Resquícios

Parte 2

Dois dias depois, ao chegar à casa dos pais de Daya, foi atendida por dona Regina.

— Olá, detetive, por favor entre.

Assim que entraram Mayra sentou em uma poltrona que lhe foi indicada.

— Acho que sei o porquê de sua visita, meu filho aprontou de novo, não é? Vi alguma coisa no jornal, não disseram nomes mas, pela forma deduzi que fosse ele assim que telefonou informando que viria.

— É sobre isso sim, dona Regina. Infelizmente, parece que ele não aprendeu ainda como ser um homem de fato, só que desta vez não foi com uma garota que a família não tem meios pra brigar pela punição dele, e que sabe que o dinheiro não elimina a dor e sequelas causadas na adolescente. É uma marca que fica para sempre.

— Nem consigo imaginar a dor dessas crianças e suas famílias. Eduardo tinha tudo para ter uma excelente família, com uma mulher e filha maravilhosas e jogou tudo no lixo, sem nenhum pudor ou empatia. Mas, por que quis vir conversar comigo? Nem temos mais contato com ele!

— Pra dizer a verdade, andei conversando com sua filha Daya e, bem…

— Descobriu o quanto ela ama a ex-cunhada?

— Ah, a senhora sabia!?

— Qualquer pessoa que esteja perto das duas e observe um pouquinho percebe, mas, antes de Eduardo conhecer Maria Alice, eu já ouvia muito sobre ela. O quão bonita, inteligente, bem-humorada, capaz, etc. Cada dia que se encontravam ela era assunto para uns dois dias de elogios.

— Fiquei preocupada com Daya. Um amor imenso que a faz sofrer imensamente, mas não vai fazer nada a respeito, como ela diz, pelos resquícios que o irmão deixou.

— E também sofro por ela, mas ela tem que decidir se quer fazer algo pela própria felicidade, ou continuar a mendigar momentos. Se eu pudesse iria até Maria Alice e imploraria para amá-la em retribuição por um sentimento tão grande, mas…

Conversaram mais um pouco, principalmente sobre as sujeiras de Eduardo, antes de Mayra sair.

— Mãe, já está pensando em onde vamos passar as férias deste ano?

— Ainda não. Será que Daya se importaria em irmos para um lugar tranquilo, interior, ou hotel fazenda, para descansar mesmo?

— Mãe, qualquer coisa, viagem, lugar que queira, você sabe que tia Daya vai concordar e fazer. Por que você não sai de casa, a não ser para o trabalho, sem ela? Depois da separação ela está sempre à tua disposição pra tudo, será que ela sai com amigos, tem outra vida sem nós?

— Tem sim, filha! De vez em quando ela namora, sempre sai à noite com amigos.

— Você já conheceu algum namorado ou namorada da minha tia?

— Ela nunca teve namorado e, não, não conheci nenhuma de suas namoradas. – Maria Alice respondeu; o tom foi estranho.

— Mas ela conta sobre elas pra você? Afinal ela é sua melhor, senão a única, amiga.

— Ela comenta que está com alguém, mas só falou uma vez sobre outra pessoa.

— Só uma?

— E filha, vamos mudar de assunto que não gosto de falar de quem não está presente.

— Você tem ciúme!!

— O que? Claro que não! De onde tirou essa ideia!

— Ela não fala com você sobre namoradas porque você não gosta?

— É, não gosto. A vida é dela, ela faz o que quiser com ela, mas eu não preciso saber.

— Mas, mãe…

— Vou tomar banho, estou muito cansada.

E saiu. Dona Clotilde assistiu toda a cena, mas nada disse.

— Vó, você viu isso? Assunto tabu com dona Maria Alice!

— Entendeu por que não quis que você dissesse nada no dia que pegou Daya fixada em tua mãe enquanto ela estava terminando um balancete que havia trazido pra casa?

— E não foi a primeira vez, né vó? Lembra da praia, minha mãe de olhos fechados curtindo o sol e o vento balançando seus cabelos e, tive que chamar tia Daya umas cinco vezes e tocá-la para ela desligar de minha mãe e me responder.

— Pois é. Desde que eu conheci Daya, vi que ela realmente ama tua mãe e que teu pai tinha era tesão, queria uma mulher troféu para apresentar aos “amigos”. Acho que tua mãe escolheu o irmão errado, talvez por não se dar conta, não sei, ou achar lógico se casar com um “homem”, mas não acredito que seja imune ao amor da tua tia.

— Acho que a gente precisa fazer algo pela felicidade dessas duas, não acha?

— E o que poderíamos fazer?

— Ainda não faço ideia, vó, mas temos que encontrar um meio e fazer algo urgente.

— Temos que pensar e agir com calma, senão é capaz de piorar tudo. Não vá agir impulsivamente.

Como fazer uma adolescente não agir impulsivamente quando coloca uma ideia na cabeça?

No dia seguinte, receberam a notícia que Eduardo havia fugido quando soube pelo advogado dele que seria detido. Como todo covarde não aceitara a consequência de seu ato nojento.

A família de Maria Alice relaxou um pouco mais e a de Daya sentiu aumentar a vergonha, embora ninguém os culpasse já que Eduardo nem contato mínimo tinha mais com eles.

Ninguém encontrava informações sobre quando ou para onde ele havia fugido, não havia imagens dele nos aeroportos, nem rodoviárias. Navios de cruzeiros não tinham partido naqueles dias. Trens não existiam entre estados, então decidiram que ele, provavelmente, estaria escondido na cidade mesmo. O alerta foi dado em todo o país por garantia, mas concentraram as buscas pelo local.

Um policial em seu dia de folga, junto com a esposa, fazia compras em um supermercado quando reconheceu Eduardo. Aproximou-se e deu voz de prisão. Eduardo, assim que o policial chegou bem perto, no desespero por medo da cadeia, reagiu e derrubou o agente, conseguindo pegar sua arma. Fugiu em seguida. Como o policial avisou rapidamente o ocorrido, logo as redondezas estavam repletas de agentes da lei.

Mayra, assim que soube a novidade, pediu e conseguiu que uma viatura fosse para a casa de dona Clotilde, pois poderia haver o risco de Eduardo querer ameaçar a ex família, ou usá-la como refém. Com seu parceiro, foi até o trabalho de Maria Alice a fim de leva-la para casa, depois de apanhar Andresa na escola.

A preocupação de Maria Alice era a filha. Ficou mais tranquila ao pegá-la na escola e foram juntas para casa.

Enquanto isso, Eduardo encurralado e morrendo de medo de ser preso, ao invés de se entregar e responder pelo crime de estupro e/ou pedofilia, agora também tinha resistência à prisão e agressão a um policial. No entanto, o “gênio” não parava pra pensar. Nunca antes estivera em perigo, sempre conseguiu o que queria na vida, antes de Maria Alice e Daya reagirem às suas agressões e vontades. A perda de seus pais e irmãos não lhe importava, só pensou em se vingar da ex-esposa.

Apanhou um taxi que passava e deu o endereço de dona Clotilde. O que não esperava era encontrar um bloqueio próximo à casa. Os policiais acreditaram em Mayra. Com o trânsito vagaroso e vendo os PMs revistando veículos, desceu do táxi e correu a pé a procura de um abrigo. O motorista desceu e gritou que ele tinha que pagar, o que chamou a atenção da polícia.

A correria começou e Eduardo assim que percebeu ser seguido, mais uma vez se apavorou e fez o que de pior poderia fazer. Virou-se e atirou acertando a perna de um transeunte. Policiais gritavam para que os pedestres saíssem da rua, que se agachassem. Eduardo deu mais dois tiros sem alvo e a resposta veio de imediato, entre as muitas pessoas que haviam no local e o sujeito atirando contra um dos policiais revidou com certeira pontaria. Um só tiro e perdeu-se uma vida.

Em quinze minutos, a história de Eduardo já estava em todos os canais jornalísticos. O homem que escolheu seus mais sórdidos desejos sexuais, em detrimento da família de origem e da que havia formado através do casamento.

Maria Alice, Andresa e dona Clotilde lamentavam pelos pais de Eduardo. Foram até a casa deles pra dar apoio. Repórteres rondavam querendo saber o que pensavam, sentiam, enfim coisas de jornalistas. Daya, mais uma vez, agiu como advogada, dando pequenas informações sobre o afastamento de Eduardo do seio familiar, solicitando que dessem folga a seus pais que já haviam sido muito envergonhados pelas atitudes dele. Aquela família tinha o direito à privacidade e respeito.

Passados uns dias, Andresa resolveu agir em prol da felicidade de sua mãe e de sua tia.

— Oi, mãe, posso falar uma coisa pra você?

— Claro, filha, pode falar sempre o que quiser comigo, sabe disso!

— Sim, eu sei, mas é que é uma coisa chata.

— Tô ficando preocupada!

— Não é pra tanto. Sabe o que andei pensando? Até comentei com você outro dia sobre a tia Daya. Ela está sempre com a gente, atende tudo que você quiser a qualquer hora, e fica sem tempo só pra ela, pra curtir a vida, sair com amigos não só com a gente, namorar, ser feliz. Estou errada?

— Não, está certíssima. Acho que deveria conversar com ela a respeito.

— Isso! Quem sabe conversando sobre esse assunto, coisas importantes sejam ditas e…

— Você tem razão, vou falar com ela agora mesmo.

— Não, mãe, espera aí, acho que não me entendeu, eu…

Não teve tempo de esclarecer sobre as coisas importantes que poderiam aparecer na conversa, Maria Alice saiu disposta a deixar Daya livre para viver.

— Oi, Alice! Aconteceu alguma coisa? Andresa e dona Clotilde estão bem?

— Está tudo bem. Queria te dizer para sair com teus amigos, namorar, enfim, viver a tua vida sem se preocupar conosco. Parece que sempre acabo te amarrando à minha família e não deixo que viva em paz, então, por favor, não precisa vir no fim de semana. Hoje é sexta-feira, vai curtir tua liberdade.

— Mas, Alice, eu não quero…

— Desculpe por tudo, seja feliz.

Desligou porque começou a chorar. Não queria falar pessoalmente, não poderia demorar na conversa porque eram palavras falsas, nunca fora boa em mentir e o que dissera era o que menos queria na vida. Depois que falou sentiu como nunca a falta de Daya. Foi pro banho, logo depois deitou em sua cama vazia, deixou o choro silencioso correr. Era assim que sempre chorava, em silêncio, sem escândalo, sem show, sem procurar acalanto.

Quando a filha bateu na porta do quarto, fingiu dormir porque sabia que Andresa iria verificar. A filha quis acreditar e a deixou “dormindo”. A madrugada chegou e ela imóvel na cama, o choro parara, mas não a solidão. Seu celular tocou. 03h40min. Quem poderia ser àquela hora? Olhou. O número de Daya. Recusou a chamada.

Dois minutos depois nova chamada. Número desconhecido. Um alerta e resolveu atender.

— Alô!?

— Maria Alice?

— Ela mesma.

— Acho que deveria estar dormindo, então me desculpe. Sou Elisa, antiga amiga de Daya. Liguei pelo celular dela, mas você não atendeu, então peguei o seu número e liguei novamente. Estamos precisando de ajuda.

— Aconteceu alguma coisa com Daya?

— Pois é, aconteceu sim. Sou dona de um barzinho e ela veio para cá por volta das dezenove horas e nunca vi essa mulher dessa forma. Ela bebe pouco, em vinte anos que a conheço nunca a vi bêbada, nem na época da “facu”, mas agora está delirando, dizendo que você a enxotou como a um cachorro de sua vida, que você isso, que você aquilo, não para de falar como uma metralhadora. Por favor, venha busca-la. A coisa tá feia.

— Você era namorada dela?

— Eu não! Sempre fomos amigas, eu sou casada, ela é doida por você, pelo que me consta, mas preciso encerrar o trabalho, limpar e fechar o bar e não sei onde ela mora.

— Ah tá bom, vou dar um jeito, me passa o endereço.

Assim que desligou, por necessidade de ajuda àquela hora, entrou em contato com Mayra. Daya havia dito que tinha ficado amiga dela.

— Oi, Mayra, desculpe pelo horário, mas você está de serviço?

A resposta veio quase imediatamente.

— Maria Alice, está tudo bem?

— É Daya.

Contou o ocorrido.

— Estou de serviço até às sete da manhã. Pega um uber que te encontro no endereço que você me passou.

Era um bar gay, não muito grande, bem arranjado e era verdade que Daya estava mais que bêbada, debruçada no balcão e reclamando a forma que fora chutada da vida de Maria Alice.

— Daya!

— Você me conhece? – a voz pastosa.

— Hei Daya, sou Mayra, a detetive, lembra de mim?

— Claro! Por que está aqui?

— Elisa, esta é a detetive Mayra. Cê foi assaltada?

— Não, Daya, eu as chamei pra te ajudar.

— Ajudar quem?

— Daya, por favor, venha comigo, consegue andar?

— Quem é você? Olha, Elisa, ela se parece com aquela ingrata, todo mundo hoje se parece com ela. Dei todo meu amor desde antes daquele nojento, ela escolheu ele e hoje me chutou da vida dela assim.

Tentava estalar os dedos sem conseguir. Alice se esforçava para segurar as lágrimas.

— Ih, acho que meus dedos estão dormindo.

— Daya, venha com a gente, tua amiga precisa fechar o bar.

— Aí Elisa, até a voz parece com a dela. Quem é você, aparecida? — Começou a rir – Aparecida! Se eu ficar olhando pra você vou ter vontade de te abraçar, beijar, fazer amor com você como sempre tenho quando olho pra ela, então não vou nem olhar nem falar com você. Mayra, você vai me levar pra casa?

— Nós duas vamos. Consegue andar?

— Mas é claro! Não tenho hábito de beber, mas só tomei um pouquinho, não é, Elisa?

— É, Daya, você nunca ficou bêbada antes e hoje não precisou de muito para ficar nesse estado. Até outro dia.

— Tchau, Elisa.

Maria Alice e Mayra a seguraram, uma de cada lado, enquanto a levavam até o carro que Daya havia deixado no estacionamento. Mayra falou com o parceiro que iria levar uma amiga até em casa e ele a seguiria com a viatura. Afinal estariam ajudando uma contribuinte que, naquele momento, precisava muito.

Mayra mandou que Maria Alice se sentasse atrás com Daya – que não parava de falar do desamor, da forma como fora dispensada -, para vigiá-la. Entraram no condomínio, levaram Daya até seu apartamento.

— Bom, agora vou continuar na ronda, qualquer coisa me chama.

— Obrigada e mil desculpas, mas eu não tinha a quem chamar. Daya me disse que vocês conversaram e que tinham se tornado amigas, por isso pedi tua ajuda.

— Fez bem, não se preocupe. A noite está calma, sem muito trabalho. Se cuida e… seja franca quanto aos seus sentimentos.

Saiu.

Daya não conseguia ficar de pé sozinha, mas continuava falando da dor que Alice lhe causara, dor que ela não merecia.

— Daya, por favor, venha pra cama. Precisa dormir um pouco.

— Quem é você, aparecida? Eu te conheço?

— Não sou parecida, sou eu, Daya, Maria Alice.

— Não é não! Ela não liga pra mim, não ia estar aqui comigo.

— Ligo sim e muito. Agora vem deitar.

Foi amparando-a até o quarto.

— Sério!? É você mesmo, não é só parecida?

— Sério. Agora deita que vou tirar teu calçado.

— Vai deitar comigo?

— Vou.

Arrumou as cobertas, deitou-se ao lado de Daya que se encostou nela dormindo imediatamente, e ficou ruminando a culpa pelo que tinha dito, pela forma que tinha dito. Por que não vira o quanto era amada por aquela mulher? Talvez, só talvez, porque sentia o mesmo e nunca se apercebera, ou não parou pra pensar e admitir. Não soube a que horas acabou dormindo.

Acordou quando Daya resmungou e se mexeu, levando seu calor. Daya, assim que se virou e abriu os olhos, sentindo o estômago pisoteado, se deu conta de onde estava.

— Ai meu Deus, como vim parar aqui?

— Eu e Mayra te trouxemos.

Antes de ter a completa noção da realidade, teve que correr para o banheiro. Fechou a porta por reflexo e deixou o estômago esvaziar-se. Tirou a roupa, tentando desesperadamente pensar em algo racional, entrou embaixo do chuveiro lavando da cabeça aos pés enquanto pensava. “Ai meu Deus, o que aconteceu? Como foi ela e Mayra que me trouxeram? Ela passou a noite aqui? E eu pra lá de Bagdá!?”

Meia hora depois dela ter entrado no banheiro, bateram à porta.

— Daya, uma hora você vai ter que sair daí. Mesmo com fome, vou estar esperando. Tem uma escova de dente pra me arrumar?

— Não precisa me esperar, pode ir pra casa. Andresa deve estar preocupada.

— Eu já liguei e informei onde estou.

Nenhuma resposta. Deu um tempo e entrou.

— Já que você não vai sair, desculpe, mas preciso usar o banheiro.

— Ah claro! Tem escova na segunda gaveta do armário.

E saiu quase correndo à procura de suas roupas.

Quando Alice saiu do banheiro, Daya estava na cozinha tentando se acalmar mexendo na geladeira, panelas, sem conseguir fazer algo.

— Então, vamos conversar?

— Claro, claro!

— Não tem nada pra me dizer?

— Eu!? É… o que?

— Sabe qual foi a coisa mais difícil que fiz na vida?

— Não!

— Foi te dizer, por telefone, para você sair da minha vida. Minha filha me dizendo que eu estava monopolizando você, sem te deixar viver tua vida e eu achei que ela tinha razão. Mas, ficar sem tua presença é horrível. Eu sei que nunca te disse nada, aliás, nem eu mesmo sabia o que sentia realmente por você, mas nada doeu mais do que te mandar embora, até eu te ver naquele bar e…

Começou a chorar aquele choro manso.

— Desculpa, eu não pensei que Elisa te chamaria, me desculpa.

— Nunca te vi daquele jeito e tua amiga disse que também não. Não me peça desculpas, eu é quem tenho que fazer isto, mas já que você ficou daquela forma, eu era a única pessoa que ela deveria chamar.

— Por que!?

— Fui a causadora!

— Não, a culpa foi minha! Fiz besteira, você tinha todo direito de me mandar embora.

— Direito sim, mas nenhuma vontade. Como você está agora?

— Morrendo de vergonha, nem consigo olhar pra você.

— Pois deveria! Eu sinto tanto ter te magoado, minha linda.

Chegou bem perto, segurou o rosto de Daya e beijou suavemente seus lábios.

— Por que fez isso!?

— Uma vontade antiga. Tem algo para comer nesta casa, estou faminta?

— Vontade antiga?

— É. Mesmo quando casada, olhava pra você e tinha vontade de te abraçar ou de te beijar. Pensava que era só carinho enorme, principalmente pelo modo que tratava minha filha, mas depois da separação acordei muitas vezes, hum… de sonhos nada fraternais com você.

— Por que nunca me disse?

— Medo de ser mal interpretada, de perder tua amizade, de reações das famílias. Por que você nunca se declarou?

— Eu me declaro todos os dias pra você, só não percebeu. No dia que eu ia dizer claramente, você escolheu outra pessoa.

— Viu como sou eu que tenho desculpas a pedir?

— E agora? O que a gente faz?

— Que tal você me pagar um almoço? Vamos fazer de conta que é nosso primeiro encontro, conversamos aberta e francamente, como se fossemos conhecer coisas que não deixamos transparecer, que ninguém sabe.  Amanhã seremos velhas conhecidas, amigas de longa data que se apaixonam. Você não estará mais de ressaca e eu estarei à sua disposição, afinal será domingo.

Deu um beijo no rosto de Daya e saiu, deixando-a quase catatônica. A ansiedade pelo dia seguinte pareceu para ambas um mês, mas chegou. Maria Alice avisou que iria almoçar com Daya porque precisavam conversar assuntos particulares e que mais tarde conversaria com a mãe e a filha, e elas pensaram se tratar dos bens de Eduardo, a parte que caberia à Andresa.

Por volta das 12h30min., Alice chegou ao restaurante que haviam marcado e Daya já estava a sua espera. Sentou-se à mesa.

— Oi. Dormiu bem?

— Não! E você?

— Mais ou menos. Faz tempo que chegou?

— Uns cinco minutos. Como você está? Espero que tenha deletado aquela imagem de ontem sobre mim.

— Não pretendo deletar nada sobre ontem. Assim, presto mais atenção na forma que te falo as coisas.

— A culpa não foi tua, eu poderia ter ido até à sua casa e gritado tudo que sentia.

— Eu teria gostado!

— Já sabe o que quer comer?

Olharam o cardápio, escolheram os pratos e pediram. Nenhuma pediu bebida.

— É verdade sobre os sonhos comigo?

— Pura verdade.

— Há chance da gente concretizar esses sonhos?

— Com certeza!

— Acho que não consigo comer!

— Pois trate de se alimentar porque hoje vamos passar a tarde juntas conversando e a noite pretendo estar na sua casa com você.

Daya perdeu a concentração que já estava quase zero. Forçou-se a comer. Alice almoçou calmamente, falando sobre coisas corriqueiras, pediu sobremesa e a saboreou com tranquilidade. Passava das quatorze horas quando saíram do restaurante. Como perto havia uma exposição fotográfica, foi para lá que Alice se encaminhou e Daya, sem entender, a seguiu.

— Alice, o que você está fazendo?

— Estou me acostumando à ideia de ter você como namorada.

— Oi!? Não entendi.

— Estou com medo, Daya, muito medo de te magoar, de fazer algo para estragar tudo o que você sente por mim, de acabar derrubando a imagem que tem a meu respeito. Quero tudo aquilo que você disse querer comigo, mas não sei como vou agir. Andei pensando muito e já tinha certeza que você era quem eu amava e não Eduardo, mas sinto que te traí quando casei com ele. Queria ter o poder de voltar no tempo e ter conhecimento do sentimento que já tinha e não entendi. Por isso estou, acho, que procurando serenidade para fazer o que ambas queremos.

Daya ficou calada. Viram a exposição, Maria Alice segurou a mão de Daya e andaram vendo vitrines. Às 17h30min, chegaram ao apartamento de Daya e Maria Alice quis tomar banho. Enquanto estava no chuveiro, Daya resolveu tomar uma atitude. Despiu-se e entrou no box.

— NÃO!! – Alice encolheu-se toda como querendo entrar na parede, apavorada.

— Alice!? Sou eu, Daya. Desculpe, desculpe, eu não sabia! Aquele filho da…

— Daya!?

— Estou saindo, vou esperar lá fora.

— Não. Fica comigo, me abraça.

A água morna caindo nas duas abraçadas embaixo do chuveiro, disfarçando as lágrimas de ambas.

— Eu não fazia ideia, você nunca me contou, desculpa.

— Eu quero e preciso tirar todos os resquícios do que ele transformou minha vida e só você pode me ajudar. Pode me dar um tempo para um banho juntas?

— Acho que banho acabamos de tomar juntinhas, só faltou sabonete. Vou te soltar agora, tomar banho rápido, me secar e sair. Te espero na sala e, se você achar que posso, vamos começar a fazer tudo que sonhamos, um passo por vez.

Foi o que fez. Alice ficou olhando Daya se banhar, secar e sair. Então terminou o banho dela, apanhou o roupão deixado, colocou e saiu do banheiro. Daya estava no sofá frente à televisão.

— Viu porquê estive “enrolando” para chegar neste momento?

— Não estava enrolando, acho que apenas se preparando. Posso te dar o primeiro beijo que sempre quis?

— Deve!

Sentou-se ao lado de Daya, respirou profundamente e correspondeu ao longo beijo.

Foi o primeiro e real beijo delas entre os infinitos múltiplos que se seguiram. Houve o conhecimento de peles, de corpos e, a perfeita sincronia, harmonia de almas. A noite foi curta. Tudo que Daya fazia era com suavidade, extremo carinho, mas com muito prazer. Alice correspondia como nunca imaginou ser capaz de fazer. Depois do segundo orgasmo:

— Daya, eu não sou de vidro, não vou me quebrar. Adorei até agora, mas não precisa se vigiar tanto, pode se soltar, faça sem pensar e eu te aviso se houver algum desconforto.

O que recebeu de volta foi um imenso sorriso e um novo “ataque”, agradavelmente retribuído.

Se fosse vento, entraria por todos os poros.

Se fosse água, escorreria por todas as peles.

Se fosse terra, abarcaria todo o espaço.

Se fosse fogo, queimaria tudo à volta.

Mas era Lua em sua Poesia.

Mas foi Sol em sua Luz.

E o Tempo, aquele senhor ranzinza, se fez puro sorriso de criança.

Puro. Simples. Profundo. Singelo. Real. Pleno.

A manhã chegou, vida normal de humanos trabalhadores. À noite, um comunicado à família, só para descobrirem que as últimas a saberem daquele sentimento mútuo, foram elas.

FIM.



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