Eu só tinha visto Eva totalmente descontrolada, quando estava internada no hospital, porém seu descontrole era diferente. Ela gritara, como se pudesse arrumar as coisas que aconteciam, através das palavras ditas com raiva.
– Eva! – Gritei também, para trazê-la a razão. – Me escuta. – Segurei-a pelos ombros, novamente, e falei mais branda. – Se não se acalmar, não vai conseguir resolver nada. Toma um banho que eu levo uma roupa para você.
Ela pareceu entender. Inspirou fundo e meneou a cabeça.
– Está certo. Vou para o banho.
****
– Pepa, tudo bem com você? O que aconteceu?
– Não sei, mãe. A enfermeira bateu na porta de meu quarto e disse que teve que reanimá-lo. Eu chamei a emergência e liguei para a senhora. Eles conduziram meu avô direto para a sala de emergências e ainda não tive notícias.
– Tudo bem. Você comeu alguma coisa? Já tomou café? Vou procurar alguém para saber o que está acontecendo.
Eva falava tudo de uma só vez, não dando espaços nem para as respostas. É engraçado como a mente humana reage às coisas… a vida. Ela tinha tudo para odiar aquele homem. Tinha tudo para querê-lo morto, mas se preocupava com ele.
– Mãe. – Pepa chamou a atenção para si. – Não acho que vovô vai ficar muito bem. Ele já não está bem há alguns dias.
Eva a olhou. Inspirou forte e respondeu.
– Eu também não acho, minha filha.
****
O cortejo do enterro não foi longo, apesar das inúmeras pessoas presentes. Eram sócios do clube, amigos de Pepa, Eva e da família em geral. Eva estava tranquila, apesar de ver que estava introspectiva e de semblante pesado. Ela parecia sofrer calada. Não sei se por amor ao pai, apesar de todos os pesares, ou por uma longa vida buscando esse amor que ele negou. Olhando para ela, era como se eu voltasse ao momento do enterro de meu avô, quando senti dor e desolação. Alguma coisa indizível, por nunca ter compreendido a atitude dele e não entender por que ele me desprezara tanto. Entendi que Eva, assim como eu, procurava uma aceitação por parte do pai, que nunca chegou.
Pepa pediu para ficar com a mãe e Eva a levou para a fazenda. As acompanhei, mas aquela não era uma hora da qual eu gostasse de participar. Ainda bem que Lito foi conosco e a Lúcia e o tal do Alonso também. Eva tinha chamado o amigo e ele tinha dito que levaria a “namorada”. Eu não achava mais exótica essa situação. A verdade é que, durante muitas semanas, após o colapso que Eva sofreu, eu e Lúcia havíamos nos afastado gradualmente diante da condição que se instaurou. Eu ia muitos dias para a fazenda e Lúcia saía muitas vezes com o seu namorado, nos distanciando e nos impedindo de conversar sobre o “nosso assunto” particular. Talvez tenha sido melhor que acontecesse dessa forma. Talvez…
Ramona havia colocado alguns petiscos e garrafas de vinho e água, numa mesa do jardim, na parte de trás da casa. O dia estava com uma brisa fria, mas ensolarado, apesar de ser a última semana do outono. Cheguei próximo a mesa e vi Lito abraçado com a Pepa do outro lado. Essa situação é que me deixava amuada. Não por Lito abraçar e consolar Pepa, mas por eu não poder fazer o mesmo com a minha namorada. Eva conversava com Alonso, com Lito e a filha.
Peguei um naco de Jamón, coloquei na boca, displicentemente, e peguei uma garrafa de vinho. Derramei o conteúdo numa taça.
– Não fique tão chateada. Ela precisará de um tempo, mas pelo pouco que a conheci, através de você e de Alonso, não acredito que será assim por muito tempo.
Fitei Lúcia, ainda com a garrafa na mão e sorri. Verti o líquido rubro em outra taça, peguei as duas e ofereci uma para ela.
– Não importa quanto tempo não nos falamos, não é? – Lancei novamente um sorriso. – Às vezes, eu fico intrigada como você consegue saber o que estou pensando.
– Você pode não perceber, Olívia, mas é muito transparente. Qualquer pessoa que lhe observe um pouquinho consegue te ler. – Riu. – Lançou um olhar triste, ainda a pouco na direção deles. Um olhar que parecia de cachorro com fome. – Gargalhou.
– E o Alonso? Gosta dele?
– Eu e você não tivemos muita oportunidade de conversar. – Olhou em direção ao namorado. – Ele foi chegando… fomos conversando e nos conhecendo. Quando eu vi, já sentia falta da presença dele, das conversas e dos mimos que ele dispensava a mim. Acho que me apaixonei sem perceber que estava acontecendo.
– Fico feliz. – Lancei um olhar sacana para ela.
– Que você está pensando, Olívia? Para de olhar assim que tem gente que vai interpretar errado. – Riu.
– É que imaginei que depois de pegar mulher, você não ia querer saber mais de homem.
Gargalhei e ela me acompanhou. Falei apenas para implicar com ela.
– Você que é muito metida. – Continuou rindo. – Sempre falei para você que não sou lésbica, pelo menos, nunca pensei em ser uma coisa ou outra. Eu apenas não quero imaginar que estou com alguém por ser mulher ou homem. Quero pensar que estou com uma pessoa de que goste.
– Tá. Tá. Isso é um elogio para mim. – Sorri e ela me acompanhou.
Senti um braço passar por cima de meus ombros e vi Alonso enlaçar a cintura de Lúcia. Quando olhei para o lado, Lito e Pepa também se chegavam.
– De que estão rindo?
Eva perguntou apoiada em mim. Estranhei, pois era um gesto íntimo, que achava que ela não teria coragem de expressar.
– Nada demais, Eva. Perdoe se exagerei no riso. Esqueci do momento. – Lúcia se desculpou.
– Ora. Não é para tanto, Lúcia. – Alonso se adiantou. – Estava falando com Eva exatamente sobre isso. Cada qual tem seu tempo de luto, mas o que não se pode e negar a vida para frente.
Olhei para Eva tão próxima, com seu braço em meu ombro, percebendo o gesto de posse. Não iria mexer com ela, mas eu amei.
– Eu e Lúcia estávamos lembrando de alguns fatos que aconteceram conosco, como da vez que…
Contei algumas histórias engraçadas e bobas que nos envolveram no dia a dia, desde que nos conhecemos, dispersando temores e descontraindo o ambiente. Ao cair da noite, jantamos; Lúcia e Alonso foram embora e Pepa e Lito foram para o jardim. Apesar da tristeza de Pepa, ela era jovem e se distraiu com facilidade ao lado do namorado. Eu e Eva sentamos no sofá da sala, com mais uma garrafa de vinho como companhia. Foi quando eu olhei o rótulo e peguei a garrafa para vê-lo melhor.
– Esse vinho é daqui?
Ela somente confirmou. O rótulo era cinza com traçados de cores brilhantes distribuídos diagonalmente. O nome do vinho era “Matiz” e o símbolo era uma espada enrolada numa espécie de fita.
– Pinot noir e Tempranillo. – Li em voz alta o corte de uvas descrita no rótulo. – Você gosta de sabores contrastantes, não? – Falei rindo.
– Ele já estava nas barricas envelhecendo. Alcançou um bom sabor e eu envasilhei. – Encolheu os ombros. – Gostou?
– É diferente do “Dualidad”, mas sim. Gostei muito.
– Gostou mais do que o Dualidad?
– Não posso falar que gostei mais, apenas que ele tem uma delicadeza diferente. É como se no paladar fosse mais macio.
Ela sorriu, reparando em mim, no que eu falava e, por fim, fez uma pergunta que mudou completamente o assunto.
– Como chamam aquela faixa que prende o traje de Jiu-Jitsu?
Eu olhei para ela, sem entender a pergunta, mas ri ao responder.
– Faixa.
– Como assim, o nome é faixa? Só isso?
– É. – Ri mais ainda com cara que ela fez. – Mas por que a pergunta?
Ela pegou a garrafa e olhou o rótulo.
– Nada. Só para saber.
Eu reparei direito no símbolo da espada envolta completamente por uma fita negra, cujas pontas ficavam soltas e foi aí que eu entendi porque ela queria saber. Eva não era de muitas palavras, assim como eu. Seu gesto me emocionou, tão sobejamente, que senti vontade de pegá-la no colo e beijá-la a noite toda.
– Você me provoca, Eva. Sabe que Pepa está lá fora.
Ela balançou a cabeça de leve e disse.
– Eu iria dar a você, quando lançasse na feira de inverno de vinhos, mas quis provar dele hoje. Acho que, como um chefe de cozinha coloca suas emoções no prato novo que elabora, eu passei a colocar emoções nos vinhos que produzo. Ou pelo menos colocar expectativas. Esse vinho já estava em produção. As emoções transmutaram e o que apareceu, foram as expectativas do momento que pulsavam.
Pepa entrou, nos tirando de nossos devaneios. Iriam dormir. Já estava tarde. Acompanhamos os dois pelo corredor e uma dor cingia meu peito. Eu não poderia dormir com Eva nesta noite.
– Eu não estou com muito sono. Quer tomar mais um pouco de vinho em meu quarto?
Eva me perguntou e Pepa se virou para nós, nos reparando.
– Não sei, Eva… Você precisa descansar.
– Por que não dorme no quarto de minha mãe hoje? Assim vocês conversam e quando o sono vier…
Ela deu de ombros e Lito virou para a porta, abrindo. Sabia que ele entendia tudo que acontecia e não queria se meter. Ficaria mal, se a namorada descobrisse.
– Vem, Olívia. Não tem nada demais.
– Está bem. Vou só pegar minhas roupas.
****
– Minha mãe é tão travada.
Pepa falou para Lito. Estavam dentro do quarto trocando de roupa.
– Do que cê tá falando?
– Cara, minha mãe nunca teve ninguém. Nenhum namorado. Ela podia até ter algum caso por aí, mas nunca vi mamãe com ninguém. Viveu sempre pra granja e para o meu avô que a maltratava. As vezes queria que se apaixonasse por alguém legal.
– Olha, não pede o que você não sabe se vai gostar.
– Como assim? Lógico que gostaria que ela tivesse alguém que amasse e fosse amada pelo cara!
Lito olhou para Pepa durante uns segundos e se acomodou na cama.
– Tá. Vamos dormir que já tá tarde.
****
Entrei no quarto com minhas coisas. Essa história de Pepa não saber sobre mim e Eva me incomodava. A história de me esconder, começava a me agastar por conta de Pepa. Eva tinha um livro nas mãos, como da primeira vez que dormimos juntas e assim que entrei, ela começou a ler.
– “As fagulhas, depois de abrirem caminho pela noite, capitular diante dela, a escuridão cai, despejando-se sobre a silhueta das casas e das torres; encostas desoladas se esbatem e desaparecem.” (Mrs Dalloway, Virginia Woolf)
Deixei a minha bolsa em cima da cama e fui até ela.
– Hoje é um dia muito complicado para você, Eva, mas vou te mostrar, como da outra vez, o que penso sobre hoje e como gostaria que se sentisse.
Abri outra página e pedi para que lesse.
– “Todavia, o sol estava quente. Todavia, a gente acaba superando tudo. Todavia, sempre na vida um dia vem depois do outro.” (Mrs Dalloway, Virginia Woolf)
Ela me olhou ensimesmada.
– Você gosta de Virginia Woolf! – Exclamou como uma constatação.
– Não. Eu gosto desse livro dela. Já li, algumas vezes, assim como você. A diferença é que eu me pegava dentre esses sentimentos dúbios de Mrs Dalloway, os que mostravam alguma parte de fulgor dela.
Ela se voltou para mim e deixou o livro sobre a mesa. Me abraçou, pousando o rosto sobre meu ombro.
– Desculpe-me se deixei você numa posição desconfortável junto a Pepa, mas eu não queria ficar sem você hoje. — Embalei-a em meus braços e aos poucos fomos relaxando a ponto de quando deitadas na cama, resvalarmos para um sono tranquilo e merecido.
*****
Eva me surpreendeu. A cada dia ela se mostrava mais otimista com tudo. Treinava com Pepa. Ia até a granja e cuidava dos assuntos de lá e, até voltou a dar aulas de esgrima à noite. A fazenda Esperanza não era muito grande e os negócios da vinícola não davam tanto trabalho, para alguém acostumada àquelas atividades. Ela também tinha um administrador que a auxiliava. Mas naquele dia, ela estava agitada. Seria a abertura do testamento do pai, no entanto não queria ir. Não importava para ela, com quem ficasse a granja. Se ele tivesse dado tudo à Pepa, ótimo. Se ele tivesse doado a um parente longínquo ou a uma instituição, maravilha também. Pepa estaria amparada com o que ela tinha. O problema era que o testamento não poderia ser aberto sem a presença dela. Exigência do pai.
*Nota: Desconheço as leis espanholas em relação a partilhas e testamentos, e tomei como uma “licença, ou liberdade de expressão literária” para colocar da forma que me aprouvesse.
Ela pediu que eu fosse junto e estava apreensiva. Reparava que Eva já não se esforçava tanto para arrumar desculpas sobre a minha presença constante, junto a ela, em locais e eventos. Não sei se tinha consciência do que isso poderia fomentar, afinal, eu era lésbica. Nunca fui de falar aos quatro ventos, mas também nunca neguei.
– O que foi, Eva? É só um testamento. – Falei assim que entramos na casa da granja.
– Ah, Olívia. Não sei. Acho que reajo assim a qualquer coisa vinda dele.