Reféns do desejo

Capítulo 6

Texto: Táttah Nascimento

Revisão: Isie Lobo e Carolina Bivard

6.

— Não está falando sério! — Adriana protestou.
Estavam do lado de fora do casebre, do lado do carro estacionado, ainda com as portas abertas. Somente a luz da lua fornecia iluminação para que se vissem. Tinha acabado de contar sobre a ligação para Luiza e, diante do problema que se apresentava, Rebeca tomou uma decisão que surpreendeu a todos.
— Beca tem razão, Drica — Chico interveio, após um minuto em que o único som que ouviam, vinha dos grilos e cigarras na mata.
Adriana se empertigou, liberando o ar dos pulmões com impaciência, então escorou-se no carro. Na fraca luz do luar, parecia mais uma alma penada e Rebeca sentiu-se mal por vê-la assim.
Ainda era estonteantemente linda, mas, no último ano, perdeu peso e ganhou olheiras profundas pelas noites insones no hospital com a filha. Seu humor também mudou. Geralmente, era alegre e brincalhona; tinha um jeitinho cafajeste de conquistadora, o que ela era realmente. As mulheres tendiam a se jogar aos seus pés e, ela própria, não era imune aquela beleza e sorriso malandro.
No entanto, o sofrimento pela doença da filha e os problemas com o primo Lucas e Alex, a fizeram se isolar. Raramente sorria, estava sempre zangada e sombria. Sempre foi uma mulher de temperamento forte, às vezes, explosivo, o tipo de pessoa que não se calava ou ficava inerte diante de uma injustiça. Não recuava diante da maldade, nem de ameaças. Ela não conhecia o medo, até se tornar mãe.
Quando adotou Lis, filha bastarda de seu primo Lucas, Adriana mudou sua vida. Tornou-se mais tranquila, mais cuidadosa e procurou se afastar de problemas. Principalmente, aqueles que envolviam o traficante Alex.
Por causa dela, Rebeca largou as drogas. Quando sua própria família desistiu de tentar ajuda-la, Drica armou-se da coragem que lhe era característica, entrou numa comunidade dominada pelo tráfico, em que nem mesmo a polícia se atrevia a ir, e arrastou a amiga de infância de volta para casa.
Foi a primeira vez que seu caminho cruzou o de Alex.
— Não vou discutir, já está decidido. Chico precisa estar no hospital, em algumas horas, para iniciar seu turno sem levantar suspeitas, embora, pelo que sua irmã contou, ele não seja suspeito de nada. Quanto a mim, vou voltar para casa e procurar a polícia.
Na escuridão, ouviram Adriana socar a lataria do carro.
Rebeca amava a amiga como mulher há muito tempo e, embora tivessem dividido a cama algumas vezes, sabia que, para Drica, tratava-se apenas de sexo. Então, resignava-se ao papel de amiga. Drica era um furacão que, à sua passagem, despedaçava corações. Ela não fazia por mal, nem por ego, apenas desejava aventuras, enquanto as suas “conquistas” ansiavam por um romance, uma história de amor que jamais aconteceria.
Contudo, desde que Lis ficou doente, ela deixou as aventuras de lado, só tinha tempo para a filha e, quando não estava ao seu lado no hospital, estava extravasando sua raiva e medo de perde-la no ateliê. Nunca trabalhou tanto, nunca produziu peças tão lindas. Quanto mais desesperada ficava, mais bela se tornava sua arte.
— Veja o que está dizendo, você será presa!
— A polícia não tem provas concretas. Você, Rodrigo e eu, fomos entregar uma encomenda em outra cidade, o que é verdade e pode ser comprovado pelo cliente e por câmeras de segurança do posto de gasolina em que paramos…
— Um álibi irrefutável, já que para chegar até aquele banco levaríamos, pelo menos, três horas. Passamos no posto de gasolina às 10h da manhã e o assalto ocorreu um pouco depois do meio-dia — Rodrigo completou, entendendo o ponto de vista da amiga.
A polícia logo chegaria a conclusão de que eles não estavam envolvidos por se encontrarem muito longe do local. Poucas pessoas sabiam como se locomover no Parque Nacional e cruzá-lo para chegar a cidade, em que o assalto ocorreu, em pouco menos de duas horas, já que as estradas que o cruzavam foram fechadas há décadas e, a maioria, se encontrava tão deteriorada e encoberta pela vegetação que nem podiam mais ser nomeadas assim. A possibilidade jamais passaria pela mente dos investigadores, mas tudo era possível e era esse tudo que Rebeca tentava prevenir ao deixar o grupo.
Tinha sido um plano arriscado e fizeram aquele percurso um par de vezes, para se certificarem de que conseguiriam percorrê-lo sem problemas, garantindo assim, um álibi convincente para Rebeca que, mesmo que não tivesse sua voz reconhecida pelo gerente, poderia ser considerada suspeita, já que era uma ex-funcionária, muito insatisfeita, do banco que assaltaram.
Agora, todo esse trabalho não fazia mais sentido, pois tinham uma refém e a cadeia era apenas uma questão de tempo.
— Tudo o que a polícia tem até o momento, é a palavra de um homem que foi nocauteado com uma coronhada e que eu acusei de assédio sexual, um pouco antes de me demitir. Está entendendo onde quero chegar? — Aproximou-se da amiga e pousou a mão em seu ombro com carinho.
Drica ergueu a mão, pedindo para que ela parasse, sem saber se estava vendo o gesto naquela escuridão. Mas, se Rebeca o viu, ignorou, pois continuou a falar.
— A questão aqui, é ficarmos fora do radar por algum tempo. Precisamos ficar longe de suspeitas até que o dinheiro seja entregue amanhã à noite. Depois disso, levamos Lucas para o hospital e então…
— Seremos presos — Rodrigo terminou a frase.
Drica escondeu o rosto entre as mãos, reprimindo a vontade de chorar. Soltou os cabelos e prendeu-os novamente, enquanto organizava os pensamentos.
— Está bem — disse, por fim, percebendo que não conseguiria convence-los do contrário e voltando a ser uma fria bandida.
Rebeca se inclinou e beijou sua bochecha com ternura.
— Vamos nos preparar. Rodrigo ficará com você e amanhã…
— Não. O Digo irá com vocês.
— Como é?! — Disse o rapaz, surpreso.
Ela enfiou as mãos nos bolsos da calça e escorregou pela lateral do carro, até que suas costas ficaram completamente apoiadas nele.
— Preciso que vá até a chácara abandonada na entrada da cidade e verifique o local. É lá que ocorrerá a troca. Alex é um verme traiçoeiro e não tenho dúvida de que poderá aprontar alguma coisa para ficar com o dinheiro e não nos devolver aquele imbecil do nosso primo. Quero saber de tudo sobre o local, principalmente, rotas de fuga, caso precisemos sair de lá às pressas. Faça aquela coisa que você fazia no exército.
— Aquela coisa?!
A irmã gostava de brincar com esse tipo de frase, como se ele fosse um marine americano ou o próprio Rambo. Porém, naquele momento, não havia o menor tom de gracejo em sua voz, então decidiu não tecer comentários engraçadinhos.
— Acha mesmo que ele não vai cumprir com a palavra?
Ela se pôs de pé.
— Qual é?! O cara me odeia. Me culpa pelas misérias do mundo e está privando a minha filha da única chance de cura que tem! É claro que não confio naquele filho da puta! — Gritou, perdendo o controle de suas emoções outra vez.
Caminhou por alguns metros, então voltou para o carro e o chutou com tanta força que a dor irradiou por todo o seu corpo. Respirou fundo algumas vezes, então recomeçou a falar com voz baixa e rouca, onde os amigos puderam sentir a vibração do ódio que a dominava.
— Rodrigo irá com vocês e…
— Não acho uma boa ideia te deixar aqui, sozinha, com a refém ninja — o irmão protestou.
— Ficaremos bem — garantiu com um grunhido. — Além disso, se a polícia não acreditar na Beca, você poderá ajuda-la com os recibos e etc.
— E quanto a você?
Ela riu com amargura.
— Para todos os efeitos, estarei no meu apartamento ou no ateliê, passei mal ao chegar em casa, sei lá! Inventem o que for mais conveniente e me informem. Amanhã cedo, levarei a refém até o ponto onde deixei meu carro. Será apenas uma hora de caminhada, então seguiremos para o local de encontro. Ficaremos o resto do dia lá. Pagaremos aquele filho da puta, vocês levarão Lucas e eu soltarei a “gata ninja”.
Deu-lhes as costas e caminhou em direção a mata, desejosa de ter um minuto de paz, coisa que, sabia, enquanto Lis estivesse no hospital e Alex vivesse, jamais teria.

***

Dentro do casebre, atada a uma cadeira de pernas bambas e meio podre, Bianca ouviu parte da conversa e ficou verdadeiramente surpresa por descobrir que tinha, realmente, sido uma escolha aleatória para refém.
Evidentemente, uma péssima escolha, como eles já tinham constatado. Mas, as coisas estavam fadadas a piorar, e muito. Se bem conhecia a amiga de infância e ex-namorada, ela moveria céus e terras para encontrá-la e, ainda, explodiria tudo que estivesse em seu caminho. Tinha certeza de que já estava em seu encalço e, quando chegasse, não haveria piedade. Principalmente, se estivesse em companhia do grupo de extermínio financiado por seu pai.
A possibilidade disso lhe causou um arrepio, pois jamais aprovou esse lado sombrio do pai, embora concordasse, parcialmente, com sua opinião. O envolvimento dele com esse grupo era uma das razões para que se sentisse sempre incomodada e decepcionada com ele.
Quando era adolescente, seu pai enviou um poderoso traficante para a cadeia. Em retaliação, seus subordinados a sequestraram. Prometeram enviá-la para casa em pedaços se não libertassem o criminoso.
Nesse dia, ela descobriu o tipo de homem que o pai era, “alguém que acreditava nas leis”, mas que também fazia sua própria Justiça e Silvia também era assim.
Quando, anos mais tarde, descobriu que ela fazia parte daquele grupo, sua amizade ficou terrivelmente abalada. Mas, como tudo entre elas sempre girou em torno do respeito, passaram a fingir que essa parte da vida de Silvia não existia e, quando namoraram, a amiga se afastou completamente do grupo, principalmente, após cortar os laços com o juiz e sofrer um processo administrativo que culminou no seu afastamento da polícia.

***

— Ela não está bem.
Rodrigo mirou a direção que a irmã seguiu, mas não conseguiu enxergar nada, além do contorno das árvores.
— Nenhum de nós está bem.
Chico pousou a mão no ombro do rapaz. Não eram exatamente amigos. Sua ligação era mais forte com Adriana que tinha sido amiga de sua falecida esposa e madrinha do filho natimorto. Quando perdeu sua família no parto malsucedido, se entregou a depressão e a bebida, mas a moça jamais o abandonou. Se antes só a tolerava por causa de Amanda, sua esposa, agora a amava e respeitava como se tivessem o mesmo sangue.
Afinal, era nas horas mais difíceis que os verdadeiros amigos se apresentavam. Mas, foi a pequena Lis que o trouxe de volta a humanidade. Nela, reencontrou sua paternidade e redirecionou todo o amor que guardou do filho para a menina, que correspondia cada gota de carinho, dando um novo sentido a sua vida.
Por isso, não hesitou em propor aquele assalto, como meio de obter o dinheiro que o traficante exigiu para libertar Lucas, o único que poderia salvar a vida da criança; um pai desonesto e de má reputação, que só aceitou ajudar a filha porque precisava de um local para se esconder, quando Alex descobriu que ele tinha perdido um grande lote de drogas.
— O que vocês planejaram na noite passada, eu quero participar — apertou o ombro largo do companheiro.
— Não sei do que está falando.
— Eu ouvi tudo, cara. E sei que planejaram matar Alex, depois de tudo resolvido e da cirurgia de Lis. Mas, agora, as coisas mudaram. A polícia já está na nossa cola e não há como escapar — exalou devagar. — Fui um prisioneiro de mim mesmo, dos meus pecados, vícios e lembranças por muito tempo. As grades seriam apenas um detalhe a mais em minha vida. Mas, se vou para cadeia de fato, farei valer a pena.
O rapaz deu um passo para o lado, afastando-se do seu toque.
— O que está sugerindo?
— Morte, meu amigo. Estou falando de morte para aquele desgraçado do Alex. Ele mexeu com a “nossa” pequena e pagará por isso. Só temos uma chance de pegá-lo, antes de sermos presos e…
— Será amanhã, durante a troca — Rodrigo completou, entendendo onde queria chegar de fato.
Mesmo na escuridão, conseguiu enxergar o sorriso nos lábios finos de Chico, enquanto uma nova sensação de euforia lhe invadia o peito.

***

Drica não tinha percebido que estava chorando até Rebeca se aproximar e passar a mão em sua face, enxugando suas lágrimas.
— Vai ficar tudo bem — a puxou para si e pôde sentir o perfume cítrico que exalava, apesar de toda a sujeira que a cobria.
— O que faria sem você? — Soluçou.
Rebeca riu baixinho e fez uma piadinha erótica que lhe arrancou um sorriso fraco.
— Tenho medo — admitiu.
— Estamos todos com medo, Drica.
— Tomei decisões e atitudes que não podem ser desfeitas.
—Isso não muda o resultado do que irá acontecer amanhã.
— Não devia ter arrastado vocês para isso — a dúvida lhe assaltava, impetuosa.
— Não me lembro de ser puxada pelos cabelos e obrigada a segurar uma arma. Deixe essa culpa de lado, todos fomos voluntários. Mas, reconheço que você tomou decisões erradas como, por exemplo, trazer aquela ninja louca conosco.
Adriana assentiu, seus lábios curvando-se, levemente, em um sorriso que não se completou.
— Mas, não pense que não percebi nada.
As sobrancelhas da amiga se ergueram, acentuando a confusão em sua face e tentou se afastar, mas Rebeca aumentou a pressão em volta de seu corpo, trazendo-a para mais perto. Falava baixo em seu ouvido, quase sussurrando.
— Te conheço, Adriana. Vi seu olhar quando a refém entrou naquele banco antes de nós; você quase a comeu com os olhos.
— Não comece com isso, outra vez — pediu, irritada, e se libertou do seu abraço. — Fiz o que fiz, porque não queria que ninguém ficasse para trás.
— E escolheu justo a “gostosa” que te jogou charminho antes de entrar no banco?! Ah, me poupe! Tanta gente à nossa volta e você pega justo ela?
— Céus! Eu não acredito nisso! — Afastou-se, mas Rebeca impediu que avançasse mata adentro.
— Só estou falando o que vi, não precisa se irritar.
— Você está enganada.
— Talvez tenha feito inconscientemente, mas o fato é que ficou atraída por ela.
— Que absurdo! — Mas, a lembrança daquele beijo insano, lhe invadiu a mente, deixando-a desconcertada e ficou grata pela escuridão que as cercava, impedindo que a amiga visse o rubor em sua face, confirmando suas palavras.
— Vi isso em seus olhos naquele galpão e na beira daquele barranco. Ela te instiga e nós duas sabemos, perfeitamente, que você adora um desafio e, foi exatamente isso que ela fez. Te desafiou, te intrigou, se comportou totalmente ao contrário do que se espera de um refém.
Chegou mais perto, enlaçando seu braço e puxando-a em direção ao casebre. Naquele local, tinham vivido muitas aventuras na adolescência e, se aquelas paredes que se esfacelavam e a madeira podre das portas pudessem falar, haveria muita gente de cabelo em pé.
— Toquei no assunto porque você vai ficar sozinha com ela…
— Pelo amor de Deus! Estou aqui para salvar minha filha, não para bancar um homem das cavernas, sequestrando sua fêmea!
Se desvencilhou dela e seguiu o resto do caminho com passos duros, deixando Rebeca na dúvida se estava imaginando coisas.

***

As chamas dançaram nos olhos de Adriana, deixando-os ainda mais amarelos do que eram. Da janela entreaberta, Bianca a observava, curiosa por saber mais sobre aquela bela e perigosa criatura que a aprisionou.
Os outros assaltantes tinham partido meia hora antes, usando roupas comuns e, agora, a bandida estava queimando as roupas que usaram no assalto, incluindo as luvas, máscaras e mochilas, nas quais carregaram o dinheiro. Nem mesmo as botas escaparam.
— Não vai adiantar muito — Chico comentou, um pouco antes de partir, quando a viu reunir alguns gravetos para a fogueira e indicou, com um movimento de cabeça, o interior da casa. — Ela sabe como somos, já deve ter ouvido nossos nomes serem pronunciados…
Através da janela, parcialmente fechada e de madeira apodrecida, conseguiram visualizar os fios negros e lisos do cabelo de Bianca e não tardou para que o olhar curioso da moça os encontrasse também.
— Mesmo assim, quero me livrar disso — respondeu, retirando a camiseta e a calça sem qualquer pudor e as atirou nas chamas, sendo imitada pelos companheiros.
Bianca assistiu aquela cena completamente surpresa e encantada com a beleza do corpo que via e, se permitiu admirá-la durante todo o tempo em que permaneceu diante das chamas, o que não foi muito, pois ela acabou desaparecendo por trás da casa e, tudo que pôde ouvir durante um bom tempo, foram seus passos esmagando a folhagem seca.
Ao longe, uma coruja piou e ouviu-se o bater de suas asas, lembrando-a das viagens de fim de semana para acampar no sítio dos avós de Silvia, quando eram adolescentes.
Eram momentos raros de liberdade ao lado da melhor amiga. A lembrança lhe trouxe o arrependimento por ter sucumbido ao desejo de beijar a mulher que a sequestrou e culpou a adrenalina do momento assustador pelo qual tinha acabado de passar, apenas porque não queria admitir que algo naqueles olhos amarelos a atraía.
Claro que não esperava que ela a correspondesse, sequer sabia por que a tinha beijado. Mas, sentindo a firmeza do corpo dela embaixo do seu, a respiração ofegante pelo esforço que fizera para salvá-la, não resistiu ao magnetismo daquelas íris e dos lábios vermelhos e convidativos.
Quando a provocou, dizendo que ela baixava a guarda, queria apenas esconder a confusão de sentimentos que se instaurou em seu interior, mas, também, regozijou-se com a expressão de surpresa no olhar dela. Contudo, a bandida virou o jogo. Com certeza, não estava preparada para receber aquela resposta atrevida e cheia de promessas que, pela primeira vez em muitos anos, lhe causou rubor.
Baixou os olhos para os próprios pés. Estavam imundos e latejavam bastante, graças a fuga e a caminhada de volta. No escuro, tropeçou tantas vezes e pisou em tantos espinhos que perdera as contas, mas o tempo passou muito mais rápido do que percebeu, pois, durante o percurso, sua mente estava voltada para ela, para a ruiva e o modo como surpreendeu-se, prazerosamente, mergulhada em sua boca.
De repente, a resposta lhe veio à mente e sorriu para o vazio, já sabendo a razão de tê-la beijado.
Silvia tinha sido a primeira e única mulher em sua vida.
Antes dela, nunca se sentiu atraída por mulheres, mas sempre admirou a figura altiva e esbelta da amiga que, desde muito nova, tinha deixado claro seu gosto pelo sexo feminino. Estranhamente, foi uma brincadeira que as levou a um romance, do qual Bianca não fugiu e nem se escondeu, enfrentando a fúria do pai.
Mas, como Silvia costumava dizer quando o assunto surgia, “não era para ser” e o namoro acabou como começou, com um beijo estalado nos lábios e um carinho na bochecha.
Depois dela, não houve outras.
Nenhuma mulher lhe chamou a atenção desde então, nem mesmo para uma transa passageira. Então, voltou a ser a Bianca de antes, séria e dedicada ao trabalho que, vez ou outra, conhecia um homem interessante e tinha namoros rápidos, até Artur aparecer.
Depois que aceitou seu pedido de casamento, não conseguia parar de se perguntar se estava fazendo a escolha certa. No fundo, sabia que a única razão para ter lhe dito sim, foi o costume. Estava acostumada com seu carinho, dedicação e cuidado. Tinham gostos e opiniões muito parecidas, mas, ao mesmo tempo em que isso os mantinha unidos, também a incomodava e distanciava. Pois, ela não era aquele tipo de mulher; jamais se conformaria em ter uma vida pacata, o homem perfeito, os filhos perfeitos, o emprego perfeito.
Mexeu os pulsos, atados a cadeira, queestavam dormentes e mordiscou o lábio. Tinha tomado uma decisão. Assim que saísse daquela situação, se saísse com vida, poria um fim naquela relação.
Já conseguia visualizar o sorriso de aprovação de Silvia, pois sabia que, apesar da polidez e educação, ela detestava Artur. Não por ciúmes, pois não era o tipo de mulher que se deixava arrastar por um sentimento tão traiçoeiro, apesar de admitir que ainda amava Bianca, no entanto, a amizade delas era muito mais forte do que qualquer outro sentimento.
Fora essa a razão de ter beijado aquela criminosa que lhe tomou a liberdade e jogou em uma perseguição insana. Ela a lembrava de Silvia. Não a aparência, pois ambas tinham belezas distintas, e nem a personalidade. Não sabia definir o que era exatamente, mas, com certeza, era a mesma coisa que a atraiu na amiga e a fez sair da sua zona de conforto e, isso era muito perigoso.
Drica entrou no casebre a arrancando de seus pensamentos. Tinha passado mais de uma hora fora e a prisioneira começou a imaginar que tinha lhe abandonado. Bianca, tentou ignorar o palpitar alegre em seu peito quando a viu abrir a porta eesforçou-se para manter os olhos longe de sua figura, mas era quase impossível quando ela ficava andando de um lado a outro, molhada da cabeça aos pés e usando roupa íntima.O que lhe permitiu ver a tatuagem em seu quadril, uma pena negra que se esfacelava em uma intrincada renda formando um pássaro, a mesma renda que formava a tatuagem, em forma de bracelete, no seu braço direito.
A criminosa desprezou o olhar furtivo da refém e concentrou-se em retirar roupas limpas de uma das mochilas, que estava atirada sobre a mesa de pernas quebradas, que se mantinha em pé por estar escorada a parede. Ao contrário dos amigos, não queimou as botas e voltou a calça-las quando terminou de se vestir com jeans e camiseta branca.
Mesmo tendo se lavado no rio que ficava a poucos metros dentro da mata, ainda se sentia suja e mais preenchida de ódio do que nunca.
Caminhava pelo cômodo pequeno e sufocante, tentando afastar aquele sentimento, mas quanto mais tentava, mais forte ele ficava. Já tinha ido e vindo tantas vezes de um lado a outro, que Bianca perdeu as contas e gemeu, exasperada.
— Será que você pode parar com isso? Está me deixando nervosa. Se tenho que ser sua prisioneira, pelo menos, me poupe de vê-la andar como uma barata tonta. Isso me dá nos nervos!
Adriana estacou no meio do cômodo e a mirou com atenção. Percorreu os traços daquele rosto bonito de nariz empinado e quase teve vontade de rir do que ela dissera.
Quando foi que se tornou aquilo? Quando pôs a verdadeira Adriana de lado? Quando se permitiu ser tão vazia e cheia de escuridão?
Sem perceber, venceu a distância que as separava em poucos passos. Parou diante dela, os olhos fitos nos lábios grossos e vermelhos. Tinha esquecido do beijo que trocaram, mas, agora que estavam próximas, a lembrança lhe voltou arrebatadora.Fechou os olhos para fugir dos intensamente negros dela e, quando voltou a abri-los, notou o quanto estava suja, os cabelos em desalinho, as bochechas e braços arranhados. Seus pés estavam imundos, quase negros de tanta lama e poeira, e tinham algumas gotas de sangue coagulado.
Não se parecia, de modo algum, com a mulher que sequestrou naquele banco.
Bianca esperou que a golpeasse, tamanho era o ódio que via em sua face, mas ela se afastou em silêncio. Com um murmúrio pesaroso, Drica pegou um balde velho, meio corroído nas bordas, que estava jogado em baixo da mesa e saiu.
Voltou, quinze minutos depois. Depositou o balde ao lado de Bianca, pegou uma bacia, que também estava jogada debaixo da mesa, ao lado de meia dúzia de recipientes culinários e derramou um pouco de água, colocando-a no chão diante da moça.
Ajoelhou-se e fez questão de tocar seus pés, mas a refém os afastou, arredia.
— Estão sangrando, precisam ser limpos.
Ainda assim, Bianca não lhe permitiu o toque.
— Vê só, Gata Ninja…
— Não me chame assim!
— Então, como prefere que eu te chame? Rambo de saias beijoqueiro? — Riu.
Bianca reprimiu um palavrão e, a contragosto, disse seu nome.
— Bianca, este é o meu nome — resmungou.
A bandida inclinou a cabeça e tocou um de seus pés.
— Posso? Ou prefere ficar assim, sangrando e imunda?
Ela ainda pensou em negar o cuidado, mas acabou cedendo, afinal seus pés estavam em um estado lastimável e doíam bastante. Drica os lavou e retirou os espinhos devagar, depois secou-os e colocou Band-Aid nos cortes. Sempre tinha o adesivo curativo consigo, pois, Lis, como qualquer criança, se machucava com frequência e, mesmo que não estivesse com ela naquele momento, o hábito permanecia.
Bianca estranhou os curativos coloridos com desenhos infantis, mas nada disse.
— Ainda tem água suficiente, naquele balde, para que você possa se lavar — cortou as braçadeiras que Rodrigo utilizou para prendê-la na cadeira e se afastou com a mão na pistola em sua cintura.
A moça olhou para o balde, desconfiada, mas também desejava se livrar da poeira e lavou-se o melhor que pôde, retirando a blusa rasgada e imunda. Enquanto o fazia, Drica atirou uma camiseta para ela. Era larga e manchada de tinta, mas estava limpa, assim como a bermuda que pescou do fundo da mochila.
Sempre tinha roupa extra na mochila, pois conseguia se sujar com facilidade no ateliê e quando fazia entregas também.
— Acho que vai servir — disse, os olhos fixos nos cabelos negros e molhados da outra, que a fitou estranhamente, com as roupas nas mãos.
Como a morena hesitou, a sequestradora sorriu com o mesmo jeito cafajeste que seu irmão costumava usar.
— Não vou me virar para a parede, se é o que está esperando.
— Pra ser sincera, gostaria.
— Não vai rolar. Você não é exatamente confiável.
— Isso vindo da mulher que me sequestrou e assaltou um banco!
Drica sorriu com um dar de ombros.
— Sem enrolação. Você já me viu com pouca roupa, também quero te ver — brincou.
— Cretina!
A assaltante gargalhou. Não ria daquele jeito, há quase um ano.
— Prefiro que me chame de Adriana ou Drica, se preferir. E, não, não é um nome fictício. Você pode usá-lo quando for à polícia — balançou os ombros, enfiando uma das mãos no bolso traseiro da calça, enquanto a outra permanecia sobre a pistola em sua cintura.
Sem alternativa, Bianca se trocou rapidamente e Drica lhe admirou por alguns segundos. Tinha sido taxativa quando Rebeca a interpelou, mas a amiga estava completamente certa. Aquela estranha, a atraía muito mais do que conseguia admitir.
Sua mente se voltou para a filha e todo o jeito brincalhão a abandonou. Não era o momento ideal para se entregar a atração por alguém, ainda mais a mulher que sequestrou.
Antes de Bianca encerrar sua tarefa, ela lhe atirou um par de tênis. Por isso, não havia queimado suas botas como os outros. Quando estava prestes a fazê-lo, recordou que a refém estava descalça e seria complicado caminhar com ela assim, por uma hora dentro da mata.
— Seus pés são pequenos. Acho que ficarão folgados, mas será melhor do que ficar descalça, pois já vimos que isso não funciona. Não é mesmo?
Bianca inclinou a cabeça e calçou os tênis, sentindo um grande alívio pelo contato com as palmilhas macias. Realmente, ficaram um pouco folgados, mas um ajuste nos cadarços resolveu o problema.
— Que tipo de sequestradora é você? — Quis saber, dando alguns passos pelo local, satisfeita por poder esticar um pouco as pernas.
A criminosa tinha ido se recostar ao lado de uma janela. Grãos de areia das paredes que se esfacelavam, caíram sobre seus ombros. Ela os soprou, distraída.
— Faz diferença? Amanhã, neste mesmo horário, você estará com a sua família e eu…
— Morta. Amanhã estarei em casa e você estará morta.



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2017 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.