A RITA

Revisão: Nefer e Carolina Bivard

Hoje, em meio à suposta volta da nossa cidade para uma “quase normalidade” da fase amarela – na marra, que seja dito – comemos, pela primeira vez, fora de casa desde março.

Estávamos, há mais de quatro horas fora, a trabalho, e havíamos tomado café da manhã, há quase seis horas. Nossa morada é no limite da cidade, há 500 metros da zona rural. Estamos longe de tudo. E, mesmo por isso, tentamos nos resolver todas as vezes que saímos. Com a pandemia, quase não saímos, somente para compras, entregas de encomendas e eventualmente, para atender alguma demanda dos meus sogros, que são idosos.

Voltando ao fato de termos comido fora de casa. No supermercado, onde estamos acostumados a comprar, há um pequeno restaurante onde são servidos lanches, salgados e almoço. Este último, não sei se já voltou a funcionar. E hoje, pela primeira vez, a lanchonete estava funcionando. Poucas mesas, distanciadas. Uma sensação de quem não teve dinheiro pra comprar mesas para encher o salão. Não é este o caso. Só uma impressão mesmo.

Um lugar que, antes estava sempre apinhado de gente, era deserto. E era a única opção para saciar aquela fome de quem saiu de casa há quatro horas, e tinha a expectativa de ficar fora, pelo menos, mais três.

Entramos no local quase deserto. A exceção eram as duas atendentes: uma no balcão e outra no caixa. Após o pedido, nos sentamos em uma mesa no canto. Uma daquelas mesas de quatro lugares que se vende em todas as lojas de magazines, com o pé de metal e o tampo de granito. As cadeiras tentam ser confortáveis, mas não conseguem. Na verdade, nem acho que tentam. A ideia é ser algo mais próximo às cadeias de lanchonetes importadas, que querem mandar logo os clientes embora, de modo que outros se sentem e comprem sempre mais. E nessas, nunca nos damos conta daquilo que comemos.

Voltando à lanchonete. Duas TVs grandes exibiam o programa do canal do Senhor, com um tipo de jornal que explora os crimes do dia na cidade. Como alguém pode fazer uma boa refeição assistindo aquio? Enfim…

O apresentador, que é deputado estadual, investigado por corrupção, fala sobre uma mulher que matou o marido. Uma facada certeira no coração. Ela chamou os vizinhos, pediu socorro, chamou o SAMU. No entanto, o marido não resistiu e morreu.

Ela, em depoimento, se disse arrependida. A culpa. Ela era praticamente a Rita da canção do Chico Buarque: 

“…Não levou um tostão, 

Porque não tinha não, 

Mas causou perdas e danos, 

Levou os meus planos, 

Meu pobres enganos, os meus vinte anos, 

O meu coração …”

Ao contrário do que eu esperava, o tal apresentador evocou o demônio, e falou que o mesmo afastou o falecido do Senhor, porque ecava sua esposa. Que o futuro da família deixou de existir por isso.

Vejam só! Eu fiquei surpresa porque um homem não culpou uma mulher que matou seu esposo. Me deixa triste a notícia? Claro que sim! Acredito que a violência não é a solução para nada nessa vida. Todavia, penso aqui com meus botões, quantas vezes durante uma existência inteira esta mulher não apanhou para chegar ao ponto de cravar uma faca no peito do companheiro de uma vida. O golpe foi certeiro. A mulher era simples, sem estudo nenhum de anatomia do ser humano. Como ela poderia saber onde cravar uma faca? Instinto, alguns poderiam dizer. Talvez, o de sobrevivência.

A verdade é: ela é uma mulher pobre que matou o marido, e todos os abusos que sofreu durante uma vida toda serão nada em um julgamento. Porque ela é uma mulher. Ela irá para a prisão, para continuar a ser abusada de outras formas físicas e psicológicas. Será menos ou mais grave que antes? Impossível saber.

A Rita sempre vai causar perdas e danos enquanto a sua versão não puder ser escutada, antes do ato drástico. Pela mãe, que acha que toda esposa tem que segurar o casamento, não importa o quanto custe. Pelos parentes, que acham que ela fez algo errado para que o marido tenha que ecá-la. Certeza que é uma forma de educá-la! Para os vizinhos, que não têm nada com isso, apesar de escutarem muitos gritos de socorro.

Hoje, como ontem, e anteontem, uma mulher morre a cada duas horas em nosso país (estatísticas pré-Covid). Se você está lendo este texto é privilegiada pela liberdade de poder lê-lo ou é uma transgressora. Independente da categoria, nunca se esqueça da sororidade. Este termo diz respeito à irmandade entre as mulheres. 

Já notaram o quanto os homens se protegem, se defendem, mesmo estando errados? Por que nós precisamos competir entre nós? Por que não podemos nos proteger, nos ajudar? Pensem nisso. Não quero, como a Rita, ser culpada de levar os vinte anos de ninguém.

Enquanto esta reflexão acontecia, minha omelete, muito recheada, chegava juntamente à salada de frutas de sobremesa. Eu e minha esposa dividimos ambas e continuamos nossa rotina de afazeres. Foi como se a notícia tivesse sido um filme de horror em nossas vidas.

 

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