Valência

Capítulo 22 – Certas Coisas

Pepa perguntou, preocupada com a reação da mãe, ao entrar na casa. Eva olhou para o rosto da menina. Pepa estava se transformando, aos poucos, numa bela mulher. Uma mulher de rosto bonito e caráter ilibado. Sorriu. “Tiveram coisas que valeram a pena”. Pensou.

– Estou bem, Pepa. Um pouco apreensiva, mas estou bem.

Segurou a filha, trazendo-a para se alojar em seus braços e beijar sua cabeça. A filha lhe abraçou, confortável e a estreitou mais no abraço.

– Bom. Vamos encarar o senhor Antônio Gallardo. – Se desvencilhou da filha. – Será que seu avô vai ficar feliz em me ver?

– Ah, mãe, deixa eu entrar com a senhora?

– Não, filha. Quero ver o que seu avô tem para me dizer. Sinceramente, acho que nada de bom. Ele nunca tem nada de bom para me falar.

– Não quero que ele fale nada. A senhora está tão bem agora.

– Talvez nem ele entenda mais por que faz isso. Deixa eu subir. Espera aqui.

Eva subiu as escadas e caminhou até a porta do pai. Parou e olhou o corredor, observando a porta de seu quarto fechada. Andou mais um pouco e entrou nele. Olhou em volta. O estranhamento que sentia, ao reparar em todas as suas coisas, fez com que pensasse em qual momento de sua vida deixou de sentir aquele espaço como seu. “Antes. Bem antes do que aconteceu comigo e Antonella”. Refletia. “Ele já era agressivo, arrogante e manipulador. Este quarto nunca foi meu, essa casa nunca foi minha”. Voltou-se no mesmo passo e fechou a porta de um lugar que não reconhecia mais.

Eva entrou em silêncio, para ver seu pai. Olhou os aparelhos que se ligavam a um corpo inerte. Existia um medo latente. Medo que ela tentava afastar para as profundezas de seu íntimo. A ameaça poderia não ser mais presente e impositiva, mas não conseguia controlar aquele sentimento que pairava sobre ela, quando na presença daquele homem. A enfermeira, depois de alguns segundos, percebeu a presença de Eva. Falou baixo.

– Ele está dormindo.

Eva meneou a cabeça e se aproximou da cama, reparando no rosto enrugado e magro, preenchido com o equipamento de ventilação pulmonar.

– Por que ele precisa deste equipamento? – Apontou para o rosto do pai.

– Ele está há muito tempo deitado e perdendo rápido a massa muscular de tórax que auxilia na respiração. Como a lesão da medula foi na parte alta da coluna, e ele se recusou fazer a fisioterapia, agora respira com dificuldade.

Quando Eva voltou seu olhar para o pai, viu que ele estava com os olhos abertos, a olhando com intensidade. Um frio abarcou seu estômago. Se aproximou, vendo que o pai balbuciava algo. Afastou a máscara, abaixou para deixar seus ouvidos próximos à boca e poder escuta-lo. Ele sussurrou algumas coisas e ela cerrou os olhos, enquanto o escutava. Deixou que falasse tudo que quisesse. Voltou a colocar a máscara em seu rosto, aprumou sua postura, inspirou fundo, ainda de olhos fechados e, depois, o mirou.

– Eu não me importo mais com o que você pensa, pai. De fato, hoje questiono se algum dia você me amou, ou a minha mãe. Amou alguém que passou pela sua vida? – Riu, sem ânimo, balançando de leve a cabeça em negativa. – Não. Eu acho que você nunca amou ninguém, a não ser você mesmo. – Reparou que o rosto do pai ficou ligeiramente rosado. – Ah, pai! De que adiantou? – Falava com pesar. – Por que o senhor quis sofrer comigo durante tantos anos? Ou sentia um prazer mórbido de ver o sofrimento de sua filha, como um doente sociopata? Seria isso? É. Talvez seja essa a explicação, mas agora é tarde para a gente saber, não é?

Ela parou de falar uns instantes olhando o pai, sem entender por que não sentia nada. Não conseguia sentir mais amor, raiva ou desprezo por aquele homem. Não conseguia sentir compaixão ou ódio. Era como se um vento forte tivesse passado e com ele, levado tudo que sentia pelo pai.

– Sua neta falou que o senhor deixou de fazer o tratamento e está preocupada. Se ainda existir algum sentimento bom dentro de você, e se ainda se importar com alguém que lhe ama, volte ao tratamento. Quem sabe ainda conseguirá desfrutar da companhia de alguém que se importa, verdadeiramente, com o senhor. Tenha certeza que seus amigos comerciais não vêm mais lhe ver. Eles não se incomodam de quem está à frente da granja “Tierra Roja”, contanto que continuem tendo suas vantagens nas negociações.

Eva se virou e saiu do quarto. Nunca mais foi ver o pai e nunca falou para ninguém o que escutou dele naquele dia. Desceu as escadas e encontrou sua filha apreensiva.

– Foi tudo bem, mãe?

– Acho que sim, filha.

Passou a mão por cima do ombro da filha, caminhando em direção à parte de trás da casa.

– Eu quero dar uma olhada no haras e na vinícola. Você me mostra a movimentação comercial?

– Quer voltar a administrar a granja? Acha que já está bem para isso?

– Eu quero te ajudar, Pepa. Não vou voltar a morar aqui. Me sinto bem morando na fazenda Esperanza, mas sei que é uma carga muito grande para você. Qualquer pessoa sozinha fica sobrecarregada com tudo isto e você vai começar a faculdade no início do ano.

– Mãe, eu não quero tirar a administração de você. Eu só assumi porque a senhora não estava bem. – Falou alarmada.

– Já está querendo pular fora, é? – Mexeu com a filha, rindo.

– Ah, mãe, para! Isso não é brincadeira. O Ramirez é competente. Mas já aconteceram situações que a própria Olívia me ajudou. Não tenho experiência para lidar com isso. Nós não conseguimos fechar alguns contratos que antes, eram clientes assíduos nossos.

– Não se preocupe, Pepa. Não vou deixar a granja. Virei todos os dias fazer o que sempre fiz. A partir de amanhã virei para cá e assumirei, mas tenha uma única coisa em mente: esta granja é sua. Um dia, quando você já estiver bem e segura, eu vou me retirar e cuidar só da fazenda Esperanza.

E assim, Eva decidiu voltar para suas atividades.

****

– Eva! Cheguei. Quero te levar para jantar no… Ah, desculpa.

Dois dias depois de Eva visitar o pai, eu cheguei à noitinha na fazenda. Queria leva-la para jantar num restaurante que conheci, através de um cliente meu. Ele ficava numa cidadezinha próxima. Tive uma grande surpresa ao chegar. Eva estava com visitas.

– Boa noite, senhorita Ávila.

O sorrisinho daquela mulher me irritava. Duquesa de que mesmo, ela era?

– Boa noite duquesa de… Ah, perdoe-me. Minha memória não anda muito boa.

Ela abriu mais o sorriso e veio de encontro a mim, estendendo a mão. Eu tinha que cumprimentar. Infelizmente em determinada horas, odiava ter educação.

– Duquesa de Lerma e não se preocupe, eu entendo. Muito cansaço, stress… Às vezes nos impede de lembrar coisas ou, até mesmo, fazer coisas…

O que ela achava que eu deixava de fazer por conta de cansaço ou stress? E quem disse que eu andava estressada?

– A Olívia tem muitas atividades sim, Leonor, mas ela não anda cansada.

A tal duquesa lançou um olhar para Eva e sorria mais ainda. Essa mulher me irritava, verdadeiramente. Detesto pessoas de meias palavras ou que insinuam coisas sem falar o que realmente querem dizer. E ela fazia isso.

– Duquesa…

– Pode me chamar de Leonor.

– Duquesa, –  continuei a chama-la por seu nobre título – Por que acha que ando cansada? Não foi isso que eu falei.

– Na verdade, eu não achava. É que você falou que andava esquecida e… Eva me disse que você tem muitas atividades, inclusive a ajuda nas dela, então, apenas presumi.

Eu ia retrucar, mas a mulher era esquiva. Comunicou na mesma hora que partiria, pois estava tarde e tinha que voltar para Alicante. Se despediu de Eva com dois beijos no rosto, me deu um “até mais” e saiu pela porta deixando um rastro adocicado no ar, como da última vez. À essa altura meu humor já tinha se esvaído, junto com a saída da duquesa. Eva se aproximou e eu, irritada, esquivei de seu abraço.

– Vou colocar minha bolsa no quarto.

Saí andando pelo corredor, entrei no quarto de hospedes e joguei a bolsa na cama. Mal vi Eva entrar. Ela vinha logo atrás. Passando as mãos pela minha cintura, acariciando meu abdômen. Não tinha como escapar novamente

– O que foi, Olívia? Está aborrecida comigo?

– Não, Eva, não é nada com você. Essa sua amiga que me irrita.

Ela retirou suas mãos e se afastou, virando de costas. Senti um certo vazio. Estava morrendo de saudades de Eva, pois há dois dias que não nos víamos.

– E por quê? – Virou-se de frente para mim, novamente.

– Ela fala com cinismo. Imprime um tom na forma de falar que eu não gosto. É como se ela estivesse, o tempo todo, falando por meias palavras.

– Leonor foi a pessoa que me escutou quando eu precisei, Olívia. Já lhe disse. Se não fosse por ela, talvez não tivesse procurado você e lhe trazido aqui na fazenda, aquele dia, para mostrar um pouco de mim.

– Tudo bem. Eu não quero brigar com você por conta de outra pessoa. – Me aproximei de Eva e enlacei a cintura dela. – Mas ela podia ser só um pouquinho menos… Ah! – Exalei o ar de meus pulmões.

Eva riu e beijou meus lábios delicadamente, deixando-os pousados nos meus, durante um tempo.

– Eu vou falar com ela para parar de provocar. Não pense que eu não percebo o que ela faz. Sei que ela implica com você.

– Ah, sabe? E por que você deixa ela fazer?

– Da outra vez eu não me encontrava muito bem, mas hoje, foi porque eu vi certo ciúme na sua atitude. Eu não imaginava que você fosse ciumenta e também nunca imagine que chegasse o dia que veria alguém sentir ciúmes de mim. Eu achei você uma gracinha e também, fiquei apreciando essa sensação… Deixa para lá, foi bobagem minha.

Ela me beijou novamente e eu a trouxe para bem perto. Como eu estava com saudades dos lábios dela! Nos desvencilhamos e eu pensava em todas as emoções que tinha quando estava com Eva. Se ela nunca imaginou ter alguém que sentisse ciúmes dela, eu nunca imaginei ter este tipo de sentimento por ninguém.

– Só para constar. Não foi ciúmes. – Falei contrariada.

– Ah, não? Que bom. Fiquei preocupada, pois amanhã ela virá para passar a noite aqui, e se você não gostasse, eu não saberia o que fazer.

– O que? Por que ela vem passar a noite aqui?

– É que amanhã eu ficarei sozinha. Você normalmente não pode vir as sextas-feiras e Pepa está com um problema na granja, também não poderá vir. – Encolheu os ombros, displicente. – Pedi para ela, porque ainda não me encontro muito segura e…

– Por que você não me ligou? Por que não pediu para eu vir? Eu não me recusaria, Eva. Daria meu jeito. Eu sou sua namorada. Não quero essa mulher dormindo aqui!

Depois que eu fiz meu showzinho de namorada ofendida, que reparei ela rindo de mim. Eu não acreditei que ela fez isso, só para ver o que eu falaria.

– Não achei graça nenhuma nisso, Eva.

Virei de costas me sentindo ridícula. Fiquei muito chateada. Ela tentou me abraçar, mas eu não deixei.

– Então, somos namoradas? Vem cá, Olívia. Desculpa, vai. – Ela não parava de rir. O que me deixava com mais raiva.

– É… Eu achava que…

Ela diminuía sorriso nos lábios até reduzir a algo quase imperceptível.

– É, eu também acho que somos namoradas… Sabe por que você não deve se incomodar com Leonor? – Olhei para ela, de cara fechada, mas não respondi nada. – Porque eu digo a ela que sou apaixonada por você e que há muito tempo não me sentia tão feliz. Essa felicidade quem está me dando é você, Olívia.

Ela sabia como me quebrar. Ah, como sabia! Fiquei toda boba com as palavras dela e novamente a abracei.

– Vai ficar sozinha amanhã, mesmo?

– Uhum. – Respondeu me beijando.

– Eu venho ficar com você.

– Não precisa, Olívia. Eu estava brincando com você. Não fico insegura por estar sozinha. Além do mais, sei que amanhã você sai tarde do clube. Não quero que você venha, tarde da noite pela estrada.

– Que nada. São só vinte minutos depois que a gente sai da cidade. Além do mais, eu não perderia a oportunidade de dormir agarradinha com você.

– Mmm… Só dormir agarradinha?

Eva me deu um beijo breve e me sorriu com jeito de sacana. Eu devolvi o sorriso. Fiquei feliz em presenciar esta mudança que acontecia um pouco mais, a cada dia.  Dessa vez, fui eu que segurei sua nuca e beijei com vontade.

– Mmm. Interessante a resposta.

Ela voltou a me beijar, passando as mãos por baixo da blusa, acariciando minha pele e me puxando para a cama. Eu segurei seu movimento. Se bem nos conhecia, depois que a gente deitasse ali, não sairíamos tão cedo.




 



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