Vou contar uma história real… Crônica, documentário, sei lá.
Hoje tenho cinquenta e cinco anos. Mas na época em que o fato ocorreu, eu tinha somente dezessete. Eu estava confusa, como qualquer outro adolescente. Pois é, naquela época adolescência ia dos quatorze aos dezessete. Não sei como era medido isso, todavia era assim que era; como se você fizesse dezoito anos e a adolescência acabasse com a marca da idade, ou como se fizesse quatorze anos e entrasse na adolescência.
O fato é que hoje, sei que não são as marcações de idade que nos definem. Enfim, vamos a história.
Estava no meu colégio estadual e cursava terceiro ano do segundo grau, também era assim que se dividiam os segmentos escolares. Era o último ano e dali, quem queria e achava que tinha condições de fazer o vestibular, fazia; quem tinha outras ambições ou limitações, partia para a vida.
Só para situar; vestibular era o que hoje chamam de ENEM, só que um pouco diferente na estrutura. O vestibular abarcava somente seu Estado. Não era nacional. Outra coisa que diferenciava era que você colocava na ficha de inscrição as faculdades de seu interesse e se seus pontos alcançassem alguma delas, você se classificava.
Não vou enrolar mais. Seguiremos para a história.
Apesar de ser um colégio estadual, minha turma era pequena. Éramos vinte e três alunos. Ao longo dos anos alguns colegas saíram, muitas vezes por não terem condições financeiras nem para pagar passagens de ônibus para chegar no colégio.
A ditadura estava chegando ao fim. As pressões sociais eram grandes por conta de uma inflação desenfreada. O povo faminto e miserável. Imaginem uma inflação de 10 ou 15% mês, e 150 ou 200% ao ano? As maquininhas de marcação de preço nos mercados não paravam um só minuto durante o dia inteiro.
Era muito difícil, principalmente para a família que ganhava um salário-mínimo, e também difícil de imaginar. Vou dar um exemplo: Se você chegasse dez horas da manhã no mercado, comprava um quilo de feijão a R$7,00 reais e se fosse na hora do almoço comprava a R$8,00 e assim sucessivamente. Era capaz de, no dia seguinte de manhã, o quilo do feijão estar a R$9,50. Era cruel.
Foi uma época complicada para mim, uma adolescente que tinha descoberto que sentia atração por garotas. Isso ocorreu na idade de quinze anos e entre a descoberta e os meus dezessete anos, não sabia o que fazer. Não podia me expor e nem mesmo achava ser certo. Naquela época, a sociedade via a homossexualidade como uma degeneração tão grande que chegava a ser pior que ladrão, ou “maconheiro”.
Os usuários de maconha eram taxados de maconheiros e era uma ofensa grave se lhe chamassem assim, bem como ser chamada de sapatão. A verdade é que eu acabava tendo namorados na escola para não perceberem a minha orientação. É horrível, eu sei, mas era assim que era. Não adiantava muito, pois eu era do tipo “esportiva”.
Eu era uma das garotas que mais participava de atividades esportivas na escola, além de não ser exatamente uma princesa na hora de andar ou me portar. E as fofocas começaram depois que eu terminei o namoro com um garoto da minha sala que me adorava.
Namorávamos há um ano e estávamos a poucos dias de terminar o último ano e a maioria da turma estava se inscrevendo para o vestibular, inclusive eu. Ele não queria. Dizia que tinha que fazer um curso técnico para começar a trabalhar. Queria ter seu dinheiro.
Aquele ano foi decisivo. Existiram tantas histórias que me levaram a decidir o que eu queria para minha vida e vou contar duas delas. Uma sobre o meu namoro com o garoto. Chamarei ele por um nome fictício, Roberto talvez. Não, Roberto não, Miguel. A outra sobre uma menina que estava dois anos atrás da nossa turma. Ela tinha quatorze anos e faria quinze no finalzinho do ano. Chamaremos ela de Luíza; e não. Não me apaixonei por ela, se é o que pensam. É uma história diferente.
Voltaremos um pouco para o início do ano. A Luíza era de uma outra turma, como falei antes e a nossa turma por ser a menor da escola, acabou se tornando unida. Talvez porque éramos os patinhos feios, já que tínhamos um time de CDFs e não éramos muito bons nas atividades esportivas em geral.
A maioria das garotas não gostava de Educação Física, com algumas exceções (eu era uma exceção) e os garotos desengonçados na maioria, com algumas exceções também. O Miguel era uma delas entre os meninos. Já perceberam por que nos aproximamos. Além disso, ele era um cara divertido, leal e honesto. Eu gostava disso.
O fato é que nos tornamos, primeiro, amigos de andarem juntos pra todos os lados e fazer coisas juntas. Somente depois que viemos a ser namorados. Ele era um dos meus melhores amigos.
Lógico que nunca falei sobre minha atração por garotas. Isso era o tipo de coisa que não se falava com ninguém. Tínhamos que esconder, a sete chaves, pois era perigoso. Conhecia histórias de pessoas que confiaram esse segredo a “melhores amigos” e no dia seguinte estavam ridicularizadas e marcadas eternamente.
Um dia ele fez a proposta dizendo que gostava de mim e eu aceitei, afinal, ele era um cara de quem eu gostava. Pensei que talvez pudesse amá-lo, visto que a presença dele me agradava. Seu beijo também não me causou repulsa, o que me deu a certeza de que estaria fazendo o certo. Hoje sei que era um pensamento tolo, mas na época foi uma forma de tentar me “consertar”. Que grande bobagem! Posso adiantar que, lá no fundo, eu mesma não queria me consertar.
E assim seguimos. Nos tornamos o casal modelo da turma, pois nos sentávamos perto na sala, estudávamos juntos e, no recreio, não nos separávamos. Aos poucos, a nossa turma se tornava modelo também, pois os outros alunos viam como nós éramos unidos.
Todo recreio em algum momento a turma se encontrava em um canto do colégio, perto de um jardim e ficávamos ali conversando. Foram muitos sonhos, muitas brincadeiras e muitas risadas. Quando tocava o sinal para voltarmos para a sala, levantávamo-nos e seguíamos todos juntos.
Os professores também contribuíram para que de patinho feio, nossa turma se tornasse admirada pelas outras. Eles comentavam que certamente teriam alunos da nossa turma passando no vestibular, o que era fantástico, visto que existiam muito poucas universidades na época, além de sermos um colégio público.
Essa admiração fez com que alunos de outras turmas se juntassem a nós no recreio. Aos poucos, o grupo foi aumentando com agregados e entre eles, estava Luíza. Brincávamos com ela dizendo que era nossa mascote, isso porque era a mais nova de todos.
Ela era uma menina inteligente, agradável e sempre tinha palavras carinhosas para todos. Embora eu desconfiasse que ela pudesse gostar de garotas também, nunca me abri ou a interpelei. Era extremamente proibido, lembram? Luíza não me atraía sexualmente, contudo eu a admirava pela sua capacidade de verter bondade em seus gestos e palavras.
Um dia estávamos em poucos alunos, pois havia começado os jogos bimestrais. Todo fim de bimestre, os professores de educação física faziam um fechamento com jogos da modalidade que tinham dado ao longo daquele período. A maioria estava vendo os jogos, ou participando deles. Naquele dia eu não estava competindo por ser futebol masculino. Não era muito de meu interesse, embora meu namorado estivesse lá.
Assistíamos ao longe e entre olhadas aos jogos e conversas surgiu o tema de “o que vai fazer quando terminar o ano?” e as poucas pessoas contavam o que fariam. Luíza baixou a cabeça um pouco triste e ficou muda. Essa ação não passou despercebida por mim e perguntei o que havia acontecido.
— Não sei responder o que farei, porque não consigo me ver com quinze anos.
— Como assim, não consegue se ver com quinze anos?
Perguntei sem compreender o que ela dizia.
— No final do ano faço quinze anos, mas tudo fica um branco. Por isso não consigo responder sobre o que farei quando terminar o ano.
Eu ficava cada vez mais confusa e me sentei ao lado dela e de repente, vi que as outras pessoas haviam se afastado para ver o jogo, pois nossa turma tinha feito um gol. Ficamos sozinhas.
— Luíza, como isso é possível? Faltam só três meses para o fim do ano. É só você imaginar o que quer fazer depois.
— Eu não sei explicar, Carolina. É uma coisa estranha. Toda vez que tento imaginar, minha mente fica em branco. Eu não sei o que é isso.
Aquilo me angustiou deverasmente, mas como todo adolescente, com o tempo esqueci do fato. O tempo foi passando, o meu namoro ficava mais firme e Miguel perguntou por que não o levava para conhecer minha família. Eu não queria. Apresentá-lo à minha família era um sinal de compromisso maior e a possibilidade me deixava nervosa.
Enfim, o fim do ano chegou e com ele o último dia de aula. Também era o dia de quem se inscreveu no vestibular pegar o cartão de confirmação das provas. Lembrem-se, estamos falando de quase quarenta anos atrás e não existia computador, notebook, smartphones… tudo era analógico e como tal, tínhamos que ir aos postos de inscrição pegar o cartão pessoalmente.
Como muitos fariam o vestibular, marcamos o último encontro da turma no horto municipal para passarmos a tarde juntos. Miguel iria direto para lá e eu me encontraria com eles depois de passar no posto de inscrição.
Era verão e o sol estava a pino. Eu tinha saído do colégio, depois de lanchar e ido para o posto. Havia uma fila enorme que virava o quarteirão. Fiquei irritada, pois sabia que não sairia de lá antes das três horas da tarde e meus amigos tinham marcado as duas. Para uma adolescente era demais.
Não havia como avisar a ninguém que eu chegaria tarde. Não existia celular, lembram? A única comunicação era por “orelhão” ou telefone fixo e que muitas pessoas não tinham em casa ainda. Era caro.
Não bastava pedir a instalação como hoje. As linhas de transmissão eram poucas e dependia se houvesse expansão da rede em seu endereço. E para quem não conhece o termo, orelhão era como chamávamos carinhosamente os telefones públicos pelo formato que tinha a cabine.
Como havia previsto, só consegui pegar o cartão depois das três horas e quando vim ao lado de fora do posto, o tempo tinha virado. Uma tempestade de verão tinha se formado em pouco mais de meia hora e caía um oceano de água do céu com direito a raios e tudo.
Fiquei esperando sob a marquise do prédio do posto para que a chuva passasse. Era impossível sair com aquele pé d’água. A rua estava cheia e muitos acabaram entrando no prédio porque a água estava chegando à calçada. Eu fui uma dessas pessoas.
Assim como a chuva veio, ela passou. Foi meia hora de chuva intensa para depois, abrir novamente o sol. Esperei que a água da rua baixasse e já era mais de quatro horas da tarde. Peguei o ônibus para o horto municipal, na esperança de que alguém ainda estivesse lá. Adolescentes são intensos por natureza. Eu era intensa.
Achava que a chuva os pegasse desprevenidos também e que eles tivessem se abrigado e permanecessem lá. Queria ver meus amigos antes das férias e de me embrenhar em estudos antes das provas.
Desci do ônibus, caminhei até o horto e entrei. Não havia ninguém da turma. Desanimada, peguei outro ônibus para casa, afinal, morava distante e queria falar com alguém. Eu tinha telefone em casa e tentaria ligar para uma amiga da turma que também tinha.
— Alô, Heloísa!
— Carol! Você está bem?
— Eu?! Estou, por quê?
— Você não estava no horto?
— Não.
— Eu também não. Mas soube do que aconteceu.
— O que aconteceu?
— Cara, fica calma. O Gerson me ligou de lá.
— Ficar calma, por quê? Você está me assustando, Helô.
— Aconteceu uma coisa…
— Fala logo!
— Não tinha muita gente da turma no horto. O povo se atrasou. Tinha muita gente pegando o cartão do vestibular.
— Eu tava pegando, mas não tinha ninguém da turma lá onde estava.
— Tem gente que pega em postos mais próximos da casa.
— Não me enrola, Helô. O que aconteceu?
— Começou a chover e não deu tempo do pessoal ir embora. Se abrigaram em um daqueles quiosques de sapê. Caiu um raio numa árvore ao lado e Gerson viu um a um da galera cair desmaiado. Ele foi o único que ficou de pé. Ninguém sabe por quê.
— Meu Deus!
Na época não sabíamos porque o Gerson não desmaiou como todos. Mais tarde compreendemos. Ele era deficiente físico e usava duas muletas cujas pontas eram emborrachadas e suas botas próprias para ele, também eram emborrachadas. Ficou isolado do choque do raio que se dissipou pelo solo atingindo nossos amigos.
— Calma. Ele falou que a maioria está bem. Chamaram a ambulância e levaram todo mundo para o hospital, mas…
— Mas o que, Helô?! Para de fazer suspense. Tá me deixando nervosa!
Eu estava impaciente e muito, mas muito nervosa mesmo. Gritei com ela.
— Foi a Luíza. Ela não acordou. Foi internada.
O sangue pareceu sumir de mim. Fiquei gelada e mortificada.
— Ela tá internada onde?
— No hospital municipal, mas parece que vão transferir para um hospital particular. Até agora só sei isso.
— Tá. Vamos desligar. Alguém pode estar tentando ligar pra gente para dar mais notícias.
Desligamos. Estava paralisada. A conversa de tempos antes com Luíza veio à minha cabeça imediatamente. Eu não podia acreditar. O Miguel me ligou e conversamos algum tempo. Ele estava lá e tinha desmaiado também. Contou que foi levado para a emergência e depois dos exames havia sido liberado.
Eu não dormi naquela noite e em muitas outras. Luíza permaneceu em coma muitas semanas. Nossa turma acampava na porta do hospital todos os dias, mas ninguém de nós era autorizado a vê-la. Rezávamos, discutíamos e fazíamos vigília. Miguel e eu estávamos inseparáveis, mas pela dor.
Um dia chegou a notícia de que ela falecera. Fiquei arrasada. Ela era uma menina boa, singela e ao longo daquele ano, estreitamos uma amizade tão grande! Como Deus poderia fazer aquilo com uma menina cheia de alegria, vida e generosa? Me revoltei como nunca em minha vida. Não me conformei.
Fui para casa chorando e permaneci chorando. Meus familiares viam a minha tristeza e mesmo que eu fosse rebelde naquela época, minha mãe fazia de tudo para me acalmar e me agradar. Muitas vezes só queria ficar com meus amigos, pois achava que só eles entendiam.
O tempo foi passando, mas a revolta e a tristeza não. Miguel cada vez se enfronhava mais em minha vida, porque era um amigo que entendia meu sofrimento. Um dia em minha revolta falei para alguém: Por quê? Deus foi injusto! A pessoa que me ouvia me disse: E acha que Deus só quer gente má ao lado dele? Ele precisa de anjos também, para ajudar na tarefa de cuidar desse mundo.
Até hoje não me lembro quem foi que me falou isso. Não lembro se foi minha mãe, que era muito sábia, ou se foi Miguel ou outro amigo. Só lembro de ter dado um “click” na mente e mudar meu espírito de uma hora para outra.
Aceitei ou me conformei, não sei bem, e segui com a vida, mesmo que quando me lembrasse de Luíza, por vezes, me angustiasse. Entendi por que me apeguei tanto a ela e sofri tão intensamente; era como se ela emanasse luz pura. Uma luz que faltava dentro de mim.
Eu estava levando a vida, namorando um cara que gostava, mas não amava. Estava incompleta, porque abafava o que eu era. Nesta altura, Miguel frequentava minha casa e meus pais gostavam dele. Saiu o resultado do vestibular e eu havia passado.
Ele parecia feliz por mim, só que na mesma semana me pediu em casamento. Disse que queria viver comigo e que teríamos um ano para nos adaptar. Ele em um emprego e eu na faculdade. Isso acabou comigo.
Como assim nos casar? Eu havia feito dezoito anos há pouco tempo e ele nem emprego tinha ainda. Me senti manipulada. Percebi que ele tinha medo de que eu entrasse na faculdade. Ele errou feio comigo. Não percebeu que confrontar com minha maior vontade que era ir para a vida, era um erro.
A faculdade para mim, era como se fosse um indulto para a liberdade. Viver novas experiências, ter uma carreira e ter autonomia. Lembrei de Luíza.
Uma menina bondosa, cheia de alegria… um anjo. Uma pessoa com ideias progressistas e aberta. Talvez ela fosse homossexual e não tivesse experienciado esse lado, ou talvez não. Mas tive uma certeza: se ela tivesse tempo e descoberto o que era, tinha coragem e possivelmente encararia a sua sexualidade com coragem. Eu estava sendo covarde.
Terminei com Miguel no dia seguinte à proposta, e ele não entendeu nada. Amigos ficaram revoltados e acabei perdendo o contato. Fui para a faculdade e conheci pessoas. Namorei uma garota das mais lindas que conheci. Não pela beleza física, isso nunca me importou, mas pela alma bela que tinha. Perdi amores, ganhei outros e hoje sou feliz pela minha escolha.
Obrigada Luíza pela sua luz! Hoje sei que se tornou um anjo.
Carol, coração apertado aqui…
Talvez a missão de Luíza tenha sido trazer essa força para você.
E você ter escrito este texto tantos anos depois significa que essa amiga continua viva em seu coração. Um acontecimento triste mas ao mesmo tempo bonito.
Já parou para pensar que a fila que teve que pagar e consequentemente o atraso não foi por acaso? Com certeza não era para você estar lá naquele momento.
Beijo!