Juarez Silva correu os olhos na faca presa no cinto da calça jeans de Layse, temeroso. A faca era usada no trabalho diariamente e Layse já se habituara a andar com ela. Isto o dono do bar não sabia, por isto ficou olhando-a sem coragem de abrir a boca.
Layse permaneceu o encarando já de posse da cerveja que segurava firme em uma das mãos. Olhava-o nos olhos mostrando que não tinha medo nenhum. Como ele não respondeu, ela desceu do banco enfiando a mão no bolso da calça. Juarez deu um passo para trás cauteloso. Layse estava apenas pegando o dinheiro. Colocou uma nota de cem reais sobre o balcão avisando:
– Quando eu quiser outra cerveja eu peço para a garçonete. Obrigada!
– Espera um pouco. Tem dinheiro demais aqui. Vou te dar o troco…
– Eu sei quanto tem aí. Vai descontando do que eu pedir. Quando for embora pego o troco. Não quero que o senhor pense que não tenho dinheiro para pagar a conta. Agora eu vou lá para os fundos, mas eu vou porque eu quero! Estou indo!
Layse bebeu várias cervejas sentada em uma mesa no fundo do bar. Ficou calada e não conversou com ninguém. Vários menores entraram e saíram olhando para ela cochichando baixinho. A bronca que deu no dono do bar já estava correndo de boca em boca. A notícia chegou aos jovens que estavam bebendo na praça. Adorando o fato de alguém ter dado uma boa repreensão no dono do bar, correram para o estabelecimento para acompanhar o desfecho dos acontecimentos, afinal Layse continuava lá e não estava com boa cara.
Às duas horas da madrugada, Layse saiu dos fundos do bar aproximando do balcão. Notou como o lugar estava apinhado de jovens, diferente de quando entrou ali. Encarou Juarez meio cambaleante falando ainda ofendida pela forma como fora tratada por ele quando chegara.
– O fundo do seu bar é para os ratos morarem, não para pessoas beberem. Devia era vender a cerveja mais barata para quem senta lá. Está passando da hora de fazer uma reforma aqui, porque está tudo… Um caco, caindo aos pedaços, imundo, a situação do seu bar é deplorável… Muito decadente, é… Um lugar deprimente. Beber em um bar nestas condições não foi nada bom… Este bar é uma espelunca… Acho que não gostei, é… Não gostei mesmo. Nem sei como que o meu pai conseguiu beber aqui.
Juarez não falou um ai. Permaneceu olhando-a completamente sem ação.
Layse piscou colocando as mãos no balcão voltando a falar:
– Chega de conversa! Não vim aqui inspecionar essa taberna que o povo chama de bar, eu quero é dormir. São oito cervejas a nove reais cada, o senhor me deve um troco de vinte e oito reais. Isto se não cobrar dez por cento. O senhor cobra? Cobra dez por cento para quem senta nos fundos e conta os ratos que moram lá?
Juarez ficou vermelho respondendo apressadamente:
– Não cobro não. Aqui está o seu troco.
– Muito obrigada! Vou pensar muito bem se vou querer voltar aqui.
– Certo. Eu queria apenas explicar que peço para os menores sentarem lá nos fundos porque é proibido vender bebida alcoólica para eles. Todo mundo conhece a lei.
Layse parou virando o corpo, dando uma ligeira cambaleada. Viu todos calados olhando para ela impressionados. Ignorou todo mundo, olhando para Juarez, perguntando admirada:
– Se é proibido vender porque razão o senhor vende?
– Os jovens são em grande número e…
– Precisa do dinheiro deles, admita! O senhor é um contraventor! Um infrator! Não lembro outras definições agora, mas é isto mesmo.
– Não nego que preciso do dinheiro, mas…
– Agora a conversa mudou de rumo, não foi? Se o senhor precisa do dinheiro deles tem que tratar todos muito bem.
– Tem toda a razão…
– Eu tenho razão, sei que tenho. Tenho que ir dormir também. Eu volto…
– Volte sim. Obrigado!
Assim que Layse saiu, o falatório tomou conta do ambiente. Todos passaram a falar sobre o que tinha acabado de acontecer ali.
O mecânico que conhecia Layse e estava bebendo em uma mesa com uns amigos, comentou com o dono do bar:
– É Juarez, você tomou uma lavada que foi de amargar da Layse.
– Isto não é da sua conta rapaz. Ela nem sabe dos problemas que eu tenho.
– Olha que ela sabe muito bem do que fala. Ela é o braço direito da Clarice e está transformando o lugar lá numa mina de dinheiro. Manda mais duas cervejas aí, por favor!
Outro cliente que estava na mesa ao lado, falou para o dono do bar.
– Você não precisava dormir com essa dura, homem. Aquela garota trabalha desde que era criança. É uma lutadora. Você mexeu com a pessoa errada.
– Acho que sim. Hoje não está sendo um bom dia.
Juarez mandou as duas cervejas para a mesa do mecânico. No entanto, ele sabia que a dura que tomou foi de envergonhar qualquer homem de brios como ele. Se tivesse sido de qualquer um daqueles homens, mas de uma mulher? Ainda por cima uma adolescente? Sua cara queimou de vergonha. Seu orgulho foi seriamente atingido pelas palavras de Layse. Correu os olhos pelo salão do bar, pelas paredes, olhou para o chão vendo um rato entrando de baixo do balcão. Refletindo, chegou à conclusão de que a garota não tinha falado nenhuma inverdade. O bar estava mesmo em péssimas condições.
Quando Layse chegou à Rua, viu Isadora se aproximando dela. A amiga passou o braço pela sua cintura ajudando-a a andar sem cambalear.
– Isadora? O que tá fazendo aqui?
– Vim te ajudar a ir para a sua casa.
– Estou muito ruim, mas aguento ir para casa… E como que você sabia que eu estava aqui?
– Postaram uma foto sua acabando com a raça do Juarez no Whatsapp. Fiquei te esperando aqui fora. Deu para ver que bebeu demais.
– Bebiiii… Queria beber mais ainda para perder a memória… Para esquecer a Valentina…
– Eu sei, mas não vai esquecer a Valentina bebendo até cair.
– Vou não?
– Não vai não.
– Então estou perdida. Não estou, Isadora?
– O tempo vai curar a sua dor.
– O tempo? Coitado do tempo, tudo é ele que tem curar. As dores todas do mundo e o pobrezinho do tempo que aguente. Não é injusto? Diz se não é uma sacanagem com o tempo.
– É sim, Layse!
– Eu sei que é. A Valentina me destruiu… Acabou comigo, ela me deixou doida para depois revelar que tem uma namorada…
– Não te destruiu nada. Você vai superar. Mesmo sofrendo você continua amando a Valentina.
– Amo sim, mas agora eu sei.
– Sabe o quê?
– Sei que o amor é uma falácia.
– Não pense assim, você precisa ser mais forte do que essa desilusão.
– Sou forte. Quer saber, a minha mãe falou para a Clarice que estão dizendo que somos amantes. Cê já viu um trem desses? Eu e a Clarice? Não é um trem de doido?
– Sua mãe acreditou nesta fofoca?
– Uai, acreditouuuu! Deus deve está furioso com ela. Problema dela, né?
– Isto mesmo. Quando entrar em casa não fale nada. Vá direto para a cama. Vai fazer isso?
– Vou não. Acho que vou, sei lá se vou.
– Tem de fazer sim. A sua mãe deve estar acordada te esperando.
– Ainda por cima com o terço na mão. Hum, hipocrisia pura! Deus está vendo tudo.
– Deus está te vendo também.
– Deus pode me ver, oras. Se até Jesus Cristo bebia vinho porque eu não posso beber umas cervejas? Era só o que faltava na minha vida. Não poder tomar um porre em paz.
– Agora você me pegou.
– Essa foi boa não foi? Hahahahaha…
– Engraçadinha. Firma o corpo ou vamos cair as duas.
– Pode ser, estou tonta demais.
– É porque você nunca bebeu e foi com muita sede ao pote.
– Fui com muita sede ao pote na Valentina. Ela me plantou num canteiro de repolhos, isso sim. Ninguém mandou eu me jogar. Lógico, fui uma otária com ela.
– Eu também já me joguei Layse, as pessoas se jogam mesmo. Você esta tão arrependida assim?
– Estou nada. Fiquei e fiz muito amor com a Valentina. Ahhhh, e não dei para ela de quatro. Acha que sou boba, Isadora?
– Sei que não é boba.
– Não sou boba, se ela pega todas de quatro eu não pegou. Só vou virar para a mulher que me amar. Né, Isadora? Só para a mulher que me respeitar. Estou errada?
– Você não está errada. Agora estamos chegando e não se esqueça de ir direto para a cama. Amanhã tome muita água para se hidratar. Não deixe de se cuidar.
– Vou me cuidar, eu vou… Obrigada.
– Vai, entra sem fazer barulho. Boa noite!
– Boa noite, Isadora! Obrigada…
Layse sentia-se muito tonta quando tocou a maçaneta da porta percebendo que estava trancada. A luz da sala estava acesa.
Ceição a ouviu girando a maçaneta. Adiantou-se para destrancar a porta, pois Layse não tinha a chave da casa.
Olhou para Layse aflita perguntando preocupada ao vê-la cambaleando:
– Meu Deus, isso são horas de voltar para casa? Quase morri de preocupação! Onde andou até agora? Mas o que é isto? Ocê bebeu?
– Bebi no bar do Juarez. Aquilo lá virou uma espelunca. Uma espelunca cheia de ratos, o lugar é deplorável… Se eu voltar lá vou dar um nome para cada um daqueles ratos…
– Ocê nunca colocou uma gota de álcool na boca. Isto não tá certo, Layse!
– O que não está certo é aquele quadro na parede. Está tortinho, ui…
– Não tá torto coisa nenhuma, ocê é que encheu a cara! Que vergonha…
– Vergonha? Vamos falar de vergonha agora? Como que a senhora não sentiu vergonha de humilhar D. Clarice?
– Nunca que eu pensei que te veria bêbada deste jeito. Que horror! Num sabe que é feio uma mulher beber feito um gambá?
– Feio é beber à custa dos outros. Tudo muda minha mãe. Muda até sem a gente querer.
Layse respondeu entrando no quarto. Caiu na cama fechando os olhos, adormecendo na hora. A mãe continuou falando até se dar conta de que ela dormia profundamente. Saiu do quarto tratando de ir se deitar preocupada.
No dia seguinte na escola, o comentário era um só, falavam sobre a dura que Layse deu no grosso do Juarez. Layse ganhou o respeito de muita gente que outrora, tinha sido tratado muito mal no respectivo bar. Até nas ruas, enquanto seguia para a casa de rações, pessoas que sequer olhavam para ela antes, cumprimentaram-na.
Quando chegou à casa de ração, o dono falou, rindo muito, que soube do passa fora que ela tinha dado no Juarez Silva.
Layse deu um meio sorriso comentando:
– Eu fui lá beber, não fui pedir nada. Ele tem que tratar as pessoas com educação.
– Você está certíssima. “Quem muito abaixa mostra a bunda.” Por causa do que fez ontem tem muito marmanjo te respeitando aqui na cidade. Você olha como são as coisas, tem que tomar uma atitude drástica para as pessoas mudarem a mentalidade delas.
– As pessoas são muito falsas. É só isto que eu acho.
– São mesmo, falou tudo!
– Vou trabalhar. O senhor me dá licença.
– Vai lá e bom trabalho!
Layse trabalhava sempre calada. Assim que terminou de cuidar de todos os bichos da casa de ração e de repor o estoque dentro da loja, largou o serviço. Como combinado com o dono ela não ficava muito tempo lá por ser menor de idade e para não haver denúncia.
Layse foi para casa. Quando entrou a mãe a cumprimentou sorridente:
– Oi, filha! Mudou sua rotina? Foi na casa de ração primeiro? Ocê sempre sai da escola morta de fome e vem correndo almoçar.
– Oi, mãe! Bença! Mudei sim, minha vida está cheia de rotinas.
– Deus te abençoe! Se ocê acha, mas pensando bem, ocê é tão nova para falar assim.
Ceição respondeu coçando a cabeça cismada com o comportamento da filha e com a expressão séria dela.
– Acho sim. O almoço já está pronto?
– Tá! Pode sentar que vou servir o seu prato…
– Carece não. Pode deixar que eu mesma irei me servir daqui para frente.
– Que novidade que é essa? Eu sempre servi o seu prato…
– Tenho dois braços. Muito obrigada, mas posso me servir sozinha.
A mãe se afastou do fogão comentando surpresa:
– Ocê tá é muito esquisita.
– Só quero comer em paz, mãe!
– Pode comer, uai.
Layse comeu silenciosa de cabeça baixa. Quando terminou levantou-se agradecendo.
– Deus que aumente!
– Amém!
– Vou lavar a louça e sair.
– Eu estive pensando…
– A senhora fale depois, agora estou com pressa.
– Ocê só tem que me ouvir.
– Peço desculpas, mas quero ouvir nada agora não, mãe.
– Eu só ia falar que o fato docê ter ido beber ontem…
Layse voltou-se a olhando pacientemente.
– Mãe? Bebi com o meu dinheiro. Não deixei de cumprir nenhuma das minhas obrigações. Fui para escola e se quer saber já tenho notas para passar de ano. Já trabalhei na casa de ração. A última coisa que eu quero é puxão de orelha. Então só me deixa cuidar da louça. Tem muito trabalho me esperando. Tenho tido só contrariedades na minha vida. Estou cansada disto. Vai lá fazer os seus bordados e me deixa quieta no meu canto.
A mãe saiu sem acrescentar mais nada.
Continua…