Texto: Táttah Nascimento>
Revisão: Isie Lobo e Carolina Bivard>
9.
Rebeca despertou com um gosto amargo na boca que associou ao café aguado, que tomou em uma lanchonete de madrugada, após sair da delegacia.
Os primeiros raios de sol tocavam o horizonte, tingindo-o com um amarelo vivo e pássaros cantaram em uma árvore próxima, unindo-se ao som do vento, balançando as copas. Uma lagartixa passeava sobre o capô grafite do carro, ergueu a cabeça e a encarou por alguns segundos, então, como se pressentisse algum perigo, correu desengonçada para longe do seu campo de visão.
A noite mal dormida, lhe pesou nos músculos quando se moveu, mas não tanto quanto os pensamentos e a preocupação que lhe assaltaram. Como tinha previsto, a polícia não tinha nada que a ligasse ao crime, exceto o depoimento de Milton, o gerente do bancoe seu ex-chefe, e esse testemunho acabou se tornando duvidoso quando revelou o assédio que sofria, antes de abandonar o emprego.
A presença de Rodrigo também foi importante. Como Drica imaginou, os recibos de sua viagem à cidade vizinha e as lacunas que ele preencheu, reforçaram as dúvidas dos investigadores sobre as alegações de Milton.
O banco do motorista estava vazio e sentiu um leve desconforto ao percebê-lo. Saiu do veículo e andou por alguns metros, aguçando olhos e ouvidos, procurando-o. Estava diante das ruínas do que um dia tinha sido uma casa de fazenda com pilares imponentes e piso de cerâmica portuguesa. O teto, havia muito, tinha desabado, mas algumas paredes que, outrora foram de um amarelo pálido, e as portas, resistiram a ação do tempo e dos vândalos. Pichações se sobressaiam em todos os lugares, desde palavras ilegíveis até poemas e textos vulgares, complementados por símbolos ainda mais obscenos.
Chutou uma, das muitas latinhas de cerveja amassadas e espalhadas pelo chão. O recipiente de alumínio rodopiou, seguindo uma linha sinuosa até se perder no mato alto que cercava a casa.
Rodrigo saiu de entreas árvores que encobriam uma elevação alguns metros adiante. Ele assoviava baixinho com um rifle de caça, com luneta acoplada, sobre os ombros. Caminhava com seu gingado malandro e expressão despreocupada, como se fosse apenas um garoto voltando de uma pescaria.
Nunca tinha lhe prestado muita atenção. Para ela, sempre foi apenas o irmão caçula de Adriana, sua melhor amiga. O viu crescer de longe, sem se preocupar com o tipo de homem que se tornaria. E, mesmo quando passavam as noites bebendo, brincando, jogando conversa fora na casa de Adriana ou em alguma balada, jamais se deu ao trabalho de tentar enxergar além daquele rosto bonito de homem-menino com jeito de conquistador cafajeste.
Porém, na noite passada, quando ele tomou sua mão e entrou naquela delegacia ao seu lado, com um sorriso confiante e sereno, dizendo que eram uma família e que não a deixaria só, foi como se o estivesse enxergando pela primeira vez.
Ele sentou ao seu lado, seus ombros se tocando levemente, enquanto colocava o rifle no chão.
— Gostaria de saber como consegue essas armas — ela puxou conversa, com o olhar preso a uma pedra e uma sobrancelha arqueada.
— Um amigo de um amigo que tem outro amigo — sorriu e ela admirou a leveza com que o fazia, lembrando-a da irmã. — Não podíamos cometer um crime com armas de brinquedo, não é mesmo?
— Não, não somos tão ousados ou estúpidos — concordou, então o mirou diretamente nos olhos verdes e intempestivos. — Obrigada por não me deixar sozinha ontem. — Sapecou um beijo em sua bochecha, cujos fios da barba por fazer despontavam,deixando-o mais austero. Quis rir do tom rosado que sua pele adquiriu, mas não queria deixa-lo mais embaraçado do que já estava.
Rodrigo limpou a garganta e fingiu uma coceirinha no queixo para se recompor. Nunca foi tímido, pelo contrário, contudo Rebeca sempre lhe deixou embaraçado, desde a adolescência, quando teve uma paixão platônica por ela.
— Enquanto você dormia, explorei o local. E não há nenhum lugar que forneça um bom esconderijo para uma emboscada a não ser aquela elevação — apontou para a direção de onde veio. — É por isso que estarei lá, quando a troca acontecer — deu uma tapinha no rifle. — Serei um bom apoio, caso Alex resolva mudar os planos.
Era essa a intensão. Porém, se tudo corresse bem, quando Alex deixasse o local, poria o plano de Chico em ação. Em uma curva daquela estrada, quase tão abandonada quanto as do Parque Nacional, ele encontraria o seu fim. Tinha pensado muito sobre com Adriana, mas sabia que a irmã não era tão fria para cometer um assassinato. Não que não fosse capaz de tirar uma vida, mas Drica era uma mulher de momentos, fazia as coisas por impulso.
Tinham conversado sobre aquele crime, mas ele sabia que, apesar de todo o ódio que ela sentia, jamais o realizaria.
— Sua irmã está certa em desconfiar — Rebeca o arrancou de seus pensamentos.
Ele descansou o queixo na mão que apoiava no joelho, pensativo. As sobrancelhas unidas, enquanto falava com a voz ligeiramente distorcida pela posição em que se encontrava.
— Ele a odeia mortalmente e, confesso, nem sei bem como essa rivalidade começou. Minha irmã nunca se envolveu com esse tipo de gente — fez uma pausa, recordando a primeira vez em que ouvia Drica falar de Alex e, naquela época, suas palavras tinham um tom divertido de deboche, como se a ameaça que ele representava fosse apenas uma piada. —Sempre achei que tinha algo a ver com Lucas, mas ele e Drica também se detestam. Não faria sentido essa rixa ser por causa daquele imprestável.
Rebeca escorregou a mão pelos cabelos cacheados e respirou fundo, deixando os pensamentos vagarem pelo passado. Limpou a garganta e sorriu, um pouco triste.
— Como em algumas histórias mitológicas, o pomo da discórdia foi uma mulher e você está sentado ao lado dela. Eu sou a razão de tanto ódio. Pelo menos, fui o início dele.
***
Adriana estacionou diante do prédio onde morava. Recostou a cabeça no banco massageando as mãos devagar. Sentia-se exausta após toda a adrenalina das últimas horas e pelo tempo ao volante. A cabeça doía tanto quanto seu estômago vazio, que reclamava a falta de alimento havia muito tempo. Sua última refeição tinha sido um copo de suco de laranja e uma torrada sem graça no café da manhã do dia anterior, pois nada mais lhe passaria pela garganta, graças ao nervosismo.
Ao seu lado, Bianca bocejou, tão cansada quanto ela. Olheiras escuras, circundavam seus olhos injetados pela noite insone e o cansaço. Ela baixou o vidro da janela e aspirou a brisa da manhã. Nuvens escuras escondiam o sol parcialmente. Eram de um cinza azulado que prometia tempestades, assim como os olhos de Silvia. Seus pensamentos se voltaram para ela e no quanto estaria ressentida com suas ações.
Passou as últimas horas se perguntando se havia feito a escolha certa e ainda não sabia a resposta. No entanto, quando olhava o retrato daquela menina, sobre o painel, algo dentro de si dizia que sim. Balançou a cabeça afastando a amiga de sua mente e retirou o cinto de segurança, aliviada.
Drica continuava ausente de espírito e pensamentos. Agora massageava as têmporas devagar, uma expressão de dor na face. Durante o caminho até ali, não trocaram palavras, sequer um olhar. Seguiram seu caminho envoltas em um silêncio incômodo e, ao mesmo tempo, bem-vindo.
Involuntariamente, seu olhar deslizou até os lábios dela e se fixou ali. Um arrepio percorreu sua pele, eriçando os pelos do braço, quando lembrou do sabor deles. A luz do meio da manhã tocava a pele alva e os cabelos cor de cobre, fornecendo a impressão de que eram chamas e Bianca sorriu com a ideia. De fato, aquela mulher lhe parecia ser tão devastadora quanto um incêndio e as últimas 24h horas eram prova disso.
Ela a tirou de mais um dia entediante ao lado de Artur, a fez refém e, posteriormente, uma cúmplice capaz de trair até mesmo a pessoa em quem mais confiava. Agora, perguntava-se em meio a um sorriso singelo, o que mais ela seria capaz de fazer consigo se permanecesse mais tempo do que planejava ao seu lado. Pensamentos bem confusos e opostos aos das primeiras horas daquele sequestro.
Algo em seu interior se remexeu, lhe dando a certeza de que ela era capaz de abalar todas as suas estruturas. Fechou o sorriso, decidida a manter-se o mais distante possível, já que, apesar de a estar ajudando, chegaria o momento em que teria de entrega-la as autoridades.
Por mais bem-intencionada que Drica fosse, tinha cometido um crime e precisava pagar por ele.
— Onde estamos?
Adriana abriu os olhos. Durante a viagem, teve um intenso diálogo interno. Poderia rendê-la? Era provável que sim. Mas e depois, o que fazer? Não era capaz de matá-la, nem tinha razões para isso, principalmente, após ela ter salvo sua vida. Também não a deixaria largada na mata, acabaria por se perder ou pior.
Não a queria perto de Lis, mas depois do que tinha acontecido, sentia-se em dívida e, assim como aconteceu na mata quando lhe contou a verdade, achava que lhe devia aquele momento. Nem por isso, se sentia menos apreensiva.
— Em casa — respondeu, seu olhar deslizando da face curiosa dela para a fachada do prédio de quatro andares. Abriu a porta do carro, mas parou quando percebeu a viatura estacionada dois carros à frente. Um policial estava recostado nela, enquanto conversava com uma mulher, uma de suas vizinhas.
— O que foi? — Bianca quis saber, já escorregando a mão para a arma presa em sua cintura. Sentia-se terrivelmente desconfortável com o objeto mortal tão próximo de seu corpo. Sabia usá-lo com precisão, graças ao seu pai e Silvia, mas nunca gostou.
Drica tornou a ligar o motor e manobrou para sair. Passaram devagar pela viatura, sem que prestassem atenção nelas e seguiram novo rumo.
— Se quisesse chamar a atenção da polícia, eu poderia ter gritado desde que entramos na cidade — comentou e a viu apertar o volante com mais força.
— Seus gritos não me preocupam. Metade da polícia desta cidade está na folha de pagamento de Alex. Sabe quantas vezes vi uma viatura estacionada diante do meu prédio? Nenhuma.
Entraram à direita no fim da rua. Mantinha-se atenta ao retrovisor, mas a viatura permanecia estacionada.
— Isso está me cheirando a mania de perseguição. Nada lhe garante que era um dos homens desse tal traficante.
O semáforo ficou vermelho e Adriana aproveitou para lhe dedicar um pouco de atenção, enquanto vigiava a retaguarda.
— Talvez seja, talvez não. Prefiro não me arriscar com a polícia daqui, não mais. — Recordou da forma que foi tratada e do recado singelo, mas explícito que recebeu de alguns policiais, quando denunciou o que Alex tinha feito ao seu carro. —De qualquer forma, mesmo que aquele fosse um dos mocinhos, seria difícil passarmos por ele sem que fossemos paradas. Não nos encontramos com a melhor das aparências, chamaríamos a atenção facilmente. — Se voltou para a frente e acelerou quando o sinal ficou verde.
Era uma manhã de sábado e o fluxo de carros era quase inexistente àquela hora, permitindo que avançassem pelas ruas sem dificuldades. Bianca desviou o olhar das calçadas e mirou seu próprio reflexo no retrovisor da porta. Realmente, sua aparência não era das melhores, mas Adriana estava pior. Aquele miliciano judiou de sua face, tinha um olho roxo, os lábios inchados e cortados e, alguns arranhões no queixo. Sem falar nos hematomas nos braços.
Enquanto dirigia, Drica lhe dedicou olhares rápidos. Sentia muita raiva de toda aquela situação. No entanto, não podia negar que estava sendo uma aventura deveras interessante, apesar de ter certeza de que o final não seria nada agradável. Parou em outro sinal e lhe prestou um pouco mais de atenção. Não conseguiu evitar um sorriso ao vê-la acariciar, distraída, a pistola na cintura.
— Por que o sorriso? — Bianca a flagrou.
Ela balançou os ombros.
— Apenas pensando na ironia da situação. Ontem eu era a bandida e você a refém. Hoje, nem consigo entender que posição ocupamos nesta “relação” — estacionou o carro novamente e desceu dele, apressada. Os olhos percorrendo as redondezas em busca de algo incomum ou alguém suspeito.
O suor em sua fronte denunciava o nervosismo.
Bianca a seguiu, pensando sobre o que disse, enquanto observava o vai e vem de pessoas pela rua. Estavam diante de uma loja, cuja fachada nada indicava sobre o que vendia. Não havia nada exposto na vitrine e, cortinas grossas e cinzas pendiam do teto, ocultando o interior do estabelecimento.
— Não creio que possamos definir esta situação como um relacionamento — disse.
Adriana procurava a chave da porta no chaveiro que retirou da mochila.
— Queira ou não, estamos em um relacionamento, ninjinha.
Se fosse possível, os olhos de Bianca teriam ficado ainda mais negros ao ouvir o tratamento, mas Drica continuou atenta a tarefa de encontrar a chave correta e ignorou o estalar irritado dos lábios dela. Continuou seu raciocínio:
— Toda espécie de envolvimento é um relacionamento. O nosso começou de uma forma incomum e nem sei como defini-lo no momento, mas acho que posso usar o termo “atração e ódio”.
Encontrou a chave que procurava e se voltou para a porta. Os transeuntes passavam por elas apressados, e distraídos demais, para dedicarem atenção a dupla de mulheres com roupas imundas e hematomas na face, que desceu de um carro igualmente maculado.
— Atração?! — Sorriu com escárnio, a sobrancelha direita arqueada.
A porta rangeu um pouco ao ser aberta e ela foi introduzida em um salão com piso de madeira e, envolto na penumbra. Drica fechou a porta atrás de si e falou, enquanto se afastava:
— Somos duas mulheres adultas e maduras, o suficiente, para reconhecermos que estamos atraídas uma pela outra, apesar das circunstâncias.
— Aquele brutamontes deve ter te batido com muita força. Está imaginando coisas.
Os passos dela silenciaram de repente.
Bianca permaneceu no mesmo lugar, junto à porta, já que nada enxergava além de um metro à frente, graças a luz que passava pela fresta da mesma, vindo da rua. Tateou até encontrar uma das cortinas e preparava-se para puxá-la quando foi atirada contra a parede. Sua face espremida contra a sólida frieza dela e os braços presos por mãos firmes.
O perfume da sua sequestradora lhe chegou junto com palavras sussurradas no ouvido.
— Nos beijamos, por duas vezes, e eu não imaginei as reações do meu corpo, muito menos, as do seu.
Um arrepio eriçou os pelos de sua nuca quando ela mordiscou sua orelha e um suspiro involuntário lhe escapou. Adriana a soltou, mas continuou pressionando-a contra a parede, seus lábios deslizando pelo pescoço alvo. Bianca espalmou as mãos na parede e a sentiu deslizar os dedos dos ombros até os seios, massageando devagar por cima da camiseta.
Ah, ela não queria sentir aquilo, mas aquela mulher a estava enlouquecendo com seu crime, suas verdades, provocações e beijos. Tudo isso em um curtíssimo espaço de tempo, fazendo de si um joguete. Seus batimentos aceleraram e a respiração ficou entrecortada. O desejo a consumia, atiçado pelos lábios que marcavam sua pele entre beijos suaves e mordidinhas.
Inverteu suas posições. Agora, era Drica que estava contra a parede.
A pouca luz que entrava por baixo da porta, permitiu que Bianca vislumbrasse seu sorriso cafajeste antes que ela a puxasse para perto e colasse os lábios nos seus. Beijavam-se com um misto de fúria e desespero. As mãos traçando caminhos imaginários em suas costas, queimando a pele por onde passavam.
Bianca gemeu, prazerosamente, quando ela se insinuou dentro da bermuda que usava, alcançando sua intimidade. Por cima da calcinha, fez uma massagem suave que lhe arrancou novos suspiros até que parou de repente.
Foi empurrada e Adriana se afastou com um sorriso presunçoso.
— Isso foi imaginação? — Perguntou, arfante.
A ex-refém reprimiu um palavrão quando percebeu que ela segurava a pistola que havia estado em sua cintura até alguns instantes.
— Filha da mãe! — Deu um passo em sua direção, mas, outra vez, Drica se afastou e desapareceu na penumbra, rindo baixinho.
Um minuto se passou até que as luzes se acenderam e Bianca viu-se cercada por esculturas de vários tamanhos e formatos, confeccionadas com diversos tipos de materiais. Todas belas, distintas, delicadamente sinuosas, exaltando a beleza do corpo feminino.
Elas lhe trouxeram, com uma rápida passada de olhos, os mais variados sentimentos e encantamento, fazendo com que, momentaneamente, esquecesse a raiva que sentia por ter deixado que Adriana lhe passasse a perna e tomasse sua arma e, também, as sensações que aqueles beijos e toques lhe trouxeram.
Acabou se surpreendendo ao perceber que todas eram assinadas por ela que, recostada a uma porta nos fundos do salão, a mirava com os braços cruzados. Não sorria mais, mas tinha o rosto afogueado e os lábios vermelhos pelos beijos trocados. A pistola não estava mais à vista.
— Venha — chamou com voz baixa, mas clara.
Foi até ela, deslizando pelo local com passos lentos, contendo a vontade de parar e examinar cada peça com mais atenção e descobrir, através delas, a verdadeira personalidade de quem as criou.
— São todas suas? — Não conteve a curiosidade.
A sombra em seu olhar desapareceu e o rosto dela se suavizou.
— Sim, este é o meu ateliê.
Cruzavam a oficina onde a “magia”, como gostava de falar para a filha, acontecia. Pedra, argila, metal e tintas estavam espalhados pelo lugar, assim como meia dúzia de esculturas inacabadas. Bianca olhava tudo com interesse desmedido, arrancando daqueles objetos inanimados, histórias sobre a mulher que a sequestrou, compreendendo que, por trás daquele jeito duro, intempestivo e meio cafajeste, havia muita sensibilidade.
Chegaram a uma segunda porta que, ao ser aberta, revelou um cômodo pequeno, cortado por um pequeno jardim de inverno. A luz forte do meio da manhã se infiltrava por uma janela que Adriana tinha acabado de abrir. Ela lhe indicou o sofá-cama e Bianca jogou-se nele, exultante pelo luxo de ter almofadas às suas costas, após horas atada naquela cadeira velha e dura de seu cativeiro.
— Foi um golpe baixo — disse, enquanto a via se livrar da camiseta suja de suor, terra e sangue, revelando um abdômen liso e trabalhado. Os seios permaneceram ocultos por um top, mesmo assim, lhe chamaram a atenção, enquanto ela se dedicava a despejar água do bebedouro, no canto oposto do cômodo, em dois copos.
Lhe entregou um.
— Prefiro pensar que foi um meio prazeroso de conseguir o que desejava — sorriu e tomou todo o conteúdo do copo de uma só vez, então inclinou-se até seus rostos ficarem próximos e lhe acariciou o queixo com a ponta dos dedos. — Te falei, poderia lhe ensinar coisas que jamais sonhou se tivéssemos nos conhecido de outra forma. Considere o que acabou de acontecer como uma lição para a vida.
— E que lição poderia tirar da sua trapaça?
Drica sorriu, embora não quisesse realmente o fazer, pois o que dizia, era uma grande verdade e isso a atormentava.
— Gostamos de fingir que é a mente que nos governa, mas a realidade é que são os nossos instintos.
Retornou para junto do bebedouro. Seus instintos desejavam aquela mulher com fúria e, mesmo tentando se manter afastada, não conseguia evitar brincar com seu desejo. Ela a atraía como se fosse um imã. Mesmo sua face nada demonstrando, seu coração batia descompassado pelo momento de carícias ao qual se entregaram.
Era da sua natureza provocar, sempre dona de uma confiança que exalava sua feminilidade. Razão de nunca se esforçar muito para conquistar quem lhe interessava. Contudo, não queria conquistar Bianca, pelo contrário, a queria bem distante, pois sentia que ela a afetava de uma forma completamente diferente de qualquer outra mulher que passou em sua vida. No entanto, não conseguia se manter longe e, desde que ela a beijou na beira daquele barranco, desejava muito mais.
Divertia-se em provoca-la e vê-la zangada, achando-a terrivelmente bela nesses momentos.
— Ainda vai negar que mexo contigo?— Provocou.
A garganta de Bianca estava seca e bebeu sua água com avidez, um pouco desnorteada pela forma como ela agia, hora sendo bruta e feroz, hora provocante e sedutora.
Foi até ela e também encheu seu copo. Desta vez, bebeu devagar, fitando os olhos de cílios longos que, naquela luminosidade, não eram mais amarelos e, sim, de um tom esverdeado como as pétalas de uma Zínnia Verde. Respirou fundo e deslizou a ponta do dedo, devagar, do seu pescoço até o abdômen, deixando um rastro de pelos eriçados.
— Não — admitiu, finalmente, e estapeou a face alva dela. — Mas não pense que pode me dobrar com isso. Não será nenhuma vantagem para você e o que se passou agora há pouco, não vai mais se repetir.
Retornou para o sofá, fingindo que não tinha visto o sorriso em seus lábios, enquanto esfregava a face agredida.
***
Rodrigo aguardou, paciente, que Rebeca continuasse. E minutos longos se passaram, enquanto ela se perdia em lembranças de momentos que queria esquecer, mas jamais seria capaz.
— Você sabe do meu problema com drogas.
Ele fez um gesto afirmativo, um pouco desconfortável porque ela não costumava falar disso.
— Você já tinha saído de casa e mudou de cidade para cumprir seu tempo de serviço no exército. Por isso, perdeu aqueles dias negros — suas mãos retorciam-se nervosamente e ele as tomou, inesperadamente, com um sorriso de incentivo. — Quando me entreguei ao vício completamente, fiz coisas das quais nem sou capaz de nomear. Coisas que jamais irei esquecer. Uma delas, foi me prostituir.
Desviou o olhar do dele.
— Alex era novo na cidade, chegou em grande estilo, tomando pontos e favelas com derramamento de sangue. Ele gostou de mim, eu queria as drogas dele e me tornar sua amante acabou sendo inevitável.
Voltou a fita-lo, imaginando encontrar um olhar reprovador, mas tudo que viu foi um misto de simpatia e tristeza.
— O que aconteceu?
— Drica aconteceu. Ela voltou para a cidade, depois daquele intercâmbio na Argentina e descobriu o que estava acontecendo através da minha irmã. Foi a minha procura, mas eu estava tão drogada que nem me dei conta da sua presença e Alex a expulsou. Ela prometeu voltar e fez isso no dia seguinte e no próximo, até conseguir me ver.
Seu olhar vagou para longe, fitando algo invisível para ele.
— Sabe que eu sempre tive uma paixão por ela — sorriu. — Se tivesse sido minha irmã a me procurar ou outra pessoa, jamais teria saído de lá. No entanto, foi a minha melhor amiga, a garota dos meus sonhos, e eu a segui sem pestanejar.
Seu sorriso se tornou mais amplo ao mesmo tempo em que ficava triste.
— Ela sempre exerceu “esse” fascínio em mim e nunca fui capaz de lhe negar algo. Pelo menos, não naquela época e isso salvou minha vida — fez uma pausa longa, o sorriso se desvanecendo. —Alex nunca a perdoou por isso. Não sei se porque gostava realmente de mim, como dizia, ou se pela afronta. Muitas coisas aconteceram depois disso, principalmente, após um encontro desastroso em uma festa, anos depois. Alex me viu dar um beijo nela e quis tirar satisfações. Para sua infelicidade, ele tinha se afastado de sua escolta e, como Adriana nunca fugiu de uma briga, fez dele um saco de pancadas, já que estava desarmado.
Rodrigo riu, imaginando a cena. Drica praticava artes marciais desde que viu um casal de amigas ser agredido na frente de uma boate. Dizia que o mesmo não aconteceria com ela e, se acontecesse, quebraria alguns ossos antes de cair.
— Ela o humilhou por duas vezes, roubando seu orgulho de homem. Sinceramente, acho que ela só escapou da retaliação porque caiu de amores por aquela inglesa maluquinha que morava em Santa Catarina e se mandou para lá.
— O relacionamento mais longo dela. Três meses inteiros! — Riu, e Rebeca o acompanhou. De repente, ficou sério. — Minha irmã é uma idiota. Se tivesse uma mulher como você por perto, nem olharia para os lados.
Seu rosto adquiriu um tom rosado diante da surpresa dela, então pegou o rifle e ficou de pé, dizendo:
— Os motivos dele não importam mais. Alex mexeu com a nossa família e, cedo ou tarde, acertaremos nossas contas — Admirou as árvores de onde tinha vindo, repetindo, mentalmente, o plano que formulou com Chico. — Vamos, estou morrendo de fome e quero tomar um café descente antes de pegarmos Chico no trabalho.
***
Silvia viu o dia chegar sentada na varanda do antigo cativeiro de Bianca. Em suas mãos, a gargantilha que ela atirou no chão quando fugiu.
Sentia um misto de medo, desespero e raiva.
— Perdemos o rastro em uma estradinha, não muito longe daqui — um dos homens falou, transpirava muito e a camisa que usava, já estava empapada de suor.
Cobra se aproximou dela, os olhos negros semicerrados.
— É a primeira vez que vejo um refém que não quer ser resgatado. O que faremos agora que não temos mais seu brinquedinho?
Ela apertou a joia até os nós de seus dedos perderem a cor, então a deixou cair e se pôs de pé. Enfiou a mão no bolso da jaqueta e encontrou o rosto angelical e olhar desconcertado de Rebeca na fotografia que o gerente do banco lhe deu.
— Agora, faremos as coisas do jeito antigo — o pingente em forma de gota da gargantilha fez um ruído abafado quando o esmagou.
Em meio ao silêncio da mata, enquanto caminhava, resoluta para o carro, jurou encontrar Bianca. Descobriria o que aquela bandida fez para que sua amiga agisse daquela maneira e, então, cravaria uma bala em seu peito.