou com força quando eu pedi mais, depois o esquerdo que ela apertou entre os dedos e colocou dentro da boca. Sua língua brincava com ele, e eu louca de tesão empurrei sua cabeça para que ela o pegasse logo.
Todo o meu ser arquejava a cada movimento que sua boca fazia descendo pelo meu corpo. Quando senti seu rosto aconchegado no meio das minhas pernas, o calor de sua boca em mim, pensei que fosse gozar antes mesmo dela começar. Mas ela, com uma vida de experiência, soube me controlar, subiu e beijou meu umbigo, meu abdômen, até que eu pedi para me foder.
Sua boca desceu até minha buceta e começou a sugá-la como se fosse uma fruta madura, e quando ela me sentiu totalmente molhada, me penetrou, primeiro com um dedo, depois com dois. Sua mão cavalgava em mim e meu grelo crescia dentro de sua boca. A cada metida, eu sentia sua mão entrando cada vez mais fundo, ela não queria só o meu gozo, não queria só o meu sexo e o prazer daquela trepada, queria meu interior, meus segredos, meu tesão e minha alma.
Quando ela sentiu que eu ia gozar, retirou sua mão e sua boca de mim e começou a brincar com meu clitóris. Peguei sua mão e coloquei dentro de mim de novo, ela foi generosa e me fodeu com força e rapidez até sentir que eu gritava e encharcava sua mão com o meu gozo. Só deixei que saísse de dentro de mim depois que despejei minha última gota de desejo.
Eu senti o prazer subir pela minha coluna e se esparramar por todos os meu órgãos, e foi nesse momento que um fio muito sutil se formou entre nós e nos conectou, eu só não sabia ainda que para cortá-lo seria tão dolorido.”
Obrigada Thati.
Que bom que vc está gostando do texto. Além dessa narrativa longa, tenho uns contos perdidos por aqui.
Bjs.
O capítulo é de um erotismo que mobiliza todos os nossos sentidos. Apaixonante!
Estava mesmo sentindo falta de ler algo seu, estou feliz por ter encontrado aqui!