Texto: Táttah Nascimento>
Revisão: Isie Lobo e Carolina Bivard>
8.
Bianca estava, novamente, por cima de Adriana. Mas, desta vez, era ela a salvadora.
Podia ter ficado quieta, seria tão simples. Fácil.
Tudo o que tinha de fazer, era esperar que aquele ponto de luz verde, que se infiltrava através da janela e tremia levemente no peito da sua sequestradora, se tornasse um orifício vertendo sangue e roubasse sua vida e o último suspiro.
Era uma questão de segundos e os contou mentalmente, com o coração acelerado e uma vertigem a lhe tomar o corpo.
Mirou tudo em seu campo de visão, na esperança de fugir à aparição da morte. No entanto, seus olhos teimavam em retornar para ela que a fitava destemida, carregada de ódio e paixão, que se misturavam na dor que suas palavras lhe infligiram. As íris amareladas brilhavam com mais intensidade pelas lágrimas que não ousaram cair e Bianca recordou o modo carinhoso com que tinha falado da filha e o jeito gracioso com que seus lábios se curvaram em um sorriso quase tímido ao pronunciar o nome da menina.
Mais um segundo e tudo estaria acabado.
Contudo, se permitisse que aquela situação terminasse daquela forma, jamais seria capaz de voltar a se olhar no espelho. Não importavam os reais motivos que levaram aquela mulher e amigos a cometerem aqueles crimes, deixar que morresse daquela maneira só a faria se sentir igual ou pior que o homem que estava prestes a puxar o gatilho, escondido na mata.
Com um safanão, afastou o braço que empunhava a arma para o lado e jogou-se sobre ela. Caíram, quase abraçadas, no exato instante em que uma bala rasgou o ar frio daquela noite enluarada e alojou-se na parede diante da qual tinham estado.
Drica tentou empurra-la no segundo seguinte ao tocarem o chão e preparava-se para alvejá-la com um soco quando grãos finos de areia caíram sobre sua face. Notou o buraco na parede e o ponto verde que se movimentava sobre ela sentindo os músculos se retesaram de pavor.
— Fique abaixada — Bianca ordenou e rolou para o lado, mantendo-se agachada e longe do alcance da visão do atirador.
Ainda com as costas grudadas no chão, Drica falou:
— Que merda! Você não estava brincando.
— Nunca brinco quando o assunto é a morte — sentou-se junto à parede, recuperando sua confiança e arrogância, enquanto a via engatinhar na sua direção e se posicionar embaixo da janela.
Drica retirou o pente de balas do bolso e colocou na arma sob o olhar curioso dela.
— Sério?!
— Pensou mesmo que ia ficar com uma arma carregada com você solta?
Bianca ergueu as mãos, espalmadas para o alto, e balançou os ombros dando a entender que “sim”.
— Você nocauteou o meu irmão duas vezes, os meus amigos também, sem falar que quase me estrangulou. De jeito nenhum deixaria uma arma carregada ao seu alcance.
— Não sei se fico com raiva ou lisonjeada.
A sequestradora arriscou dar uma espiadela através da janela, tomando o cuidado de não se expor demais e ser alvejada. Tudo que via era a noite e a copa das árvores tocadas pela luz do astro no céu negro.
— Desista — Bianca recomendou com voz baixa, quase sussurrada. — Não é páreo para eles e, quanto mais rápido fizer isso…
— Mais rápido morrerei?
Os olhos negros como carvão semicerraram-se.
— Você mesma disse que eles querem sangue. Me render significa apenas caminhar mais rápido em direção ao fim — olhou-a em desespero, amaldiçoando a ideia de ter-lhe sequestrado, tentando encontrar uma rota de fuga, mas nenhuma das alternativas em que pensou se oferecia adequada e o fato de não saber quantos inimigos as cercavam, tornava tudo ainda mais angustiante.
Ouviram passos em volta da casa e arriscou-se a dar outra espiada pela janela, mas, novamente, só enxergou a noite.
— Vocês estão cercados — uma voz feminina e autoritária irrompeu dentro daquele refúgio decadente como se estivesse ao lado delas e Bianca reconheceu nela, sua melhor amiga e seus lábios se arquearam em um sorriso singelo, que não era capaz de expressar a felicidade que sentia. — Libertem a refém e rendam-se ou sangue será derramado.
Encolhida, junto a parede, Adriana fez uma oração silenciosa sob a atenta observação de Bianca. A filha era tudo o que lhe vinha à mente naquele momento tenso e desesperador e suas mãos apertaram com mais força o artefato mortal que segurava.
— É o fim — Bianca afirmou, tranquilamente. — Entregue-se e poupe sua vida.
Era uma mentira, claro. Mas, queria acreditar que Silvia e companhia a levariam a justiça e não seriam seus executores.
A última palavra chamou a atenção de Adriana e seu olhar recaiu sobre a mochila em cima da mesa, abarrotada de notas. Tinha se esforçado tanto para quebrar seus princípios e vencer seus medos para consegui-la, que aquele momento lhe parecia surreal. A quilômetros dali, Lis ressonava, entregue ao sonhos e desejos infantis, inocente quanto ao destino que se apresentava para sua mãe.
Aquela mochila significava a vida de sua filha. Uma centelha de esperança pela qual estava disposta a arriscar sua liberdade e vida.
O dinheiro que continha, era apenas uma fração do que roubaram e sentiu-se grata pelos companheiros terem levado o restante consigo. Assim, seus planos não estavam totalmente perdidos.
A angústia a dominou, envolvendo-a com o manto do medo que a cercava todos os dias desde que os médicos diagnosticaram a doença de Lis. Temia perde-la, não a ver nem abraça-la outra vez e, agora, seu temor estava prestes a se tornar realidade.
— Eles vão me matar, não é mesmo?
Bianca admirou a calma com que fez a pergunta e a certeza em sua voz. Limpou a garganta, mas nenhum som lhe saiu fora este, então inclinou a cabeça em um movimento afirmativo, lento e quase doloroso. Em seus olhos, via uma determinação solene.
— Tudo o que disse é verdade e não me arrependo do que fiz — fez uma pausa e ouviram mais passos em volta da casa. Desta vez, mais perto.
Girou a arma na mão, pensativa, então a entregou para Bianca que a recebeu com leve surpresa, pois imaginava que não desistiria sem lutar e expressou isso em palavras, enquanto se colocava de pé, tomando o cuidado de não ficar diante da janela.
— Não posso lutar todas as batalhas, Bianca — o modo com que pronunciou seu nome foi jovial, com um leve tom de flerte, sem qualquer resquício de arrogância ou provocação, nem da raiva que constantemente a dominava nos dias que antecederam o assalto. — Não me tome por covarde, pois creio que já provei não ser assim. Mas sei reconhecer a derrota. De nada me adiantará entrar em combate com essas pessoas que, com certeza, estão bem armadas e melhor preparadas do que eu. Estaria apenas protelando o inevitável.
Também ficou de pé e sorriu, triste.
— Deixei minha menina em boas mãos e me basta saber que ela ficará bem, pois as pessoas que me seguiram nessa ação ousada e desesperada a amam tanto quanto eu.
Chocada, Bianca a mirou longamente, analisando os traços de seu belo rosto salpicado de sardas charmosas e deu-se conta de que, naquele instante, ela não estava mais diante de uma criminosa e, sim, de uma mulher que lutava por aquilo e aqueles que amava.
— Não está com medo?
— Estou morrendo de medo. Mas, tenho mais medo de viver sem aquele anjo que a vida me trouxe.
Outra vez, Drica lhe sorriu. Um sorriso charmoso e provocante, quase sonhador.
— Você teria sido uma bela conquista.
Bianca sentia a garganta seca, mas manteve o silêncio.
— Poderia ter lhe ensinado coisas interessantes e prazerosas. E, claro, adoraria esculpi-la. Seria uma peça bela, única, perfeita.
Confusa, Bianca ainda permaneceu a mirar seu olhar por algum tempo, fascinada pela tristeza que via nele e que contrastava com a jovialidade de seu sorriso. Então, com gestos lentos, afastou-se dela e falou, enquanto abria a porta:
— Silvia, vocês podem entrar.
***
Silvia envolveu Bianca em um abraço apertado, sem conseguir conter sua felicidade. Por alguns minutos, desfrutou do calor do corpo dela, imersa na alegria de vê-la bem, apesar dos hematomas e arranhões que maculavam sua pele. A soltou devagar, sentindo-se um pouco triste em fazê-lo, então passou a mão em seus cabelos, afastando uma mexa teimosa que escorregava sobre sua face, e lhe sorriu, cúmplice.
Estavam ao lado dos restos da fogueira, sentindo o cheiro de couro sintético e tecido queimado, enquanto uma fumaça fina se erguia das brasas e era carregada pelo vento. Aguardavam o retorno dos homens, que tinham sido incumbidos de ir buscar o carro, que haviam deixado em uma bifurcação da estrada, dois quilômetros adiante.
A porta do casebre estava fechada; Palito que era tão magro quanto o pilar em que estava escorado, a vigiava com um cigarro pendurado nos lábios e uma metralhadora nas mãos. Um lampião descansava aos seus pés, irradiando luz e revelando um pouco da vida noturna na mata. Grilos cricrilavam escondidos na folhagem e vagalumes, vez ou outra, se deixavam ver expondo seu brilho.
— Entreguem-na a polícia — Bianca pediu, dando alguns passos em volta das brasas. O calor que elas emanavam era aconchegante naquela noite fria e estranha.
Por um momento, Silvia não compreendeu sobre o que ela falava, então seguiu seu olhar até encontrar a porta cerrada atrás de Palito. Frestas deixavam que vissem movimentos indistintos do outro lado dela.
— Não está em minhas mãos.
— Claro que está. Esses homens não estariam aqui, se o velho não tivesse lhe dado o comando.
— Só vim para encontrá-la, nada mais — a amiga retrucou com certa dureza na voz. Não queria se envolver mais do que já estava e agora que Bianca se encontrava salva, pouco lhe importava o que aconteceria com seus sequestradores, embora compartilhasse o desejo do Juiz de derramar o sangue deles. — Eles têm as suas ordens e não posso fazer nada quanto a isso.
Ambas sabiam que era mentira. Silvia, assim como seu pai, tinha aquele senso de justiça deturpado, convenientemente distorcido quando envolvia aqueles que amavam.
Repentinamente, Bianca se afastou. Escondeu-se atrás de uma árvore próxima, fechando os olhos. Outra vez, só precisava esperar. Sentaria ali e fingiria não ouvir os gritos ou os tiros, assim como fez anos antes, no dia em que homens como aqueles invadiram seu cativeiro e a resgataram de um grupo de traficantes fortemente armados.
Nem todas aquelas armas, nem toda aquela valentia os salvou de um fim trágico e doloroso. Para cada dia em que Bianca ficou em seu poder, uma forma de castigo lhes foi imposta.
Mas ela não era mais uma adolescente espinhenta e de nariz empinado que se achava dona do mundo, embora gostasse de transparecer isso às vezes. Aquele sequestro a mudou e o fim que aqueles homens encontraram, não lhe importou tanto quanto o que Adriana estava próxima a ter.
Abriu os olhos e os fechou novamente tentando escapar das dúvidas que a assaltavam, mas tudo que viu foi os olhos de uma garotinha sorridente, apesar do sofrimento pelo qual passava e os olhos marejados de sua mãe a lhe falar dela.
— Miserável! Por que tinha de me contar essa história?
Respirou profundamente e escorregou pelo tronco da árvore até encontrar o chão. A mata se encontrava em funesto silêncio, torturando-a com a ideia de que a muitos quilômetros dali, uma garotinha agonizava numa cama de hospital sem a mãe ao seu lado.
— Filha da mãe! — Sussurrou para o vento e ele brincou com seus cabelos.
— Você está bem?
Silvia a surpreendeu. Tinha se aproximado tão sorrateira que só se deu conta de sua presença quando falou.
— Não.
— Sente algo? Está machucada?
— Não, não é isso — a tranquilizou.
A amiga lhe sorriu, matreira.
— Entendo que esteja nervosa, mas logo estaremos a caminho de casa. Você está segura agora…
— Isso não deveria acontecer — a cortou, pensava naqueles últimos minutos de conversa com Adriana.
Palito deu alguns passos diante da varanda, cortando a luz que as tocava por um breve instante. Os tênis que Bianca usava, já estavam surrados e, assim como a camiseta, algumas manchas de tinta os decoravam. Sentia o perfume de Adriana naquelas roupas e, involuntariamente, voltou a mirar a porta.
— Entregue-a a polícia — pediu, novamente.
A loira juntou-se a ela, apoiando as costas no tronco, que era grande o suficiente para as duas, e cruzou as pernas ao sentar-se, relaxada. Sua mão buscou a dela, envolvendo-a com carinho.
— Já disse que nada posso fazer — a mirou nos olhos.
— Meu pai não é Deus. Não pode decidir quem vive ou morre.
Silvia se empertigou.
— Com certeza, ele não é. É um homem que deseja ver a justiça ser feita quando os meios legais falham.
— E você não é diferente dele.
— Não sei se isso foi um elogio ou uma crítica. Já discutimos isso há muito tempo e você concorda com certas ideias.
— Concordar que a Justiça é realmente cega em alguns casos, que nosso sistema é falho e que algumas pessoas merecem mesmo algum tipo de punição, não significa que aceito o que meu pai faz, o que você já fez. Não aceito assassinato como forma de justiça! Para mim, é apenas punir um crime com outro.
Silvia voltou a ficar de pé e Bianca a imitou, olhando-a com atenção, mas pouco podia ver de seu rosto, encoberto pelas sombras da aba do boné. Quando falou, sua voz era fria, apesar do calor de suas palavras.
— Alguns crimes tem um objetivo nobre, Bia. Quantos assassinos você processou? Quantos escaparam da justiça? Quantos pedófilos e estupradores? Quantos desses vermes retornaram para as ruas, para cometerem os mesmos crimes? Nossas leis são falhas, injustas e facilmente corrompidas, desde que se pague o preço certo — baixou a cabeça, balançando-a devagar, então a mirou novamente. — Seu pai e eu temos algumas diferenças. Você está familiarizada com isso.
Bianca cerrou os punhos e encolheu-se um pouco quando ouviu algo se quebrar dentro da casa. Silvia continuou:
— Ele se cansou de voltar para casa sabendo que deixou assassinos, estupradores, torturadores e tantos outros livres por falta de provas ou brechas na lei. Comigo não foi diferente. Não aguentava mais fechar os olhos para dormir e não conseguir fazê-lo — limpou a garganta. — Sabe que não faço mais parte desse grupo, mas não me arrependo do que fiz, pois, para cada vida que tirei, incontáveis outras salvei. É a mesma coisa com esses homens. Decidiram fazer justiça por aqueles que não a conseguiram pelos meios oficiais.
Deu um passo à frente e tocou o braço da amiga.
— Não sei o que fizeram contigo, Bia, mas você não está bem e este não é o momento para discussões do tipo. Deixe que façam o que seu pai ordenou e vamos para casa. Venha, vamos caminhar um pouco, você não precisa ouvir o que vai acontecer aqui.
Tentou conduzi-la para a estrada, mas Bianca não se moveu e afastou sua mão. Mais cedo, tinha lutado por sua liberdade, sem medir esforços. Teria matado se fosse necessário, mas o ato não lhe pareceria hediondo, já que buscava apenas se defender. Aquilo era bem diferente da opinião de Silvia e de seu pai.
— Você tem razão. Este não é um assunto para se discutir agora. Mesmo assim, não vou permitir que a matem. Não será como da outra vez. Ninguém irá morrer esta noite. Ela pagará por seus crimes da maneira correta. Então, por favor, mande aquele brutamontes parar com o que está fazendo e não minta para mim de novo. Sei que tem esse poder!
Um grito rouco cortou o ar e Palito jogou o que restou de seu cigarro fora, se voltando para a porta que o vento entreabriu. Cobra torcia o braço de Adriana, deixando-o em um ângulo estranho.
— Onde estão os outros? — Ele perguntou e a moça respondeu com um insulto. Esperava uma morte rápida quando o viu entrar com seus companheiros e não tardou a perceber, o que agora tinha certeza, graças a pergunta que seu agressor repetia no intervalo de cada soco que lhe dava. Não se contentariam somente com ela.
Eles queriam todos, seus amigos, sua família. Portanto, estava decidida a engolir a própria língua antes de falar qualquer coisaque pudesse entregar a localização deles.
Bianca se voltou para Silvia.
— Pare logo com isso!
Silvia hesitou tempo o suficiente para que decidisse agir por conta própria. Bianca retirou a arma do coldre na cintura dela e, quando a amiga esboçou uma reação, foi atirada ao chão com uma rasteira. Quando ameaçou se levantar, a devolveu para o chão com um chute. O ato, que tantas vezes repetiu nas horas de treinamento que compartilhavam desde a adolescência, lhe pareceu vil naquele momento, mas havia tomado sua decisão.
Determinada, atingiu Palito com um soco certeiro no rosto. Distraído com a ação de Cobra, ele não a viu se aproximar. Momentaneamente desorientado, recebeu uma joelhada na virilha e outro soco, desta vez, no estômago. Curvou-se em busca de ar e Bianca aproveitou para desarmá-lo. Ele ainda tentava respirar quando foi empurrado porta à dentro. Bianca o segurava a frente de seu corpo, envolvendo a gola da camisa dele com uma das mãos, enquanto a outra sustentava a pistola em sua nuca, atenta a qualquer reação que pudesse esboçar.
Cobra se voltou, surpreso.
— Solte-a — disse para ele.
Como ele não se decidiu, ela atirou no chão, próximo aos seus pés.
— Não estou brincando.
Obediente, ele se afastou e Adriana curvou-se no chão, contendo um gemido de dor.
— Bia! — Silvia gritou da soleira da porta e Bianca apontou a arma para ela. Seu boné tinha caído quando a chutou e agora podia ver sua face que expressava a mais pura perplexidade, enquanto um filete de sangue escorria de seus lábios.
— Sinto muito.
— Você enlouqueceu?
Por um instante, Bianca cogitou essa possibilidade, mas estava sã como nunca antes e, embora ir contra sua melhor amiga lhe causasse grande pesar, sabia que estava fazendo o certo. Estava disposta a dar o benefício da dúvida a mulher que lhe tomou a liberdade, mesmo que isso também lhe parecesse insano no momento.
— Não. Só não posso mais fechar os olhos para isso. O que fazem, embora seja bem-intencionado, não é justiça.
A amiga deu um passo em sua direção e Bianca voltou a mirar a cabeça de Palito.
— Pare — ordenou.
— Pare com isso, você não vai mata-lo — Silvia deu outro passo e a viu sorrir como costumava fazer quando estava confiante sobre seus atos.
— Não irei mesmo, mas posso machucá-lo muito. Só preciso atirar no lugar certo e, é claro, posso acabar errando.
Não estava blefando, Silvia a conhecia bem demais para perceber, então obedeceu quando pediu que se juntasse a Cobra no canto do cômodo. Só então, Bianca olhou para Adriana que parecia tão confusa quanto os demais.
— Pegue o dinheiro.
Desconfiada, Drica obedeceu, jogando a mochila nas costas, sentindo seu peso pressionando os ombros para baixo. Definitivamente, aquelas eram as 24h mais loucas de sua vida e sentia que aquele ciclo insano de acontecimentos e reviravoltas que havia iniciado quando entrou naquele banco, estava longe de acabar.
— Bia, por favor — Silvia insistiu.
—Eu é que peço. Por favor, não nos siga — retirou a gargantilha que usava, o único meio de ser rastreada pela amiga e a jogou no chão.
— Está louca!— Verdadeiro pânico tomou o semblante da ex-policial.
— Alguns crimes tem um objetivo nobre. Lembra-se disso? São suas próprias palavras — fez um gesto para que Adriana viesse para o seu lado e puxou Palito até a porta, usando-o como escudo, embora soubesse que, dificilmente, Cobra se atreveria a atirar nela, apesar de a mirar firmemente com sua Beretta 9mm.
Encontrou o olhar curioso de Adriana, em meio a um rosto de expressão séria e decidida, assim como tinha se mostrado minutos antes de se entregar.
— Não deixe que me arrependa disso — falou, então empurrou Palito para a frente com um chute, pegou o lampião na varanda e o jogou no chão com força. O vidro quebrou e a querosene se uniu as chamas que tomaram a madeira seca e apodrecida do piso, alcançando a porta, formando uma barreira que duraria tempo suficiente para escaparem.
A assaltante tomou sua mão e correram juntas mata adentro, ouvindo a voz de Silvia elevando-se com um tom extraordinariamente desesperado.
***
Os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, quando alcançaram uma estradinha estreita e coberta por folhas secas. Em baixo de uma árvore, no fim dela, estava o carro de Adriana, uma Saveiro preta com cabine dupla de para-choques e portas tão amassados que Bianca chegou a duvidar que pudesse sair do lugar.
— Ótimo, agora terei de rezar para não capotarmos ou irmos de encontro a primeira árvore no caminho — ironizou. Eram as primeiras palavras que dizia desde que fugiram. Durante todo o caminho até ali, o único som que produziram foi o de seus passos esmagando as folhas secas e gravetos e a respiração entrecortada pelo esforço.
Agachada, enquanto procurava a chave que tinha deixado presa em baixo do banco, Drica resmungou. A voz abafada pela posição em que se encontrava.
— “Acidentes” acontecem, principalmente quando se tem algumas inimizades — enviou-lhe um olhar torto, quando ela sentou no banco do carona e não conseguiu evitar de pensar em Alex. O traficante tinha sido responsável pelo estado lastimável de seu carro. Felizmente, não havia ninguém no veículo, quando um de seus homens bateu nele propositalmente.
Assumiu seu lugar no volante, girou a chave e o motor ronronou como se fosse um gato, surpreendendo Bianca. Drica mantinha as mãos na direção e o olhar fixo à frente, mas o carro não se movia.
— Obrigada — disse, após um longo e confuso minuto de silêncio, em que Bianca se dedicou a avaliar o interior do veículo, até visualizar a foto presa no painel. Outra vez, a garotinha, o motivo de toda aquela confusão. Estava suja da cabeça aos pés com uma bola de futebol nos braços e um sorriso lindo. Seus cabelos eram longos e castanhos e tinha um leve bronzeado.
Pegou a fotografia com cuidado e a observou por alguns instantes, enquanto era alvo da mesma inspeção por parte de Adriana.
— Me leve até ela — disse.
— O quê?!
A moça pegou a arma que repousava, quase amigavelmente, em seu colo e mirou o peito de Adriana.
— Acabei de salvar sua vida, duas vezes — ergueu dois dedos para enfatizar. — Estou disposta a ajuda-la mais uma vez, se me provar que a história que contou é verdade.
— Está maluca! Não vou te levar até a minha filha. Não vou arriscar que “seus amigos” se aproximem dela.
— Resolvi te dar o benefício da dúvida naquela cabana, por isso te ajudei. Pelo menos, foi essa uma das razões. Ouça, — voltou a pousar a arma em seu colo, mas não a soltou, nem retirou o dedo do gatilho — já conheci bons e péssimos mentirosos, reconheço um mau caráter a quilômetros. Mas você, não sei o que você é.
— Não sou mentirosa — afirmou com um sabor amargo na boca e a garganta seca.
— Então, me leve até a menina. Mostre que sua história é verdadeira e eu te ajudarei.
— Por que acha que preciso da sua ajuda?
— Precisou, horas atrás. Meus “amigos” não irão desistir — sua expressão era fria, mas seus olhos a traíam, demonstrando o incômodo que a ideia lhe trazia.
Drica girou sobre o banco, ficando de frente para ela.
— Quem é você, afinal? O que te faz tão especial, para que um grupo especial venha em seu socorro?
— Quero conhecer a garota. Me leve até ela. Me convença.
Os lábios rosados e machucados de Adriana se comprimiram em desagrado.
— E se eu não fizer?
A ex-refém lhe devolveu a fotografia e enfiou a mão no bolso do seu jeans, o mesmo em que tinha guardado seu celular horas antes. Bianca girou o aparelho na mão, dizendo:
— Agora sou eu quem tem a arma, ruivinha. Se não fizer, vou tomar tudo o que me disse por uma mentira, então ligarei para o meu “simpático grupo de amigos” e vou para casa.