No dia seguinte na parte da manhã, Carmem surpreendeu-se quando a mãe apareceu na empresa. Não eram nem nove horas ainda. Ergueu-se falando preocupada.
– Mamãe? Aconteceu alguma coisa?
– Não aconteceu nada.
Alice respondeu sentando diante dela.
– Então? O que faz por aqui?
– Faz seis meses que está vivendo com aquela mulher.
– Eu sei muito bem disto.
Alice retirou a cigarreira da bolsa lentamente. Carmem estava quieta ouvindo com atenção.
– Depois disto você mudou radicalmente.
– Está enganada. Eu não…
– Você vive calada pelos cantos. Meteu-se em um mundo que não consigo te alcançar. Nunca mais consegui ter uma conversa como tínhamos antes. Continua indo lá em casa, mas quando lá está, não está de corpo e alma.
– Que ideia! Está vendo coisas mãe, eu ainda sou a mesma…
– Não é não! Sinto muito que não veja o que aquela mulher fez com você.
– Essa conversa de novo? A senhora podia virar o disco.
– Estou falando que você foge de mim.
– Mãe…
– Se envolveu demais com ela e não quer admitir.
– Eu só não tenho vontade de falar sobre este assunto.
– Não tem porque foge da verdade!
– Quando tudo isto começou eu tentei explicar, não se lembra?
– Sobre suas necessidades e anseios de mulher? Lembro sim! No início deve ter sido isto mesmo, agora tudo mudou porque você se apaixonou!
Carmem afastou a cadeira se erguendo. Foi até a bolsa onde pegou um cigarro.
– Por quê? Por que deixou isto acontecer?
Alice perguntou exaltando-se.
– Não acredito que esteja apaixonada por ela. Mesmo que eu esteja, isto não é algo que eu poderia ter evitado.
Carmem respondeu sem olhar para mãe.
– Ah, Carmem, você…
– Nem sei se é paixão!
– Talvez seja pior.
Acrescentou a mãe sorrindo desgostosa.
– Talvez seja amor, Carmem! Se for vai ficar para sempre se deixando usar por aquela aproveitadora.
Voltou a sentar abrindo a agenda. Não conseguia olhar para a mãe. Um turbilhão de emoções lutava em seu íntimo.
– Olhe para mim!
Alice exigiu enérgica.
Carmem ergueu os olhos fitando-a sem poder fugir.
– Sei que teve casos passageiros no passado. Deve ter pensado que seria a mesma coisa. Teria só que transar e mais nada, mas perdeu o controle das emoções. Você caiu de amores por ela e agora tem medo até de me olhar nos olhos.
– Veio aqui jogar isso na minha cara? Acha que tenho culpa do que eu sinto?
– Eu só não queria que tenha sentimentos nobres por ela. Não vê que ela só está te usando para obter prazeres sexuais de graça?
– De graça? Ora…
– Por acaso ela te paga?
Alice perguntou ansiosa.
– Não é isto mãe, como pode falar assim comigo? Não vê que eu faço tudo para vocês terem o que necessitam?
Questionou admirada.
– Antes foi por nós, ainda é?
– Ela nos emprestou o dinheiro. Vou pagar tudo a ela. Já se esqueceu disto?
– É claro que não esqueci! Você deve dinheiro e vai pagar com juros. Portanto, ela está te usando como se fosse uma prostituta!
– Mãeeeeeeeeeee!
– Ser lésbica é uma coisa! Prostituta é outra bem diferente!
– Mas, por que…
– Esqueceu-se como foi parar na cama dela? Não escolheu nem desejou isto. Ela te obrigou, lembra-se?
– É claro que me lembro! Mas, que droga mãe! Por que está me crucificando assim? Não percebe o quanto é difícil para mim?
– Tão difícil quanto da primeira vez?
Os olhos de Carmem cintilaram antes de fugir dos da mãe. Abriu uma gaveta procurando pelo isqueiro que não encontrou na bolsa. Achou-o em seguida acendendo o cigarro. Ao acendê-lo percebeu como suas mãos tremiam sem controle. Abaixou-as rápido para que a mãe não visse. Percebeu que não podia enganá-la quando a ouviu afirmando ironicamente.
– Só de falarmos sobre ela já se descontrolou toda. Treme mais do que uma gelatina. É assim que fica quando estão juntas?
– Meu Deus…
– Precisa se mostrar tão vulnerável? Não é de estranhar que ela tenha deixado você completamente louca de amor!
– Não estou louca de amor. Também não quero mais falar sobre este assunto. Não quero brigar com a senhora. Tenho milhões de coisas para fazer. Passarei em casa mais tarde, por favor, deixe-me trabalhar!
Pediu indo até a porta.
Alice caminhou de cabeça erguida até a porta. Ali parou fitando-a profundamente.
– Antes de ficar triste comigo, pense que só desejo o seu bem. Até a noite!
Carmem fechou a porta voltando para a cadeira. Não tinha como negar que sentia coisas loucas por Marcela. O desejo que sentia agora era incontrolável. Nem sabia mais se conseguiria pagar a dívida sumindo depois da vida dela. Talvez pudesse sumir da casa dela, mas da cama, achava impossível. Pensava nela o tempo todo. Isto a perturbava profundamente. Ansiava por correr para casa porque sabia que ela a esperava. Bastava olhar para ela para sentir as coxas úmidas. Nenhuma outra mulher causou aquele efeito devastador sobre ela. Passou a mão na testa de onde começava a brotar gotas de suor. Aquilo não era amor ou seria?
Ouviu uma batida leve na porta. Girou a cadeira voltando-se e deu com Maria entrando com sua costumeira expressão séria.
– Bom dia!
Maria cumprimentou-a sentando diante dela.
– Bom dia!
– Vim saber se leu o relatório e o que achou do crescimento das vendas nestes seis meses.
– Eu li sim, Maria.
Abriu a gaveta pegando a pasta com um sorriso.
– Estou muito satisfeita com os índices. Ia mandar chamá-la. Acabei de expedir uma ordem para reativar o galpão 9. Quero que mande sua equipe agir imediatamente. Quero colocá-lo em funcionamento o mais rápido possível. Eu te dou carta branca para contratar quantos funcionários forem necessários.
– Será feito! Vou mandar redigir outro contrato. Pode ser?
– Perfeitamente.
Maria sorriu observando-a silenciosa.
– Também quero te dar os parabéns pelo excelente trabalho que tem feito aqui, Maria!
– Obrigada! Quem sabe possamos jantar hoje para comemorar tanto sucesso.
– Oh, não!
– Não?
Maria perguntou estranhando o tom taxativo
Carmem observou que Maria estava novamente vestida de preto. Usava uma bota italiana diferente a cada vez que a via. Era uma mulher interessante, alta e elegante. Os cabelos pretos e sedosos, o rosto delicado ficava encantador quando ela sorria. A marca de cigarros que ela fumava era a mesma que Marcela fumava. Achava aquilo cada vez mais estranho. Será que ela era a espiã de Marcela ali na empresa?
– Eu vivo com uma mulher.
Carmem explicou olhando-a nos olhos.
– Calculei que sabia. Prefiro voltar logo depois do trabalho. Sei que ela está sempre em casa.
– Te esperando, suponho. Bom, isto explica tudo.
– Pois é.
Maria sorriu cruzando as pernas charmosamente.
– Ocorreu-me que pensa que a convido para jantar com segundas intenções.
– Não pensei. Eu…
Maria voltou a falar sem permitir que Carmem continuasse.
– Também tenho uma mulher, Carmem. Costumo me sentir só porque ela não vive no Brasil. Na realidade estávamos em negociação para ver quem iria ceder. Para o meu alívio ela aceitou vir viver comigo. Estamos juntas há dez anos. A gente começa uma relação encantada com o sexo e a excitação do início, mas só o tempo trás a maturidade de um amor verdadeiro. E claro, de um relacionamento sólido. Qualquer dia você vai conhecer a minha mulher. Ela é muito apegada à casa que tem na Itália. Faz muito tempo que vive com essa mulher?
– Seis meses.
Carmem deu a resposta calando-se.
– Não quer falar, eu entendo.
– Não é isto. Fico realmente feliz por saber que você é comprometida. Às vezes sinto vontade de conversar com alguém em que possa confiar. Acontece que sobre este assunto não me sinto confortável para falar.
– Tudo bem. Foi bom conversar com você.
– Também gostei.
Carmem sorriu mais relaxada.
– Bom, vou colocar a mão na massa. Com licença!
Sua cabeça fervilhou de ideias o resto do dia. À noite quando entrou na casa da mãe mal conseguiu olhar para ela. Sabia que estava com a consciência pesada por não ter falado sobre seus sentimentos. Simplesmente não conseguia falar sobre o que sentia por Marcela com ela nem com ninguém.
Quando entrou na casa de Marcela levou um susto ao chegar à sala. Viu uma mulher toda de preto servindo um drinque no barzinho. Olhou em volta à procura de Marcela, mas não a viu. Deu um passo olhando a mulher ainda admirada. Ela se voltou com o copo na mão. Quem seria? Por que Marcela não falou que teria uma convidada para jantar? Enquanto a olhava emudecida, viu-a colocando o copo sobre a mesa, caminhando na sua direção. Pode ver seu rosto, permanecendo imóvel até que ela parou à sua frente. Ela não era exatamente bonita, era diferente. Não pode ver seus olhos porque usava óculos escuros. Os cabelos eram curtos, batendo nos ombros. Era alta, da sua altura. O andar lembrou o de Marcela. Andou sem fazer nem um ruído. Observou que os traços do rosto eram delicados. Os lábios eram finos, mas tinha uma boca marcante. Parecia ter personalidade. Provavelmente ela devia ter uns quarenta e poucos anos. Sentiu o perfume quando ela aspirou profundamente dizendo num tom suave.
– Suponho que seja Carmem.
– Sim, sou.
– Deve estar se perguntando quem sou eu.
Comentou divertida.
– Na verdade estou mesmo.
– Eu devia ter imaginado que ela não diria a você da minha chegada.
– Marcela?
– Sim, Marcela!
Respondeu estendendo a mão começando a tocar o rosto de Carmem suavemente. Tocou a pele, o nariz, a boca, as sobrancelhas e os olhos. Então retirou a mão dando um sorriso.
– Você é bonita.
Virou-se voltando tranquilamente até a mesa, onde tinha deixado o drinque. Pegou indo sentar na poltrona confortável.
– Fique à vontade. Deve estar louca por um banho.
Carmem de boca aberta se perguntava quem seria ela. Teria que dormir com ela também? O que estaria acontecendo ali?
– Não fique tão assustada.
Ela voltou a falar.
– Sou Telma Alvarez, a tia de Marcela. Cheguei agora do aeroporto e não encontrei ninguém em casa. Pensei que Marcela estaria me aguardando. Giana acabou de me informar que ela se atrasou, mas já deve estar para chegar.
– A senhora é a tia dela?
Perguntou se aproximando sem graça.
– Desculpe, agi feito uma tola.
– Querida?
Ela sorriu falando suavemente.
– Está tudo bem. Suba para se refrescar e venha tomar um drinque comigo.
– Eu já volto. Com licença!
– Tem toda.
Subiu rapidamente indo direto tomar o banho. Escolheu um vestido branco muito sexy. Olhou-se no espelho sorrindo satisfeita. Quando voltou à sala Marcela se ergueu comentando.
– Boa noite, Carmem! Soube que já se conheceram. Esqueci-me de mencionar sobre a chegada da minha tia. Espero que me perdoe por essa indelicadeza.
– Boa noite, Marcela! Não tem problema.
Carmem estacou vendo-a caminhando na sua direção. Marcela se aproximou erguendo a mão até o seu rosto. Acariciou sua face suavemente.
– Tem certeza querida?
– Sim.
Carmem respondeu sem jeito olhando na direção da tia pedindo baixo no ouvido de Marcela.
– Não me toque assim. Olhe a sua tia, eu tenho vergonha.
Marcela apenas sorriu estendendo o rosto. Carmem beijou-lhe a face afastando-se em seguida. Foi até o bar seca por um drinque.
– Posso servir uma dose para vocês?
Carmem perguntou gentil.
– Eu aceito.
Telma respondeu.
– Eu aceito também, Carmem.
Serviu os drinques indo sentar com elas. Marcela a olhou profundamente quando recebeu o drinque. Pegou o drinque da tia colocando-o na mão dela. Carmem observou Telma sorrir enquanto olhava em volta.
Marcela cruzou as pernas graciosamente enquanto tomava um gole do drinque. Carmem acompanhou o movimento sentindo o corpo todo reagindo com a visão das belas pernas. Marcela usava uma saia de couro incrível. Imaginou onde a secretária dela comprava roupas tão lindas. Era extremamente feminina. Ninguém que cruzasse com ela poderia imaginar que era lésbica. Olhou para a tia notando que também era muito feminina.
Sorriu perguntando para quebrar o silêncio.
– Faz muito tempo que a senhora não vem ao Brasil?
– Por favor! Não me chame de senhora, apenas Telma.
– Desculpe.
– Não tem importância. Faz já meses que estive aqui. Depois que Marcela assumiu a companhia decidi passar um tempo com ela. Desta vez vim para ficar.
– Ah, sim!
– Tudo é como tem de ser.
Acrescentou tomando um gole do drinque.
Telma simplesmente se calou. Marcela também era assim. Costumavam passar longos momentos em silêncio, era desconcertante. Talvez por ter crescido numa casa barulhenta com um irmão e uma irmã que estavam sempre discutindo, estranhava toda aquela paz. Marcela devia ter aprendido com a tia. Notou que ela a observava atentamente neste momento.
Voltou-se perguntando delicadamente para Marcela.
– Teve um bom dia?
– Não, infelizmente longe de você, as horas se arrastaram.
Respondeu percorrendo o corpo Carmem com os olhos carregados de desejo.
– Fico melhor quando te reencontro.
Carmem arregalou os olhos, olhando sem jeito para a tia dela. Telma sorriu levando o copo aos lábios. Sem jeito Carmem tentou consertar a situação.
– Logicamente é melhor quando podemos voltar para casa.
– É verdade, mas realmente anseio voltar para você.
Marcela enfatizou olhando-a profundamente.
– Marcela, por favor!
– Não se preocupe Carmem, Marcela sempre foi espontânea ao extremo. Estou feliz por estarem juntas. Preocupava-me imaginando-a sozinha neste casarão. Ainda falam coisas absurdas sobre ela?
– Sim. Cada vez mais.
– As pessoas são estranhas.
Sorriu balançando a cabeça.
– A luz sempre incomodou os meus olhos. Não nasci cega, mas fui perdendo a visão com o passar dos anos. Antes podia ver algumas sombras, hoje já não vejo nada.
– Eu não sabia.
Carmem lamentou surpresa.
– Imaginei que não soubesse.
Então era a tia que era cega, pensou admirada. Por isto Marcela se acostumou a viver no escuro. Não tinha nada de errado com ela.
Soltou um suspiro ouvindo novamente a voz da tia.
– Marcela cresceu em uma casa escura. Logicamente culpa minha, em minha casa só usava velas para não agredir meus olhos. Também essas luzinhas que ainda devem estar por aí nos rodapés das paredes que não me servem para mais nada. Resolvia quando podia ver sombras. Você deve ter estranhado muito no início.
– Sim. Custei a me acostumar.
– Mas se acostumou. Justamente por isto vou morar aqui. Conheço a casa e não tenho dificuldade para andar. Deus, no entanto, deu-me uma compensação, encontrei alguém que me ama como sou.
– Não diga isto.
Carmem comentou impressionada.
– É a verdade. Quem em seu juízo perfeito se apaixonaria por uma cega?
– O amor é misterioso, não se explica.
Carmem retrucou sorrindo. Certamente era o seu caso, do contrário não sentiria as coisas que sentia por Marcela.
– Exatamente!
Telma sorriu cheia de vida.
– Nós logicamente não somos vampiras de espécie nenhuma. Ninguém é um vampiro porque gosta de vestir roupas pretas.
– Isto nunca me passou pela cabeça.
– Na sua pode ser que não Carmem, mas passa pela cabeça das pessoas. Conheço a curiosidade doentia em torno da imagem de Marcela. Não desaprovo seu comportamento. Vivemos em um mundo muito perigoso. Ela não será vitima de nenhum sequestro ou coisa pior. Agora deixarei vocês. Tenho um encontro ao qual não posso faltar. Pode me acompanhar até o carro, Marcela?
– Claro que sim.
– Até amanhã, Carmem!
– Até amanhã, Telma!
Ficou olhando Telma caminhar sem precisar ser guiada. Foi até à janela vendo o motorista abrindo a porta do carro. Elas se abraçaram por alguns segundos, depois Telma entrou no carro indo embora.
Continua…