Valência

Capítulo 28 – Decisão

Eu estava muito preocupada. Quando ligava para o celular, Eva não atendia. Porém, quando ligava para o telefone da casa, ela atendia, na esperança de ser sua filha. Eu começava a falar e ela escutava durante um tempo, sem nada falar. Sentia a sua respiração pesada, mas ela nunca falava nada e acabava desligando. Cheguei a atender alguns telefonemas de número privado e quando eu falava “alô”, a outra pessoa não dizia nada. Tinha certeza que era ela.

Eu acabei fazendo uma doideira. Fui até a fazenda, mas não pela estrada convencional. Sabia que o portão estaria trancado e, mais uma vez, não me deixariam passar. Deixei o carro numa estrada adjacente, próximo a uma cerca que separava as videiras da estrada. Me embrenhei pelos caminhos estreitos entre as vinhas, em direção à casa. Eu sabia que havia algumas câmeras das quais eles vigiavam as plantações, mas também sabia que ninguém ficava olhando o sistema, constantemente. Torci para que não tivesse ninguém vigiando àquela hora.

Quando cheguei próximo, vi que a casa estava na penumbra. Só uma luz acesa na varanda e outra em um dos cômodos, que não identifiquei. O caminho da casa até a construção da pista de treino de esgrima estava todo aceso. Eu podia estar enganada, mas tinha certeza que Eva estava lá, com aquele florete medieval, retalhando o coitado do boneco de treino. Aproximei, me esgueirando pelas sombras da noite. Cheguei ao portal e a vi. Seus movimentos não eram nada suaves. Eram vigorosos, açoitando o manequim. Ela parou de chofre, olhando para mim.

– O que está fazendo aqui, Olívia? Como conseguiu entrar?!

– Calma, Eva. Eu só quero saber como você está.

Ela empunhava o florete apertando o cabo com força, mas não em minha direção. Isto já era um alívio para mim.

– Eu estou bem. Agora que sabe, pode ir embora, senão, chamarei alguém para conduzir você até o portão.

– Não faz isso, Eva…

– Mãe.

O som da voz de Pepa atrás de mim era embargado.  Voltei-me para ela. Lito estava junto. “Que merda! Se Pepa armar algum barraco por me ver aqui, Eva vai me odiar”!

– Pepa…

Eva largou o florete e veio caminhando de encontro à filha.

– Eu quero falar com a senhora. Deixa a Olívia aí. O Lito faz companhia para ela.

Que alívio foi escutar a garota dar aquela sugestão. Eva meneou a cabeça e Pepa segurou a mão dela, conduzindo-a para dentro da casa. Eu e o Lito ficamos do lado de fora, conversando na varanda.

– Que corno era aquele velho… – Lito começou a falar.

– Cara, as pessoas têm um ódio que a gente não entende. Enlouquecem. Fazem coisas malucas. Ele viveu para atormentar a filha. Era um doente que nunca soube o que era amor. Acho que ele não devia amar nem a esposa.

– E nem a neta. – Concluiu Lito. – Se ele gostasse de Pepa, não tinha feito essa merda. Falou na carta que Eva a odiava. Imagina você amar sua mãe e uma pessoa que você também ama, fala que seu nascimento atrapalhou a vida da outra? Que só não foi abortada porque ele impediu.

– Isso é mentira!

– Mas podia não ser, Olívia. Do jeito que o velho contou a história fazia sentido. Foi assim que o corno começou a carta. Dizendo que ela não conhecia a mãe. Pepa ficou muito arrasada. Eu li a carta. O velho foi muito esperto. Ainda deixou um monte de fotos que foram tiradas ao longo da vida de Eva. A maioria não tinha nada a ver. Só ela conversando com outras mulheres, mas numas lá…

– O quê? Umas lá o quê?

– Tinham umas fotos dela beijando duas mulheres diferentes no deck de um iate. Não ao mesmo tempo… quer dizer, não era junto, entende? Tipo: épocas diferentes… tipo: Não era uma suruba ou nada assim. Ah, você entendeu. – Falou sem graça, pois não sabia se conhecia estes fatos da vida de Eva.

– Tá. Tá. Entendi. Eu sei disso, não se liga.

– Olha, Olívia, eu tentei falar com Pepa muitas vezes, mas sabe que não sou bom com palavras. Não consegui convencer.

– Merda! Que cara escroto! – Agora era eu que xingava o velho. – Cara, Pepa teve que assumir um monte de coisas e tudo por consequência desse cara!

– Ela tá indo bem. Eu conheço disso. Meu pai era um homem muito legal, mas ele era meio bronco também. Eu tô falando no jeito de educar, não no jeito de pensar. Quando eu comecei a querer fazer tatoo, eu tinha quatorze anos. Eu desenhava muito bem. Ele disse que se eu queria, eu iria fazer, mas que eu iria me sustentar também. Montou um estúdio para mim e disse que depois de cinco meses não me daria mais nenhum tostão.

– E ele cumpriu o que disse?

Lito gargalhou.

– Cumpriu e eu me borrava de medo. Ele me ajudou a administrar no primeiro ano. Depois disso, eu já fazia tudo na boa.

– É. Seu pai foi um cara legal. Ele dava, mas sabia cobrar também.

– Meio na marra, mas tudo bem.

Rimos juntos.

– O que fez Pepa vir falar com Eva?

– Não sei. Ela me ligou dizendo que queria que eu a trouxesse aqui, mas ficou muda no carro. Cara, desculpa fugir de você, mas eu tava “rendido”.

– Não tem problema, Lito. Eu entendo. Eu falei com Lúcia, hoje mais cedo. Peguei ela na saída de casa.

– Ela ia sair com Alonso.

Olhamos, um para o outro. Paramos, momentaneamente, e sorrimos.

– Tem bem a cara dela, isso. – Falei.

– É.

Ele respondeu rindo. Ficamos, pelo menos, umas duas horas sentados na varanda. Já estava congelando, apesar do vinho que tomávamos. Ramona tinha trazido junto com algumas coisas para comer. Pepa e Eva saíram. As duas estavam com a cara inchada e os olhos vermelhos, mas se abraçavam.

– Vocês estão fazendo treinamento pra pinguim? Por que não entram?

Pepa soltou a piadinha, acredito que para descontrair o ambiente. As duas estavam um pouco sem graça, diante de nós. Eva já havia tomado banho e trocado de roupa.

– Caralho! É pra agora! – Lito soltou o verbo, de tão congelado que estava. – É… Desculpa. – Baixou a cabeça envergonhado, fazendo as duas rirem.

Entramos. O clima era de constrangimento. Eu não sabia como lidar com elas. Pepa não sabia o que falar para mim e muito menos Eva. Pensei em ir embora e ligar para Eva depois.

– Bom… Acho que vocês vão querer colocar as coisas em dia. Já vou…

– … Olívia, fica. Você e mamãe deveriam conversar. Eu e ela já nos entendemos. – Sorriu, enquanto Eva dava um beijo no alto da cabeça dela, voltando-se para mim e sorrindo também.

– Eu vou precisar de uma carona para pegar meu carro. – Falei.

– Carona? – Lito perguntou.

– É. Eu deixei meu carro na estrada lateral… – falei constrangida. – Entrei pela cerca e atravessei o parreiral.

Todo mundo riu e eu fiquei “puta”.

– Vocês estão rindo? Tô com os pés molhados, falou? Vou pegar maior gripe.

Quando retornei à casa, Eva me esperava sentada no sofá, com uma taça de vinho na mão e outra pousada sobre a pequena mesa de centro. A nossa conversa não seria fácil e ela sabia. Apesar de estar muito preocupada com ela, todos estes dias, estava muito magoada e mexida também. Eu não tinha condições emocionais para ficar com Eva. Esconder do mundo ou esconder minha vida. Não tinha cabeça para encarar cada vez que Eva fosse ameaçada ser descoberta. Ela pirava nessas horas e eu, temia que ela me afastasse outra vez. Não era justo comigo.

Sentei a seu lado. Acariciei seu rosto e seus cabelos. Ela beijou meus lábios e, apesar da saudade, eu estava tão arrasada que não consegui reagir com ardor. Ela percebeu.

– Me perdoe, Olívia. Eu sei que eu… que eu fiz você sofrer, mas eu não podia, naquele momento. Eu tinha que me afastar de tudo para saber o que fazer. Eu tinha tomado minha decisão, pouco antes de você e Pepa chegarem.

– Não, Eva. Eu entendo você. Só não consigo viver nessa gangorra de insegurança e emoções. Eu não dou conta. Não quero viver me escondendo. Cada vez que ceder a isso, estarei reprimindo algo em mim que me machuca. Não quero que ache que é falta de amor, só… só que não posso mais.

Como eu disse, a nossa conversa não foi nada fácil e coisas aconteceram à partir dali. Acredito que Eva tenha enlouquecido, novamente, pois tomou atitudes que eu mesma fiquei com medo do que poderia ocorrer com ela. Não foi por maldade ou vingança, o que fiz, diante das reações que ela teve comigo. Só que eu não poderia mais viver daquele jeito.

*****

Alguns dias depois

– Eva, é melhor aceitar. Vai ser melhor para todo mundo. Todos do conselho estão dispostos a votar a sua saída. Não podemos deixar que no conselho do Clube Aragon tenha uma pessoa que se assumiu publicamente. Onde estava com a cabeça, Eva? Você podia simplesmente…

– … me esconder? É isso? Quer dizer que eu posso ser homossexual, contanto que eu não fale!

– Eva, você foi casada! Tem uma filha. Pelo amor de Deus! O que deu em você? – Ramon se alterou.

– Você chama aquilo de casamento? Eu fui vendida pelo meu pai! – Eva alterou ainda mais o tom de sua voz. – Todos sabiam disso e aceitaram, naturalmente! É isso que acham decente?! – Inquiriu raivosa. – Ainda fizeram uma festa de casamento aqui no clube, paga pelos sócios. Todos ficaram felizes com a minha desgraça, não foi?!

– Claro que não foi assim, Eva. Todos ficaram chocados, mas era uma decisão da sua família! – Ramon se defendeu.

– Uma decisão do meu pai! Ninguém questionou o senhor distinto que era Antônio Gallardo! Ramon, nós éramos adolescentes. Seu pai era do conselho e me cumprimentou, feliz da vida!

– E o que eles poderiam fazer?

– O mínimo de decência a se fazer, era negar ao meu pai o pedido que fez aos conselheiros. Mas ficaram felizes em dar uma “grande festa de casamento” para a recatada e infeliz filha do amigo deles! Eu dei a minha vida por esse clube! Não cobro por isso, pois fiz porque queria, mas nem questionar, Ramon?

– Muitas mulheres não fazem o que querem de imediato, Eva, mas depois, enxergam que foi o melhor para elas. Veja você. É uma mulher próspera!

Eva soltou uma gargalhada irônica. Ramon começava a se incomodar com a conversa. Ela balançou a cabeça em negativa, mantendo o sorriso cínico no rosto e o semblante transparecia descrença.

– Uma mulher próspera… – Balançou mais uma vez a cabeça. – Eu vou falar para você o que é uma mulher próspera. – Se aprumou encarando-o. – Uma mulher próspera, como eu, deveria naquela época ter ido à olimpíada. Deveria ter amado e sido amada, não importasse quem eu fosse. Nós já tínhamos dinheiro. Meu pai já tinha dinheiro! – Se exaltou. – Mas o dinheiro que tinha não bastava para uma vida, não é? Eu tinha que ser negociada para ter uma aparente vida decente e ele ter mais relações comerciais.

– Muitas mulheres se apaixonam por seus maridos. – Ramon retrucou inseguro.

– Muitas mulheres abaixam a cabeça para seus maridos e aceitam, porque eles são mais fortes e, algumas vezes, as ecam. Além de tudo, eles ainda têm mais credibilidade do que elas, sejam quem eles forem.

– De qualquer forma, você não ficou muito tempo com ele! Você se livrou daquele traste!

– Ah, então todos sabiam que ele era um traste? Pelo visto, sim. Todos sabiam, menos eu!

– Você fala como se o conselho concordasse com a atitude do seu pai. Todos ficaram chocados, também. Como você disse, eu era um adolescente, tanto quanto você.  Agora, virar sapatão, Eva?!

– Eu não virei sapatão! É o que eu sou! Sempre fui e escondi minha vida toda por medo! Acha que meu pai me casou com aquele homem, por quê?

– Então ele queria o melhor para você. Acredite.

Outra gargalhada sarcástica tomou o ar. Eva não acreditava nos absurdos que escutava daquele homem, que ela conhecia desde a infância.

– Vou contar uma “historinha” para você. Vamos ver se consegue entender, minimamente, o que eu senti na carne, naquele tempo, e durante todos os anos que se seguiram na minha vida. – O encarou chegando perto de Ramon. – Imagina que você, Ramon, está numa cidade, em algum lugar do universo, que o certo é ser homossexual. Tem dezessete anos e se apaixona por uma garota. Algo tão inelutável que na sua cabeça é impossível que não seja certo.  Tão puro e bonito que não acredita que Deus esteja contra você. – Estreitou os olhos, acuando Ramon. – Mas seu pai descobre esse amor, que ele julga ser devasso, pois você mostrou que era heterossexual. Seria inadmissível e vergonhoso para ele.  O obriga a casar com um homem muito mais velho e que você nunca viu na vida. Após sua linda cerimônia de casamento, em que todos lhe dão os parabéns pelo belo enlace, ele monta em você como um cachorro. Faz isso todas as noites, durante mais de um mês. Todas as noites, este homem que colocaram como seu marido, se satisfaz, sem ao menos olhar sua cara. Sem nunca se importar sequer com o que você sente quando ele goza no seu ânus. O que acha que eu senti, Ramon, com meu belo casamento? Com a boa vida de viúva, depois de sofrer o que sofri com a boa intenção de meu pai? O que você sentiria no meu lugar? O que você sentiria sendo comido, todo dia, por um homem que lhe dá asco e que você mal conhece?

O desconforto de Ramon era visível. Engoliu em seco. Eva se afastou do rosto dele, ao final da preleção.  Ela havia ficado tão próxima que ele sentiu o hálito e as palavras saindo com raiva, através dos lábios dela.

– É… É lamentável que isso tenha acontecido a você. – Falou num sussurro.

– Lamentável?!

Ela exclamou, não acreditando no que aquele, que um dia considerara como amigo, acabara de falar. Fechou os olhos fortemente, tentando conter a ira que esquentava a cabeça e afogava seu íntimo. Inspirou fundo.

– Muito bem. Não tem mais acordo. Reúnam-se e votem. Me coloquem para fora.

Eva pegou a bolsa e se encaminhou para porta de saída. Ainda escutou Ramon lhe falar.

– Não é mais fácil você renunciar, Eva?

Ramon tentou mais uma vez. Ela se voltou para ele com um pequeno sorriso.

– E perder a oportunidade de ouvir o que falarão para me dispensar? Não mesmo! – Sorriu e saiu, batendo a porta.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.