Valência

Capítulo 18 – Os amores de Eva

Três dias depois, eu estava às voltas com o empreiteiro e os trabalhadores da obra que contratei para fazer as mudanças na “tienda”. Havia fechado negócio e agora o prédio, da tienda e do apartamento, era meu. Discutia com ele sobre as mudanças na outra loja e quando terminasse, demoliríamos a parede entre elas. Senti o celular vibrar no bolso.

Tirei o aparelho do bolso e vi uma mensagem de Pepa. Fiz um sinal para o empreiteiro, para que me escutasse e não retrucasse.

– Olha só! Quero que faça a obra primeiro na outra loja e depois arrumamos uma forma de quebrar a parede. Não quero fechar a tienda mais que dois dias para fazer os ajustes. Quando acontecer, é para fecharmos e arrumarmos a tienda ao mesmo tempo.

Ele assentiu e eu me afastei para ver a mensagem.

 “Olívia, você poderia ficar com minha mãe hoje à tarde e dormir lá? É que tenho treino hoje e, à noite tem um show que o Lito me chamou para ir. Não tenho quase saído com ele…”

Se eu podia ficar com Eva? Era lógico que sim. Se eu podia dormir lá? Amaria, mas seria prudente? Cada vez mais, eu me segurava para não tentar algo com Eva, esperando a sua plena recuperação. Estava ficando difícil, pois ela, a cada dia, se mostrava mais descontraída e nossa integração se dava de uma forma incrível e gostosa. Tinha dias que me via roubando um beijo dela ou, simplesmente, pegando sua mão e beijando com paixão para, em segundos, acordar para a conversa que travávamos no momento.

“Fica tranquila, tô indo agora para lá.” – Respondi à mensagem.

***

– Oi, Ramona, tudo bem? Onde está sua patroa?

Perguntei, sorridente, assim que entrei, vendo Ramona andar na sala com uma bandeja na mão.

– Ali, Dona Olívia. – Ela esboçou um sorriso, apontando com o rosto, onde Eva estava e continuando a andar em direção ao outro ambiente. Olhei para o lado direito, onde ficava a sala de estar e vi Eva numa poltrona e, na outra, uma mulher que eu não conhecia. Meus olhos se acercaram dos olhos de Eva. Não consegui decifrá-los, mas quando olhei a mulher que a acompanhava no café da tarde, me bateu uma gastura sem tamanho. A mulher era bonita e tinha uma pose de metida enorme. O sorriso que desenhava em seus lábios, não me agradaram em nada.

– Oi, Olívia. Vem até aqui. Quero apresentar uma amiga. – Eva chamou.

Tudo bem. Ela pode ter amigas, mas não gostei dessa mulher. Sorriso fácil demais para o meu gosto. Onde essa amiga estava quando Eva estava na pior? Aproximei-me.

– Olívia, essa aqui é a…

– … Duquesa Leonor de Lerma.

Estendeu a mão para mim em um cumprimento. Ela era pedante. Era o que eu pensava, enquanto decidia se segurava a mão daquela… pessoa. Estendi minha mão e falei meu nome.

– Olívia Ávila.

Fui seca. Olhei o jeito dela, o modo que se vestia, me olhava e olhava para a Eva. Não gostei de nada. Ela se vestia com elegância e não era vulgar. Na verdade, poderia ser até implicância. Porém, imaginem uma mulher visitar a amiga, trajando um vestido em seda perolada, ajustado ao corpo, com mangas a três quartos e sapatos de salto no mesmo tom, às três horas da tarde. Isto me falava que essa mulher devia ser arrogante no último grau. Ela sorria. Tentava ser simpática, mas era uma simpatia que não me agradou.

– Então, duquesa de Lerma, de onde conhece a Eva?

Entrei de sola. Queria saber que amiga era essa que Eva nunca comentou. Tudo bem que, eu e Eva, nunca soubemos muito da vida uma da outra, mas se ela tinha essa tal amiga, era natural que falasse algo. A duquesa sorriu de lado. Esse gesto me fez gostar menos ainda dela. Parecia um sorriso cínico, mas ela se prontificou a falar.

– Eu e Eva nos conhecemos há três anos, mais ou menos, através de relações comerciais. – O sorriso dela aumentou nessa hora. – Estreitamos uma amizade e pelo que vejo, vamos continuar algumas transações… Pretendo comprar o vinho da fazenda “Esperanza”.

– A Eva está se convalescendo, senhora Lerma. Ela não deve falar de trabalho, por enquanto.

– Olívia, – Eva se adiantou e tocou meu braço – a Leonor não veio tratar de negócios. – Falou suave, me olhando diretamente. – Ela veio me visitar, pois soube o que ocorreu. Apenas isso.

Pela primeira vez, depois do que aconteceu, Eva me tocava, me encarava e falava de um jeito íntimo. Amoleci. Olhei-a com ternura, mas o momento se desfez, quando escutei um leve riso vindo da outra.

– Algum problema, duquesa? – Perguntei, irritada.

– Nenhum problema, senhorita Ávila. Só me alegro em saber que Eva está sendo bem cuidada. – Abriu mais o sorriso. – Já vou. Tenho que pegar a estrada para Alicante – Se aproximou dela, segurando as mãos de Eva, ignorando minha presença. – Fica bem, minha amiga. Aproveite. É sua oportunidade de ser feliz.

Deu dois beijos em Eva. Estaria tudo bem se ela não se esforçasse para beijar próximo aos lábios. Meu sangue subiu. Ela não era uma amiga qualquer. Existia uma interação e intimidade, ali. Aquilo me travou a garganta.

A duquesa de Lerma se voltou para mim.

– Foi um grande prazer conhece-la, senhorita Ávila. Fiquei feliz em conhece-la, pessoalmente.

Virou e se foi, deixando um rastro de perfume floral no ar e me deixando atônita. Voltei-me para Eva e ela parecia cansada. Deixou seu corpo relaxar completamente no sofá. Adiantei e sentei a seu lado. Me senti mal por ter agido daquela forma. Deu para perceber que reagi de forma tensa àquela mulher e Eva tentou contornar a situação.

– Me desculpa. Eu não devia ter…

– Você ficou com ciúme de Leonor?

– Ciúmes? Eu? É…

Eva estava apoiada com a cabeça no encosto do sofá e virou em minha direção, sorrindo. Estendeu a mão e tocou de leve meu rosto, deslizando os dedos até parar no meu queixo. Ramona entrou na sala, fazendo com que Eva retirasse a mão num susto. Levantei e me dirigi a Ramona.

– Ramona, está aqui desde cedo, não está? Você aprontou o jantar?

– Sim, dona Olívia. O jantar deve ficar pronto em minutos.

– Quando terminar, pode ir para casa. Eu ficarei com Eva, hoje. A Pepa não poderá vir e eu a substituirei. Pode deixar que, à noite, eu aqueço o jantar.

– Não tem problema mesmo? – Ramona olhou para Eva.

– Não, Ramona. Vá ficar com seu marido. Esses dias tem se dedicado muito à essa casa e tem deixado a sua de lado. A Olívia me faz companhia. – Eva confirmou.

Quando Ramona saiu, me aproximei de Eva e peguei sua mão.

– Eva… eu sei que não devia falar sobre isso, mas… Ah, está tão difícil para mim…

Ela iniciou um carinho com o polegar no dorso de minha mão. Levantou e me puxou para segui-la.

– Vem. Eu fico mais segura para conversar sobre isso no meu quarto.

A segui. O que antes me incomodava, esse jeito de Eva se esconder, começava a não ter importância, diante dos dias que passei no hospital com ela. Eu começava a pensar que esse colapso que ela teve, em parte, era por seus conflitos em relação à ela mesma e o que sentia.

Conheci pessoas que negaram a sua própria sexualidade e tiveram as mais diferentes formas de encarar e reagir. Algumas simplesmente levavam a vida e trabalhavam dentro de si esses conflitos, enquanto outras se sufocavam tanto que, uma hora ou outra, explodiam. A personalidade de cada um era o fator determinante para a forma de se conduzirem, se adaptarem, ou não, a esse casulo imposto socialmente.

É. Eu já não me importava mais em me esconder, contanto que ela ficasse bem e eu junto com ela. Será que eu conseguiria me colocar nesse casulo?

Quando entramos no quarto, ela se voltou para mim, mas mantinha seus olhos no chão. “Não, Eva! Não é assim que eu quero ver você!” Pensava diante das reações dela. “Você é uma mulher forte, poderosa e birrenta. Não é essa pessoa com jeito de derrotada!” Segurei seu queixo e trouxe seu rosto para me encarar.

– Eva, me olha. Eu não quero forçar nada. Não esquenta. Desculpa se demonstrei meus ciúmes com sua amiga.

Ela sorriu.

– Demonstrar seus ciúmes é o de menos, Olívia. Até gostei. – Tocou novamente meu rosto, reparando meus traços. – O que eu não estou conseguindo é ficar perto de você e parar o que sinto.

Eva se voltou e se encaminhou para o meio do quarto. Olhou à sua volta. Seu olhar se perdia entre as mobílias. Continuou a falar.

– Sabe que comecei a fazer terapia, não sabe? Combinei com a psicóloga para vir aqui três vezes por semana, à princípio. Hoje, de manhã, foi a quinta sessão. Eu tenho que fazer o tratamento para a depressão com o medicamento, mas tenho que expurgar meus demônios também. – Suspirou. – Eu não devia, mas estou com horror do meu pai. Não quero vê-lo e tenho medo de encará-lo.

– Deus! O que ele fez com você, Eva?

Aproximei-me e a abracei por trás. Não resisti. Ela se encostou em mim e deixou que eu a embalasse.

– Você não é a primeira mulher pela qual me apaixonei.

“Isso eu já desconfiava. Do jeito que chegou junto…” Pensei. Deixei que ela contasse sua história.

– Você a amou muito? – Perguntei, incentivando-a.

– Eu era adolescente. Eu não sabia muito bem o que começava a sentir, mas sim. Eu me apaixonei perdidamente por ela e ela por mim. Nós duas estávamos atingindo o topo do ranking na esgrima. Eu no florete e ela na espada. Nos encontrávamos sempre em competições e fomos criando laços. Ela passou a frequentar minha casa e eu viajava para passar fins de semana na Itália, na casa dela. Estávamos nos relacionando há dez meses, porém sabíamos que não poderíamos contar a ninguém. Ninguém aceitaria. Certa vez, Antonella veio passar o fim de semana na minha casa. Estávamos felizes. Nós duas havíamos nos classificado para a Olimpíada. – Eva estremeceu em meus braços. Estreitei-a mais no abraço. – Eram onze horas da noite e Antonella sempre dormia no meu quarto, com a desculpa de que queríamos conversar. Eu achava que todos já tinham se recolhido. Meu pai abriu a porta. Estávamos nuas e… Enfim, não haviam desculpas.

A voz de Eva havia assumido um tom embargado. Tentei virá-la em meus braços, mas ela os segurou, levando-os para enlaçar sua cintura, voltando a encostar em meu peito. Ela não queria me encarar, naquele momento. Não insisti. Apoiei meu queixo em seu ombro, encostando meu rosto no dela.

– Ele a colocou para fora do quarto nua, aos berros. Chamava a nós duas de vagabundas e outros xingamentos. Minha mãe se encarregou de Antonella, levando-a para o outro quarto. Ela conseguiu tirar minha namorada de casa, antes que meu pai terminasse de me surrar. Deu-lhe dinheiro e mandou o administrador da granja, na época, leva-la para o aeroporto e comprar uma passagem para que ela voltasse à Itália. Se não fosse por minha mãe, talvez o meu caso com Antonella viesse a público, tamanha ira de meu pai.

– Ele bateu muito em você? – Perguntei com a voz contida.

– Naquele dia, eu vi o quanto ele media suas ações. Ele me deu um soco no braço e um chute na perna, mas de repente, vi ele entrar no banheiro e quando voltou, tinha uma toalha molhada na mão.

– Ele lhe bateu com uma toalha?

– Você sabe que dependendo de como faça com uma toalha molhada, não fica marcas, não é?

Vi um sorriso amargo se fazer nos lábios de Eva.

– Eu me sentia angustiada. Sabia que tinha feito algo errado.

– Você não fez nada errado, Eva! – Falei mais intensamente do que gostaria.

– Ah, Olívia! Como eu queria entender isso naquela época… Mas eu achava, verdadeiramente, que tinha feito algo errado. A dor da surra que ele me deu, se somou à angustia de me condenar pelo que fiz e, também, por não saber o que tinham feito com Antonella. Uma semana trancada no quarto, sem ver ninguém, me deixou com muito medo. Achei que ele me trancaria para o resto da vida. Nem minha mãe podia me ver, pois ele não gostou que ela tivesse ajudado Antonella. Depois de uma semana, era minha mãe que eu via e me dizia as decisões que ele tomava. Foi quando descobri que estava noiva de um homem muito mais velho.

– Você se casou com esse homem sem nunca tê-lo visto?

– Conheci uma semana antes do casamento. Eu chorava dia e noite. Quase não podia sair de casa. Incrivelmente o meu casamento foi a minha sorte, apesar de ter passado o pior mês da minha vida, ao lado daquele homem. Ele me procurava todas as noites e depois, eu não conseguia mais dormir. Ele roncava como um porco, após se satisfazer comigo. Mal conversávamos. – Uma lágrima escorreu dos olhos de Eva.

– Shiii. Não precisa contar mais nada. – Falei em seu ouvido.

– Eu quero contar. Eu preciso…

– Tudo bem, mas se não estiver se sentindo bem, me avisa que a gente para com essa conversa.

Eva acenou com a cabeça.

– Eu descobri que estava grávida pouco mais de um mês depois do casamento. José ficou radiante e eu arrasada, só que numa guinada do destino, tudo mudou. Ele sofreu um acidente no trabalho e morreu. Eu me vi herdeira de um homem que veio do nada e construiu uma boa fortuna. Meu pai não esperava. No final, eu não dependia mais dele e tinha toda liberdade do mundo. Isso o enfureceu. Quis que eu voltasse para casa, mas não aceitei. Foi quando ele proibiu minha mãe de me ver. Eu era uma menina. Estava assustada com tudo. Minha filha foi a minha companheira durante o seu primeiro ano de vida. Comecei a pensar nela e nas coisas que faria para que ela tivesse a liberdade que eu não tive. As pessoas encaravam a minha reclusão como um choque, a respeito da morte de meu marido, e meu pai, alimentava essa ideia.

– E por que voltou para casa?

– Por conta de minha mãe. Ele não a proibia mais de me procurar, depois de um ano de vida de Pepa, mas se tornou tão irascível que começou a bater em minha mãe. Não a ecava, mas vez ou outra dava um tapa no rosto ou nas costas. Pancadas cada vez mais fortes, ao ponto dela deslocar o ombro numa das vezes. Ela começou a me pedir para voltar. Achava que se eu aceitasse, ele pararia com as agressões. Acabei cedendo. Voltei a morar com eles.

– Eva, seu pai é doente. Isso é doença…

– No início, ele não falava muito comigo, mas não me afrontava, ou agredia. Sempre tratou Pepa com carinho. Aliás, ela era a única que conseguia tirar um sorriso dele. – Eva deu uma pausa, talvez cansada de toda a sua história, mas continuou. – Ele não me perguntava sobre o que fiz com os bens de José, mas passou a insinuar que o ajudasse na granja.

– Financeiramente?

– À princípio, não. Eu estava fazendo faculdade na época. Um dia, ele pediu para que eu visse os livros-caixa. Quando eu peguei e os analisei, vi que estávamos falindo. Foi quando pediu para eu ajuda-lo, financeiramente. Ele sabia que eu tinha herdado alguns bens, mas não sabia quanto.

– Isso deveria mata-lo.

– Injetei dinheiro na granja, mas não muito. O suficiente para nos tirar do vermelho. Comecei a vasculhar as documentações, transações e, por fim, percebi que nosso administrador nos roubava. Mostrei para meu pai. Ele demitiu o homem, mas não o acusou na justiça. O homem sabia de podres da nossa família. Foi quando eu comecei a administrar a granja. Quando Pepa fez sete anos, minha mãe faleceu. O que antes era suportável, nas agressões verbais dele e insinuações de ameaça, dizendo que iria mostrar para Pepa quem eu era de verdade, piorou. A morte de minha mãe mexeu com ele.

– Eva, já parou para pensar que seu pai tem algum problema psiquiátrico?

– Já pensei em tanta coisa, Olívia… Mas a verdade, e estou vendo isso hoje; é que a doença dele, seja lá qual for, me tornou uma mulher doente também.

Eva se desprendeu de meus braços e voltou-se de frente para mim. Fez menção em me beijar e recuou. Acariciou meu rosto e passou o polegar sobre meus lábios. Seus olhos se fixavam na minha boca, mas parecia que ela travava uma batalha. Não me beijava e também não conseguia desprender os olhos.

– Tem medo de mim? – Perguntei.

– Não, Olívia. Eu não tenho medo de você. Tenho medo de mim e das consequências. Toda vez que me deixei levar por “isso” que sinto, coisas ruins aconteceram.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.