Quando se é adolescente de uma classe social um pouco mais favorecida, alguns privilégios sempre aparecem. Apesar de eu ter começado a trabalhar na empresa da minha família aos 13 anos, nunca tive grandes preocupações além de tirar notas boas na escola.
Ao completar 15 anos, o ensino médio, chamado “colegial” na época, se aproximava. Como eu manifestei a vontade de cursar o ensino superior, meus pais resolveram me matricular numa escola particular, para que eu pudesse me preparar adequadamente para o vestibular de uma faculdade pública.
Eis que na minha cidade, por ser pequena, não havia escolas particulares, e todos iam para a maior, a 45 km. Na ocasião não havia esses serviços de van e os horários de ônibus eram bastante restritos, o que dificultava ir e voltar diariamente. A solução era se mudar para a cidade vizinha.
Dada a minha idade, a hipótese de uma “república” nem foi cogitada. Pagar uma pensão foi a solução adotada. Dos dois anos e meio que fiquei fora, passei por três delas.
A primeira era da mãe do pároco da cidade. A velha não deixava a gente nem ir ao cinema. Eu, que chegava mais tarde, por ter 6 aulas, pegava o resto do resto da comida, literalmente falando, em quantidade e qualidade. Juntando o fato das dificuldades de adaptação com a cidade e o ensino, pedi arrego e voltei pra casa. Passei seis meses fazendo quase nada, tomando Cuba libre enquanto assistia à sessão da tarde, já que a escola estadual estava de greve. Não aprendi nada além do que já sabia. Bateu o desespero! Se eu queria passar no vestibular, precisava voltar pra escola particular.
A essas alturas, eu já tinha mais amigas que iriam estudar na mesma escola, e fiquei animada com o fato dos meus pais apoiarem a minha volta. O melhor mesmo foi mudar de pensão para estar com essas amigas. Logicamente, tinha um inconveniente. Só no meu quarto dormiam 5 meninas. No total éramos 16 pensionistas, mais o casal dono do local e o neto. O almoço era um Deus nos acuda pelos pedaços do frango, e ter leite condensado roubado da geladeira era o de menos. Mesmo assim, era engraçado. Até óleo de rícino cheguei a colocar na lata para, através de uma dor de barriga, descobrir quem era a ladra! As meninas faziam altas coreografias da Madonna. Porém, estudei bastante para recuperar o tempo perdido, entre o cinema e a cervejinha da quinta. Íamos pra casa todo fim de semana.
Com o terceiro ano, veio também a mudança de pensão, para uma menor, com apenas 5 meninas e a dona Ritinha, acompanhada pela cadela vira-latas Tila. Com simulados e provas aos sábados, comecei a ir pra casa quinzenalmente, o que me dava mais folga dos afazeres de casa.
Eu morava com as minhas duas melhores amigas. Uma delas, total CDF*, que passava as tardes estudando sozinha, enfurnada no seu quarto. Não gostava de estudar em grupo, a não ser que fosse com o namorado. A outra detestava estudar e adorava tomar sol. Comprou uma toalha que dava pra ver do outro lado, de tão fina, pra poder “esturricar” no quintal da casa. E eu? Tentava estudar e dormia com a apostila na cara.
Acordava meio atordoada e me deparava com essa cena toda semana. Um dia, despertei muito animada, mas não para estudar. Queria fazer alguma coisa e ninguém me deu moral. Fui passear no quintal e explorar algumas partes que não conhecia, até que cheguei a um corredor lateral.
A casa tinha um porão um pouco abaixo do nível da rua que era alugado como sede de um pequeno partido político. Havia uma escada a partir da calçada e dava num alpendre. A partir de um ponto da escada, havia um portão que dava no quintal. O terreno tinha uma leve inclinação, que aparecia só no tal corredor lateral. Dele, eu podia ver somente a janela do quarto da amiga que estudava.
Fazendo nada, resolvi entrar nesse corredor e vi uma barra de ferro, de uns 2 metros de comprimento, aproximadamente. Peguei na mão, a coloquei de pé, não era pesada. Reparei que havia um degrau, o qual galguei e consegui chegar à janela. A menina estava sentada numa cadeira na escrivaninha escura e antiga, ao lado da única porta do quarto, de costas para a abertura da qual eu a espiava. Sua concentração era muito profunda.
Quando cheguei a conclusão de que ela não percebera a minha presença, puxei a barra de ferro bem devagar e a apoiei no parapeito. A escorreguei aos poucos, tentando não fazer barulho. No momento em que o objeto estava a uns dez centímetros das costas dela, eu parei.
Tentava a todo custo conter o riso que já começava a sair, antevendo o susto resultante da peça que eu ia pregar. Respirei fundo, escorreguei a barra e a cutuquei duas vezes. Só pra constar, ela estava sozinha no quarto. Minha amiga deu um pulo tão grande, e um grito tão alto que não me aguentei e comecei a rir, quase caindo do degrau e retirando a barra de ferro.
A outra amiga que estava tomando sol e escutando música despreocupada, deu um pulo da toalha, assim como a dona da pensão, que veio da cozinha do fundo o mais rápido que conseguiu.
Eu saí do corredor dobrada sobre meu corpo, chorando de rir, quase sem fôlego, em função da peça pregada. A amiga assustada chegou à porta da cozinha branca como uma folha de papel. Quando se deu conta de que eu era a responsável pelo assombro, seus olhos faiscaram e eu achei que iria apanhar.
Vendo a situação, a amiga em trajes de banho se levantou e tentou conter a que avançava pra cima de mim. Eu continuava com lágrimas descendo pelo rosto de tanto rir. Alguns palavrões depois, a senhora ainda sem entender o que se passava, e uma cadelinha latindo, pisoteando a toalha vagabunda estendida no chão, a situação se normalizou.
Tive que pedir desculpas, caso contrário ia perder uma das minhas melhores amigas. Por sorte, ela me perdoou pela peça; e por muitas outras faltas no decorrer dos anos.
Hoje olho pra trás e vejo que essas duas Amigas (sim, com “A” maiúsculo) ainda estão na minha vida. Sempre tenho saudades de quando estávamos fisicamente mais próximas. Independente disso, às vezes, volto nessas lembranças, rio sozinha e, na falta do que fazer, as registro para eternizar algumas das melhores partes da nossa vida.
FIM!
* CDF – Cu de ferro – quem fica com a bunda sentada muito tempo na cadeira, estudando.
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Abraços
É muito bom acumular lembranças como esta ao longo de nossas vidas… E melhor ainda é ter amigos queridos que fazem parte delas ou com quem podemos dividí-las!
Estar sempre próximos (mesmo que virtualmente) dos nossos amigos alimenta nossa alma!
Fica aqui o incentivo pra todo mundo cuidar com muito carinho das amizades que valem a pena!
Sabrina, obrigada pelo comentário.
Concordo com você que precisamos sempre cuidar dessas amizades tão valiosas! Ainda mais nessa época de distanciamento social, os amigos são mais necessários que nunca.
Abraços!
Cara, como é bom ler essas suas crônicas!! Elas sempre me remetem à lembranças que os porões da memória guardam… Me fez recordar dos anos que morei num pensionato em Ribs, com vinte e cinco mulheres, vindas de todo canto desse Brasilzão… cariocas, baianas, mineiras, goianas, mato-grossenses… O objetivo também era estudar muito, mas confesso que o tempo era gasto muito mais rindo com as traquinagens… Oh turma animada!! Saudades demais.
Sorte a sua em ter mantido laços; de todas somente uma Amiga se mantém; algumas partiram pro andar de cima e as demais se perderam por este mundão…
É a Vida que se bem vivida merece, e muito, ser lembrada!
Valeu, Naty! Manda mais!
😆😆
Ô, querida, obrigada pelo comentário!
Essa época da vida é muito boa, traz saudades mesmo. Creio que as Amigas que ficaram sempre foram as mais importantes. Também tive muitas que perdi o contato.
Em breve terão mais textos meus disponíveis.
Abraços e boa semana.