O RESTAURANTE

Revisão: Nefer.

Olá, pessoal! Resolvi postar uma crônica sobre o como e o porquê de eu me dedicar à Gastronomia. Um pedaço da minha história que guardo com carinho e compartilho com vocês hoje, que é o meu dia. 

Espero que gostem. Bom fim de semana!

Para quem é um pouco mais velha, ou lê sobre economia, sabe que no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso tivemos uma série de mudanças até chegarmos a moeda atual: o Real. Após a mudança, o governo tentou sustentar a paridade cambial com o dólar, ou seja, R$1,00 valeria a US$1,00. Infelizmente, isso é impossível no mundo da economia para um país de terceiro mundo emergente.

Por ocasião de um intercâmbio, ao pisar em Portugal, que na época ainda não tinha Euros, e sim Escudos, a situação cambial do Brasil mudou, literalmente, da noite para o dia: seria preciso R$2,00 para comprar US$1,00. O resultado prático na minha vida de estudante pobre que mora longe? Meu dinheiro virou metade…

Ao ligar para meu pai, choramingando com a situação, ele disse:

– “Minha filha, ou você arruma um emprego, ou volta pra casa”.

– Ok, vou ver o que faço aqui – Respondi. Mas, na verdade, pensava: Voltar? Nunca!

E assim começou minha saga atrás de estágios. Meu curso de Administração de Empresas tinha disciplinas espalhadas por todos os dias da semana, nos períodos matutino e vespertino. Esperança “zero” de achar quem me contratasse, com horários tão malucos.

Meu dinheiro daria para o aluguel, eu precisava de um trabalho que pagasse a comida e as saídas do fim de semana. Um salário mínimo resolveria a minha vida, isto é, um subemprego.

Minhas colegas eram contratadas como faxineiras, camareiras em hotéis, ou garçonetes em restaurantes, basicamente. Uma delas sugeriu que eu fosse até o local conversar com a gerente, pois estavam contratando pessoas para o salão e para a cozinha.

Ao chegar ao Pasta Caffée, fui recebida por uma das colegas, uma animada recifense. Me direcionou ao segundo andar, à sala da gerente. Esta era uma moça com poucos anos a mais que eu, na ocasião, e uns dez centímetros a menos. Com um ar arrogante, se mexeu na cadeira de rodízio, virando-se para o meu lado. Perguntou meu nome, se eu tinha visto de trabalho. Estendi meu passaporte, que ela pegou e analisou rapidamente.

– O que queres fazer aqui no restaurante? – Manoela perguntou.

– Não sei, talvez garçonete? – eu disse, pensando nas gorjetas.

– Não temos vagas para garçonete, mas se quiseres ser auxiliar de cozinha, podes começar na segunda mesmo – a gerente propôs.

Olhei para o passaporte em minhas mãos, a antiga capa verde bandeira, com estampa dourada. Não demorei nem dez segundos para responder:

– Pode ser, só que eu não sei cozinhar profissionalmente. Só cozinho pra mim, na minha casa, quero dizer.

– Não te preocupes, terás um treinamento com a Guida. Anda lá na cozinha que ela vai te explicar tudinho. Dá cá teu passaporte pra eu andar com os papéis. – Finalizou.

Keila, a recifense, muito enxerida, aguardava do lado de fora da sala, com um sorriso de quem havia escutado toda a conversa.

– Vem, vou te levar lá na cozinha!

Ao voltarmos para o térreo, me dei conta de que a cozinha era aberta. Quase tudo lá dentro podia ser visto a partir do salão.

– Guida, meu amor, venha cá! – Keila gritou. O restaurante ainda estava fechado. Esta é minha amiga, Natália. Manoela me pediu pra te apresentar, que tu ia cuidar dela, visse? É tua nova auxiliar de cozinha.

– Olá, como estás? Natália, não é? Eu sou a Guida. Dizem que sou a chefe da cozinha, entretanto já não cozinho, só gerencio. Venhas amanhã às 17h. Teu turno começa aí e vais até às 23h. Tens 30 minutos para jantar, e prefiro que seja antes de começares. Podes pedir qualquer coisa do cardápio. Volta lá e dizes à Manoela pra te providenciar um uniforme. – A mulher me instruiu.

Acenei com a cabeça e fiz o que ela pediu. Recebi um abraço apertado da garçonete amiga e das outras colegas, me desejando sorte.

De volta na segunda-feira reparei melhor no local. O restaurante pertencia a um centro comercial, mas sua porta dava para a rua. Na entrada, um salão comprido levemente a esquerda, com cerca de 10 mesas duplas, que acomodaram de quatro a seis pessoas. Ao fundo, mais à direita, antes da cozinha, o bar. À minha frente, a escada que subi para ir à gerência. Toda em madeira escura, imponente. No meio do caminho, também à esquerda, um mezanino, com umas 5 mesas para duas a quatro pessoas. E ao final da escada, um salão em “U” com mesas para oito a dez lugares. Na curva, um bar momentaneamente desativado e uma porta para os vestiários, estoques e copa. No fim de um dos lados, a sala da gerente.

Assinei alguns papéis, peguei meu uniforme e fui me trocar. Deixei minhas coisas no armário, coloquei meu pesado cabelo, ainda comprido, dentro da touca descartável, e me dirigi à cozinha. Fui apresentada aos colegas de vários países de colonização portuguesa. Guida me mostrava o cardápio do restaurante italiano, que quase pendia para um fast-food, e explicava como tudo funcionava muito rapidamente.

Eu, que até então era estagiária de consultoria financeira, e minha vida se resumia a um emaranhado de planilhas, tentava acompanhar sua fala. Logicamente, não guardei 20% das informações. Ela me largou ao cargo do líder do setor e se foi.

Depois de achar que tinha feito muita vantagem, comendo um prato do cardápio no refeitório dos funcionários, enfim encarei a cozinha.

Inevitável mesmo foi o local para onde me enviaram: a copa. Em uma cozinha, quem não sabe cozinhar, lava a louça e limpa. Após uma rápida explanação sobre o funcionamento da máquina de lavar louças, comecei meu trabalho, em ritmo caseiro.

Para minha falta de sorte, comecei a trabalhar em uma segunda, dia da promoção do cinema. O recinto estava bufado de gente que queria jantar rapidamente para pegar a última sessão do dia. A louça brotava por todos os caminhos: monta-carga*, porta do segundo andar. Eram pratos, talheres, formas, panelas. Eu nem sabia por onde começar! Com muito custo e ajuda dos colegas, eu terminei o serviço de limpeza.

Cheguei em casa morta! Só tomei banho porque não ia conseguir dormir com aquele suor misturado ao cheiro de comida no corpo. A última a tomar banho no dia, depois das vinte mulheres… O banheiro era impossível de se pisar sem um par de chinelos. Dormi quase que instantaneamente, depois de acertar o relógio para o horário da aula da manhã seguinte.

Acordei com muito custo. O corpo doía e senti vontade de chorar. Parecia que eu tinha ido a uma romaria a pé para Aparecida do Norte. Sentada na cama, olhei para minhas mãos, que pareciam inchadas. Tentei fechar o punho e não consegui. Outro nó na garganta. Respirei fundo e mentalizei meu sonho de uma vida. Abri as estreitas e altas portas da pequena sacada. Instantaneamente as fechei, em virtude do ar gelado. Me senti uma criança birrenta, não queria tirar o pijama e nem ir à escola. Impossível! Já tinha caído de turma uma vez por causa da Estatística, e estava caindo de novo pelo ano fora do país. Precisava passar naquelas disciplinas ou iria demorar outro ano para me formar, três a mais que o normal. Meus pais me matariam, com certeza!

Imbuída desses pensamentos, coloquei a roupa por cima do pijama e me dirigi à faculdade. O dia passou e eu nem vi. Já estava na hora de ir para o trabalho novamente.

Os dias se sucederam, e com eles comecei a me acostumar ao ritmo pesado da cozinha. Quando já estava esperta com a louça, Guida resolveu que era hora de me ensinar a fazer saladas. Delas, pulei para as massas recheadas, e depois para as pizzas. Fiquei meio agarrada na função de retirar os produtos do forno, já que ele era de esteira. Se perdesse o tempo de retirar um, todos se encavalavam, derramavam, e até queimavam. Foi um processo aprender a lidar com aquela pinça que pegava formas e travessas. Luvas e panos de prato para isso? Nem pensar!

Por fim, cheguei ao fogão. Até então, minhas funções incluíam a limpeza. Alguns dias na copa, outros somente no setor. Já quem estava no fogão ganhava outra responsabilidade: pesar e anotar o estoque. Eu lido com balanças e taras de embalagens desde que me entendo por gente. Meu pai teve mercearia, supermercado, e eu sempre fui balconista. Terminei os pedidos da noite e com uma alegria pueril fiz o estoque inteiro rapidamente. Voltei para ajudar na limpeza da geladeira que iria acomodar todas aquelas vasilhas contendo os ingredientes.

Um colega, vendo a velocidade do meu trabalho com os números, mesmo sem calculadora, indagou:

– Ó, pá, já terminaste aí o teu trabalho?

– Sim, foi tranquilo. – respondi.

– Fogo! Tens é uma máquina nessa cabeça, ó menina! – Toni exclamou. – Já que gostas tanto assim dessas contas, podes ficar com a parte que me toca. Manoela vive me pegando pela gola, diz que minhas contas nunca estão corretas.

– Eu posso fazer, sem problemas, mas o que eu ganho com isso? – questionei rindo, fazendo piada.

– Olhe pra isso… Tá bem, tá bem! Eu limpo a tua parte. Que dizes? – o rapaz moreno propôs.

Eu, que não esperava aquela proposta, mais que depressa aceitei. Nem acreditei que iria me livrar da limpeza. Era só o fogão, o banho-maria** e pronto. Que felicidade!

As contas do estoque batiam, eu me sentia menos cansada. Aquele rapaz alegre da boate se tornou “meu namorado” para as pessoas em geral. Mas, isso é outra história. Ele ia sempre ao restaurante comer às minhas custas. Era um trato nosso: ele comia lá de graça, e o valor da conta, me pagava em bebidas nas nossas noitadas.

Uns três meses depois da minha entrada, já chefiava informalmente a cozinha. Guida pode mudar de turno com tranquilidade, e ficar mais tempo com os filhos. Logicamente, eu não ganhava por isso. Continuava com meu salário mínimo ao fim do mês. E assim foi até eu trocar Lisboa por Londres. E Londres pelo Brasil no fim do ano.

Ao voltar, um pouco mais experiente nessa vida de cozinheira, em uma entrevista para um jornal local, me perguntaram:

– Como você soube que era isso que queria fazer da vida, já que sua formação era totalmente diferente?

Parei, refiz todo esse caminho. E me lembrei de um momento único, daquele que tomei a decisão da mudança de profissão. Eu estava na cozinha do Pasta quando meu amigo chegou. O salão estava vazio, então tirei meu avental e fui ao salão anotar pessoalmente seu pedido. Um pouco irritada, eu disse:

– Ai cara, você bem que podia deixar pra jantar aqui na minha folga, né? A gente nunca janta juntos!

– Ora pois, Naty, sabes o que é? Eu já vim aqui diversas vezes quando tu não cozinhavas, e não gosto da comida desta malta***. Teus pratos são os mesmos, no entanto são diferentes, bem melhores, eu diria.

Sorri em agradecimento, voltei para a cozinha feliz, como há muito não me sentia. Uma sensação de estar no caminho certo, e de que aquela decisão tomada de forma tão displicente, em apenas dez segundos mudaram minha vida para sempre.

  • Fim!

*Elevador pequeno usado em cozinhas industriais, para transporte de itens pesados, de um piso para outro.

** Equipamento com água quente que se utiliza para manter pratos aquecidos ou aquecer rapidamente alguns alimentos.

*** Povo, bando.

 

 

O que achou deste texto?

© 2015- 2020 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.