Texto: Táttah Nascimento>
Revisão: Isie Lobo e Carolina Bivard>
4.
Um tiro atingiu a parede diante dela.
Bianca encarou o orifício que ele deixou, notando o quão próximo de seu corpo passou, já que se alinhava perfeitamente com sua sombra. Seu movimento ficou congelado no ar, a barra que segurava parecendo duas vezes mais pesada do que realmente era. Respirava entrecortadamente, sentindo o sabor do próprio sangue na boca, resultado de um soco. Seu coração batia acelerado como se tivesse acabado de correr uma maratona.
Aguardou o próximo tiro, àquele que ceifaria sua vida, mas ele não veio. Então, um pouco trêmula, se voltou devagar para se deparar com a visão da atiradora, que se encontrava parada no meio do galpão,a arma firmemente apontada para ela, embora estivesse um pouco esbaforida.
— O próximo será na sua cabeça —ela avisou, os belos olhos frios, como o metal da pistola que segurava.
O brilho ameaçador da luz que refletia no cano prateado da arma, convidava Bianca a desafiá-la, mas algo lhe dizia que aquela era uma mulher que não jogava palavras ao vento e teve certeza de que ela a mataria, se necessário.
Baixou o olhar para o homem em baixo de si. Pressionava o peito dele com o joelho, colocando todo o seu peso naquele local, dificultando sua respiração.
— Solte a barra.
Bianca obedeceu, atirando o objeto alguns metros adiante e o bandido em baixo dela gemeu em busca de ar.Drica se aproximou com cautela, até parar do seu lado. Os lábios grossos comprimidos em uma expressão que, Bianca imaginou, era o mais próximo do ódio que aquele belo rosto poderia chegar.
Gesticulou, ordenando que saísse de cima do parceiro. Chico tossiu algumas vezes, recuperando o oxigênio e se colocou de pé com esforço. Manteve-se curvado, as mãos apoiadas nos joelhos e os olhos,lacrimejantes, fixos no vazio. Estava vermelho e com veias saltitantes, mas, fora isso e alguns arranhões, encontrava-se perfeitamente bem.
Adriana apanhou as duas armas no chão e as colocou na cintura; a dureza e o frio do metal incomodaram sua pele, mas sua face era uma máscara sem sentimentos. O peso delas fez sua calça deslizar alguns centímetros, revelando um abdome definido, onde parte de uma tatuagem em seu quadril ficou visível.
Manteve o olhar fixo em Bianca, enquanto se ajoelhava e examinava Rebeca, sentindo um grande alívio ao descobrir que estava apenas desmaiada,assim como o irmão. Escorregou os dedos, carinhosamente, pelo cabelo dela, verificando a ausência de uma ferida aberta e sangue, então voltou a ficar de pé.
— Vá pegar uma corda — ordenou a Chico.
Ele tossiu mais algumas vezes e se pôs ereto. Estava, visivelmente, envergonhado por ter sido vencido tão facilmente e, também, aliviado, pela chegada de Adriana ter impedido que fosse ecado e, talvez, morto. Ajeitou a camisa empoeirada, que exibia nodoas de suor, e notou que alguns botões tinham sido arrancados durante a briga, entãomancou em direção ao carro, sem olhar para trás. Escondia um sorriso estranho, enquanto pensava no quanto àquele dia estava se tornando estranho.
— Uma corda boa e resistente — Adriana enfatizou, tentando aplacar um pouco da raiva que sentia.
Bianca a fitava o mais friamente possível, recusando-se a sentir qualquer coisa que não fosse ódio e raiva de si mesma por ter sido pega novamente. Tinha arriscado sua liberdade e perdera.
Quase teve vontade de rir, imaginando o que o pai diria se estivesse ali. Provavelmente, escarneceria de suas escolhas e lhe atiraria algumas verdades na face. Verdades, as quais ele se achava dono. Com certeza, a acusaria de ter pecado por excesso de confiança, o que não deixava de ser verdade.
— Você perdeu a chance de escapar. Por quê? — Drica voltou a falar; sua voz baixa e suave, ao contrário da pose agressiva.
Enquanto se dirigia para a estrada com Chico ao seu lado, discutiram sobre deixa-la ir, mas não estava disposta a abrir mão da pequena vantagem que tinham.
— Será melhor para todos — ele afirmou.
— Quer apostar uma vida nisso? — Retrucou, e ele encolheu os ombros, dando-se por vencido.
Ele encontrou os sapatos próximo à saída do pátio. Analisou-os com cuidado, supondo o caminho óbvio e já começava a se dirigir para a estrada quando Drica percebeu a folhagem revirada.
Ela tinha estado ali com Rebeca, mais cedo.
Sempre foi uma mulher atenta aos detalhes e notou a mudança no local, rapidamente. Em poucos minutos, encontrou as pegadas que retornavam para os galpões e desapareciam ao encontrarem o asfalto do pátio o que, com certeza, seria mais difícil se não tivesse chovido na noite anterior. Eram passos leves e quase imperceptíveis, mas estavam lá, então fez Chico retornar, enquanto dava uma volta rápida pelo pátio. Felizmente, não se demorou e chegou a tempo de salva-lo.
Bianca limpou um pouco do suor em sua testa, sentindo alguns grãos de poeira arranharem sua pele e Adrianabalançou a arma, percorrendo os traços do rosto dela sem esconder o interesse. Perguntava-se quem era realmente, consciente de que, se estivesse em seu lugar, certamente optaria por estar o mais longe possível deles.
Ao longe, Chico curvou-se à procura de algo no porta-malas do carro. Observando-o, compreendeu o que ela pretendia fazer.
— Ah, o carro — disse, observando os olhos negros, como carvão, se fecharem um pouco, indicando que tinha acertado. — Com certeza, a maneira mais rápida de sair daqui e evitar que a perseguíssemos. Foi esperta. Teria dado certo se tivesse conseguido ocultar seus rastros.
Deu um passo à frente, afastando alguns fios vermelhos que lhe caíam sobre a face.
— Vou ser sincera com você — deu uma volta completa nela, até estacar à sua frente. — Não era minha intensão ter uma refém. Sequer estava em meus planos sair daquele banco da forma que saímos. Devíamos entrar, pegar o dinheiro e partir. Nada mais. Mas, não há crime perfeito e a chegada da polícia era uma possibilidade iminente. Fizemos planos para isso, mas, como pôde perceber, mudaram radicalmente e cá estamos.
Sorriu, cheia de ironia, amaldiçoando aquele dia.
— Precisei fazer uma escolha. Com certeza, não foi a mais sábia, mas deu certo.
Seu maxilar se contraiu.
—Sabe por que fiz isso?
Bianca não se manifestou e a viu dar um suspiro antes de responder a própria pergunta.
— Fiz porque não deixaria nenhum dos meus amigos para trás. Eles são a minha família — encarou-a firme, o rosto bronzeado tornando-se rígido e quase inexpressivo. — Se não tivesse visto nossos rostos, te deixaria na primeira esquina que encontrasse. Como isso não é possível, você vai conosco.
Os lábios de Bianca se crisparam e ela os mordiscou até que a dor se tornou insuportável.
— Então, vamos deixar algumas coisas claras para que essa nossa — apontou para ela, depois para si — “relação” possa ter um final feliz.
A forma que falou acabou por arrancar um sorriso de escárnio de Bianca. Definitivamente, aquele era um bando interessante.
— Não tenho a intensão de te matar, mas o farei se tentar machucar um dos meus novamente, como agora há pouco — apertou a arma com mais força e sua mão tremeu ligeiramente. — Sei que a palavra de uma criminosa de nada vale, mas é assim que as coisas vão acontecer: você ficará conosco até que entreguemos o dinheiro, depois será libertada.
A boca de Bianca se curvou,ampliando o sorriso.
— Nossa, que bandidos bonzinhos!
Adriana balançou os ombros, admirada com a clareza e firmeza na voz dela e achando-a tão bonita quanto suas feições.
— Já estava começando a achar que era muda — comentou, então voltou a se concentrar no que dizia, dando um passo à frente.— Tenho algo muito importante a fazer com esse dinheiro e não deixarei que ninguém me atrapalhe. Quando estiver concluído, você terá sua liberdade de volta.
— Simples assim?
Confirmou com um inclinar de cabeça.
— Desculpe se não acredito.
— Não precisa, mas irá acontecer. É tudo uma questão de tempo e pouco importa o que fará a seguir.
Bianca cruzou os braços, cética, e a viu dar mais um passo em sua direção, ficando perto o suficiente para que pudesse sentir seu perfume, levemente cítrico. Daquela distância, poderia esboçar uma reação, mas se manteve imóvel. Algo naqueles olhos lhe enviou um alerta silencioso.
Drica percebeu suas intensões.
— Ah, não faça isso. É tolice. Você não pode me surpreender como fez com eles.
— Talvez consiga — desafiou, instigada por suas palavras.
Drica riu, percorrendo, com o olhar, o belo rosto daquela estranha, tentando fingir que não estava achando aquela situação deveras interessante, apesar da raiva e incômodo que lhe trazia e, principalmente, do fato de que não deveria se distrair.
— Você é boa de briga, mas eu também sou e nunca baixo a guarda — afirmou com um sorrisinho confiante.
— Vamos ver — Bianca retribuiu o sorriso.
Chico se aproximou, claudicante, tomou as mãos dela e envolveu seus punhos com braçadeiras plásticas, então, foi ajudar os amigos caídos.Rebeca gemeu, quando ele se aproximou e abriu os olhos, recuperando os sentidos. Ergueu a mão até a nuca, massageando o local em que tinha sido atingida. Focalizou o amigo, que lhe estendeu a mão, depois deslizou o olhar para as duas mulheres, sentindo um arrepio percorrer sua espinha.
Elas não se moviam, apenas se fitavam como se fossem belas estátuas a medirem forças com o olhar. Com certeza, uma visão impressionante, que a deixou irritada, pois conhecia bem aquele brilho nos olhos de Adriana. Esta, por sua vez, tomou um dos braços de Bianca e a empurrou em direção ao carro.
A moça não resistiu. A acompanhou devagar, sentindo a mão dela envolvendo seu braço como uma garra, ferindo sua pele.
Não acreditava naquela historinha de ser libertada, nem mesmo acreditava que tinha sido uma escolha aleatória para refém. Pelo contrário, imaginava que, mais uma vez, servia como um meio de atingirem seu pai.
Ela própria havia cultivado inimigos e colecionado uma centena de ameaças de morte ao longo de sua carreira, mas depois que abandonou a promotoria, a maior emoção em seu trabalho era decidir que roupa usar.
Adriana abriu o porta-malas do carro, fitou Bianca nos olhos e lhe sorriu, quase maldosa. Então, sem cerimônia, a empurrou para dentro.
***
Artur fechou os olhos e imaginou o punho cerrado atingindo sua face com força, mas o golpe não veio. Em vez disso, ouviu um insulto, enquanto os olhos negros como carvão do sogro o fitavam a poucos centímetros de distância. O cheiro do uísque que ele tomava, minutos antes, invadiu suas narinas causando-lhe enjoo e virou o rosto para fugir de seu hálito e do ódio em seu olhar.
Um tapa o fez voltar a encará-lo. Foi fraco, mesmo assim, doloroso e humilhante e, de modo algum, pretendia revidar. Não por temer o sogro, o que também era verdade, mas porque era um homem pacífico que sempre recorria as palavras, jamais aos punhos.
Seu modo de pensar, algumas vezes, causou conflito com Bianca, principalmente, quando a via treinar, por horas, golpes de defesa pessoal com Silvia, como se estivesse sempre à espera de ser atacada.
— Como você pôde deixar a minha filha para trás? — O sogro perguntou novamente. Uma veia saltitava na sua testa, semioculta pelos fios grisalhos de seu cabelo, que estava sempre e impecavelmente alinhados, diferentemente daquele momento de ira.
Ricardo Vargas, rilhava os dentes com os punhos cerrados numa clara tentativa de controlar seu ódio. Artur era, certamente, um bom homem e gostava dele. No entanto, tinha acabado de fazer algo odioso: deixado sua filha à mercê de bandidos. Arregaçou as mangas da camisa imaculadamente branca e arrumou os cabelos, enquanto retornava para o sofá que ocupava, um minuto antes, ignorando o suspiro de alívio do futuro genro, que se empertigou e seguiu seu exemplo, sentando-se pesadamente numa poltrona.
— Apenas enxerguei uma oportunidade e a peguei… — defendeu-se, os lábios tremendo.
— Como um bom covarde — completou Ricardo, deixando ainda mais claro seu descontentamento.
— Senhor, eu…
— Me poupe de suas desculpas esfarrapadas — rosnou.
Cabisbaixo, Artur ficou de pé. Escorregou as mãos trêmulas pelos cabelos castanhos, cortados rentes às orelhas.
— Acho melhor ir para casa — disse em um sussurro.
O sogro o fuzilou com o olhar.
— Sente-se — ordenou. — Poderá trocar essas calças borradas e chorar mais tarde! Enquanto isso, vai manter sua bunda nessa poltrona até que eu ordene o contrário!
Artur engoliu em seco, notando a veia na testa dele pulsar com mais força e os lábios grossos se comprimirem em uma expressão de nojo. Obediente, voltou a sentar-se e o viu deixar a sala em seguida.
Ricardo caminhou o mais rápido que a bengala e a perna, cuja dor nunca lhe abandonava desde que levou um tiro em um atentado, lhe permitiam. O espelho sobre o aparador no fim do corredor, pelo qual seguia, refletia a imagem de um homem com quase setenta anos. Seus olhos exibiam uma cor negra intensa que, outrora, também dominou seus cabelos, agora ralos e grisalhos. Seu rosto era rígido, com uma expressão severa e quase inflexível. A barba, farta e bem aparada, era entremeada por fios brancos eacinzentados. Ele a cofiou rapidamente, vendo seu reflexo se agigantar à medida que se aproximava do espelho.
Era ainda muito bonito e atraente e ficava ainda mais quando se permitia ser gentil, principalmente, com as mulheres. Quem o visse ao lado de Bianca, não teria qualquer dificuldade em reconhecer seu parentesco, pois além dos traços físicos, possuíam a mesma altivez.
A filha, embora nunca o tivesse dito em voz alta, era seu maior orgulho. Era, também, uma de suas maiores preocupações.Como juiz, fez muitos inimigos e houveram vezes em que tentaram usá-la para atingi-lo. Tinha quase certeza de que não era diferente daquela vez.
A única questão era: quem?
Encontrou o chefe de sua equipe de segurança, Armando, na cozinha. Ele tinha uma xícara de café em uma mão e um biscoito meio mordido na outra. Se empertigou na cadeira quando o patrão entrou intempestivamente no local e um olhar foi mais que o suficiente para que largasse o lanche e se pusesse de pé para, logo em seguida, acompanha-lo em silêncio.
Armando ajustava a gravata, enquanto caminhava, silenciosamente, um passo atrás do chefe. Tomou um susto, mas nada demonstrou, quando o Juiz se voltou, os olhos faiscando de raiva. Reconheceu a veia saltitante em sua testa, sinal de que estava em seu limite, e largou a gravata.
— Ligue para Silvia — ele ordenou em um sussurro colérico. — A quero aqui em uma hora!
O segurança resistiu a vontade de franzir o cenho e perguntar do que se tratava. Tinha liberdade para isso e muito mais, afinal, trabalhava com o juiz há mais de vinte anos. Já tinha até levado uma bala por ele. Contudo, não o faria, assim como nunca questionou a razão de seu chefe odiar sua filha.
Silvia teve sua entrada barrada naquela casa havia quase dez anos. Nesse meio tempo, o juiz jamais pronunciou seu nome e quando, eventualmente, alguém tocava nele, uma tempestade se formava. Bianca gostava de provoca-lo falando sobre Silvia sempre que discutiam.
O juiz bateu a bengala no piso com força e Armando inclinou a cabeça, assentindo. Enfiou a mão no bolso e retirou o celular, enquanto observava-o entrar em seu escritório e a porta se fechar com uma pancada.
Apenas meia hora tinha se passado quando Silvia estacionou o carro diante do portão da casa. Armando já a aguardava, desconfortavelmente, debaixo do sol do meio da tarde. O rosto vermelho e suado, os braços cruzados sobre o peito largo.
— O que estou fazendo aqui? — A filha o questionou, abraçando-o rapidamente e, como sempre acontecia, ele lhe admirou a face alva e os olhos azuis como o céu tão semelhantes aos de sua falecida mãe.
Ele lhe contou o que sabia, ou seja, nada, e a conduziu para o interior da residência, lembrando-se de quando ela deixou de ser bem-vinda ali. Sempre soube a razão que levou o juiz a odiá-la.
Era algo simples e bonito que, para um homem como Ricardo Vargas, era inaceitável. Era amor.
Silvia aguardou em silêncio, enquanto os olhos desprovidos de calor do Juiz Ricardo a percorriam de alto a baixo em uma avaliação incômoda e minuciosa. Quando seu olhar negro e cheio de desdém encontrou o azul dos seus, ela o sustentou. Se encontrava diante de um homem que transbordava poder, que era temido e gostava disso. Um homem que a odiava porque, um dia, ela ousou amar sua filha. Mas, ao contrário da maioria das pessoas, ela não se encolhia em sua presença.
Houve um tempo em que ele a teve na mais alta estima e lhe confiou um grande segredo e responsabilidade. Agora, eram dois estranhos ligados pelo amor que sentiam por Bianca.
Inconscientemente, ela lhe sorriu, enfiando as mãos nos bolsos traseiros da calça.
— Sente-se! — Rosnou o Juiz.
Silvia não se moveu, tampouco fez questão de agradecer seu “convite”. Teve vontade de rir da raiva que enxergava em sua face, mas obrigou-se a continuar séria.
Quando ele descobriu que sua amizade com Bianca tinha evoluído para um romance, a ameaçou para que a deixasse. Quando recusou e diante da negativa de Bianca de também deixá-la, ele se vingou tirando a única coisa que amava além de Bianca e seu pai:sua farda.
Os anos dedicados à polícia e a carreira sólida que construiu foram atirados ao esquecimento. Mas, nem assim, ela deixou Bianca. Não deixou porque a amava e, também, porque seu orgulho não permitiria.
Eventualmente, seu relacionamento se desgastou e o namoro evoluiu para uma amizade mais forte e terna do que a que tinham antes de se apaixonarem. Elas ainda se sentiam fortemente atraídas e, às vezes, era impossível conter as faíscas em seus olhares quando conversas nostálgicas surgiam após algumas cervejas. Também houveram muitas derrapadas ao longo dos anos, noites de sexo longas e selvagens. E nem mesmo o noivado com Artur impediu que uma noite dessas acontecesse.
Mas, o fato era que, embora ainda houvesse paixão entre elas, havia muito mais amizade e decidiram se dedicar somente a ela. Pelo menos, esse era o acordo.
— Por que estou aqui?
Ricardo emborcou o conteúdo do copo que descansava sobre a mesa havia algum tempo. Não era um homem que apreciava beber com frequência; pelo contrário, gostava de manter sua mente sempre clara. Contudo, após as notícias que recebera, sentia que precisava de algo forte para acalmar a fera que se digladiava em seu interior, apenas por ter se permitido procurar aquela mulher e deixado que ela voltasse a pôr os pés em sua casa.
Sentindo a ardência da passagem da bebida em sua garganta, ele afrouxou o nó da gravata e se recostou na cadeira de espaldar alto com olhos fitos na cadeira à frente, relembrando uma discussão que tivera com Bianca, quatro anos antes, naquela mesma sala.
Na ocasião, a filha exigiu, após um episódio bastante constrangedor, que ele retirasse os seguranças que faziam sua proteção desde a adolescência.
— De jeito nenhum!
— Eu não os quero mais! — Bianca respondeu no mesmo tom.
— E o que pretende fazer? Correr para aquela mulherzinha quando estiver com problemas?
Ela se ergueu da cadeira que ocupava e espalmou as mãos na mesa com um olhar pétreo.
— Silvia vale muito mais que os cabeças ocas engravatados que o senhor mantém na minha cola. Sabe disso — arqueou uma sobrancelha, um sorrisinho malicioso se formando nos lábios.
— Não sei do que está falando.
Ela voltou a sentar-se.
— Tudo bem, continuemos a fingir que…
— Chega!
O sorriso dela se ampliou com uma nota de desprezo e provocação e deu de ombros.
— Tire-os, papai! Tire-os! — Se endireitou e abotoou o casaco do terninho que usava. — E, já que tocou no assunto, não preciso de um contrato para saber que Silvia viria ao meu socorro sem pestanejar, caso fosse necessário. Não finja que não sabe disso, afinal, crescemos juntas nesta casa.
— Infelizmente — grunhiu.
Divertida, Bianca continuou:
— Se um dia, por qualquer que seja o motivo, eu não possa ser encontrada, procure por ela.
— Eu morreria antes…
Ela ergueu a mão e voltou a ficar de pé.
— Não há ninguém, — curvou-se sobre a mesa outra vez, deixando que ele visse a certeza absoluta em sua face — absolutamente ninguém neste mundo, em quem confiaria minha vida além dela. Você pode odiá-la pelo que ela representa para mim, pelo que um dia fomos uma para a outra; mas, posso afirmar, sem medo de errar, que Silvia daria a vida pela minha sem titubear e eu faria o mesmo por ela.
Afastou-se novamente e recolheu a bolsa que tinha jogado na cadeira ao lado quando entrou no escritório.
— Não estou brincando, papai. Se um dia me levarem “novamente”, Sílvia me encontrará.
— Como?
— Pergunte a ela você mesmo — riu, se dirigindo para a porta. — Estou falando sério, Juiz, tire os seguranças.
Ele tirou; e por quatro anos nada aconteceu. Aquela conversa era o motivo de ter ordenado a Armando que chamassea filha. Aquele era o momento de descobrir se a crença de Bianca nas habilidades e sentimentos daquela mulher era justificada.
— Certa vez, nesta mesma sala, minha filha disse que se algo lhe acontecesse era a você quem deveria chamar.
Silvia se adiantou, perdendo a postura altiva.
— Onde ela está?
Ricardo não respondeu, em vez disso, perguntou:
— Bianca estava certa quando me disse que você a encontraria em qualquer lugar? Que moveria céus e terras para chegar até ela?
Os olhos azuis de Silvia exibiram uma frieza quase marmórea ao contrário do calor em suas palavras.
— Moveria céus, terras e explodiria o inferno também. Agora, o que aconteceu?
O Juiz contraiu os lábios em desagrado.
— Houve um assalto a banco e minha filha foi levada como refém.
— Como assim refém? — Puxou a cadeira diante dele e sentou-se na beirada, apoiando as mãos com os punhos cerrados na mesa.
Ricardo ergueu o olhar para Armando que estava, silenciosamente, recostado na porta com ar distraído, mas atento a conversa dos dois.
— Traga Artur — pediu.
Ele obedeceu e retornou um minuto depois com o rapaz que, ao se ver na presença de Silvia, sofreu uma transformação. Sua expressão passou de cansada e triste para puro desdém.
Bianca nunca lhe escondeu a natureza de seu relacionamento com ela e deixou claro, em muitas ocasiões, que de certo modo, a moça era sua alma gêmea.As duas sempre fizeram questão de afirmar que o que existia entre elas era amizade, no entanto, ele não conseguia evitar os ciúmes. Sempre que saíam juntas, não conseguia se poupar de imaginá-las na cama, traindo-o e Bianca gostava de lhe provocar dizendo para não exagerar nos ciúmes, pois isso poderia acabar lhe empurrando de volta para Silvia.
Quanto a Silvia, nunca escondeu que o achava irritante e idiota com seu jeito de homem certinho. Se perguntou, muitas vezes, o que a amiga tinha visto naquele almofadinha, mas nunca expressou sua curiosidade em palavras, embora tivesse liberdade para tal.De fato, havia bem pouca coisa que não sabiam uma da outra.
— Sente-se, Artur — o sogro lhe indicou a cadeira ao lado de Silvia.— Conte o que aconteceu para Silvia.
Arturse encolheu, abalado pela nota de desprezo na voz do sogro. Sentia-se um completo idiota e um zero à esquerda sempre que ele lhe dirigia a palavra. Com um suspiro e os ombros caídos, iniciou a narrativa dos acontecimentos e, quando acabou, um silêncio quase ensurdecedor dominou a sala.
Ele deslizou o olhar de um para outro, sentindo-se extremamente cansado. O sogro não escondia a raiva que sentia e, mesmo que tentasse, seu rosto o trairia. Já Silvia, era por natureza uma mulher calada e, às vezes, de uma frieza intensa que lhe causava incômodo, como naquele momento.
A mirou longamente à espera de algum comentário, então a viu se erguer em um rompante.
Suas mãos envolveram a gola da camisa dele e o pôs de pé. Nos dois anos em que esteve ao lado de Bianca, ele nunca vira Silvia perder a calma. Chegou a duvidar que algo fosse capaz de abalar sua frieza. Naquele momento, porém, seu olhar era puro fogo e, antes que pudesse compreender o que tinha se passado, estava sentado outra vez na cadeira, sentindo a face em brasas graças ao soco que ela lhe deu.
— Como pôde deixa-la para trás? — Ela gritou, assumindo uma face que ele jamais imaginou ver.
Humilhado, esfregou o rosto no local em que ela lhe bateu e abriu a boca para responder, mas Silvia o arrastou da cadeira sem se importar que ele fosse quase vinte centímetros mais alto, nem que possuísse músculos firmes e evidentes.
Naquele momento, ele era nada menos que um verme.
— Saia! Saia ou o ponho para fora como se escorraçasse um cão!
Abismado, Artur mirou o sogro à espera de algum apoio, mas só encontrou uma máscara de desprezo.
— Não pode me expulsar; Bianca é minha noiva!
— Uma noiva que você abandonou à mercê de bandidos!
— E o que queria que eu fizesse?! Eles estavam armados e quando… — engoliu as palavras, sentindo a aproximação do choro e forçou-se a continuar sem derramá-lo. — Aposto que você faria o mesmo em meu lugar.
— Não faça uma aposta que não pode ganhar. Eu mataria ou morreria antes de deixa-la.
Havia tanta determinação nos olhos dela, que teve certeza de que dizia a verdade, então deixou seus ombros caírem, vencido.Armando se adiantou e envolveu seu braço, quase delicadamente.
— Venha, rapaz — e Artur o seguiu, deixando a primeira de muitas lágrimas caírem.
Quando à porta se fechou às suas costas, Silvia se voltou para Ricardo.
— Eu vou busca-la — avisou.
— Você não sabe onde ela está.
Os cantos dos lábios dela se ergueram.
— Não tenha tanta certeza.
Ele a analisou por um minuto, então assentiu e disse:
— Vai precisar de uma equipe.
— Já tenho a minha equipe.
O juiz cofiou a barba, pensativo.
— Sabe de que equipe estou falando. Não permitirei que vá atrás da minha filha com aqueles soldadinhos de chumbo com os quais trabalha. Levará os meus homens.
Silvia sorriu, apenas uma leve contração dos lábios rosados.
— Está bem, mas eu estou no comando.
Ricardo se remexeu na cadeira, contrariado.
— Nunca!
Ela cruzou os braços que ocultaram o logotipo bordado no peito de sua camiseta. Era a marca da empresa de segurança e vigilância da qual era sócia. A arma em sua cintura brilhou quando a luz que estrava pela janela a tocou e seu rosto se transfigurou, tornando-se sombrio e quase cruel.
— Ouça bem, velho. Não dou a mínima para todo esse desprezo que sente por mim. Houve um tempo em que acreditamos nas mesmas coisas e fizemos parte de algo maior que nós mesmos. Esse tempo chegou ao fim, mas aqueles homens já estiveram sob o meu comando, lembre-os disso ou irei com a minha própria equipe.
***
Bianca estava, literalmente, comendo poeira. O calor no porta-malas era quase insuportável. A poeira que se infiltrava pelas frestas a estava sufocando e a sede era cruel. Um solavanco a jogou para o lado e gemeu alto ao bater a cabeça no piso do veículo.
Apesar de não poder ver o mostrador do relógio em seu pulso, tinha certeza de que fazia mais de duas horas que estavam viajando e, pela poeira e solavancos, seguiam por uma estrada de terra, o que tornava mais difícil para a polícia rastreá-los.
Mas, estava certa, não demoraria muito para que isso acontecesse e, quando chegasse a hora, haveria um banho de sangue.Aquele grupo não tinha ideia de com quem tinha mexido. Ser complacente nunca foi uma das qualidades do seu pai, muito menos de Silvia.
Drica parou o carro. Pisou no freio com força, deixando marcas profundas na estrada, erguendo ainda mais poeira. Ouviu reclamações de Rodrigo e Rebeca que ainda sentiam os efeitos das pancadas que sofreram, e esfregavam seus machucados furiosamente, em busca de alívio para a dor.
Ela saltou do carro e esticou os músculos, verificando a ausência de convidados indesejados nas redondezas. Satisfeita, enfiou a cabeça na janela, fitando os amigos com expressão cansada.
— Preparem-se. Vamos partir quando o sol se pôr.
Ainda esfregando a testa, Rodrigo foi até o porta-malas e o abriu devagar. Ajudou Bianca a sair dele e a recostou no veículo. Desconfiado, a mirou longamente e sorriu, passando a mão no queixo.
— Posso te dar um pouco de água ou pretende me agredir de novo?
Ela deu de ombros, tossindo parte da poeira que engolira durante a viagem e exibiu as mãos atadas.
— Você também estava atada naquele momento — riu e se curvou para pegar uma garrafa de água que tinha acabado de colocar em um dos bolsos de sua calça cargo.
Ainda sorria quando se endireitou e foi surpreendido por um chute na virilha. Tombou para frente, encolhendo-se no chão arenoso. Bianca saltou sobre ele e correu, em disparada, pela estrada esburacada e ladeada por árvores de troncos grossos e muito mato.
— Mas, que inferno! — Drica gritou, e correu também, saltando sobre o rapaz que se contorcia de dor.
Em desespero, Bianca ignorava a dor das pedras e espinhos em seus pés descalços. Por cima do ombro, vislumbrou o vermelho dos cabelos de Adriana, que balançavam furiosamente contra o vento, enquantoela se aproximava cada vez mais. Aumentou a velocidade de suas passadas e, sem pensar muito, adentrou na mata fechada, desviando de galhos e cipós.
Quanto mais corria, mais obstáculos surgiam.
Saltou pedras, escorregou, teve as roupas rasgadas por espinhos, mas não parou, embora seu corpo lhe implorasse por isso. Saltou uma moita e viu-se diante de um barranco,ao fim dele havia uma fenda de quase 30 metros de comprimento. Algumas pedras pontudas a circundavam e a noite que se aproximava a fazia parecer assustadora.
Não tinha para onde ir.
Ouviu passos e galhos a se partirem e, quando se voltou para a floresta, viu Adriana se aproximar. O barranco cedeu sob o peso delas e foram arrastadas por quilos de areia e pedras. Bianca rolou até a beirada e não conseguiu evitar a queda.
Em um último esforço, conseguiu se segurar na borda. Um pedregulho rolou sobre sua cabeça e notou o quanto demorou para que atingisse o fundo com um baque surdo. Segundos depois, uma centena de morcegos irrompeu, vindos da escuridão da caverna. Alguns a atingiram e abafou um grito. Seus pés estavam suspensos no vazio e não tinham em que se apoiar.
Mãos envolveram seus punhos e ergueu o rosto para encontrar Drica.
— Céus! Você é maluca! — Disse ela, ofegante.
Bianca gemeu alto, certa de que havia encontrado o fim.
— Solte a pedra — disse a bandida, mas ela não se moveu.
Aquela era a oportunidade perfeita para mata-la. Seu corpo jazeria no fundo daquele buraco escuro sem nunca ser encontrado.
Adriana se curvou mais na beirada.
— Ouça, estou tentando te tirar viva dessa enrascada. Você pode me deixar te ajudar ou continuar pendurada aí até suas forças se esvaírem. O que, pelo suor em sua testa e o modo como está tremendo, não vai durar muito — seus lábios tremeram levemente e colocou mais força nas mãos que a seguravam, as unhas penetrando a carne dela.
Bianca engoliu em seco, sentindo o gosto do medo e da areia em sua boca. Os olhos da bandida não tinham mais aquele brilho frio e inflexível de horas antes, pelo contrário, pareciam assustados.
Fechou os olhos e fez sua escolha soltando a pedra, uma oração presa em seus lábios.
Esperou sentir o friozinho, característico da altura, no estômago, mas, em vez disso, sentiu-se ser balançada no ar e quando voltou a abrir os olhos, estava jogada sobre o corpo de Adriana e em terra firme. Sentia seu coração bater tão forte quanto o dela e, embora desejasse muito sair dali, não conseguia se mover.
Seu corpo tremia, ainda assustado com a morte que se aproximou demais e se permitiu ficar naquela posição por alguns minutos. Mirava o rosto bonito sujo de poeira e suor dela, recordando o motivo de lhe ter sorrido com tanto interesse naquela manhã. Havia algo em seu olhar, uma determinação, uma paixão, acentuadas pela beleza exótica. Com certeza, uma mulher de aspecto interessante que teria gostado de conhecer em outro momento e longe de um crime.
Cansada e ainda assustada pelo que acabara de ocorrer, Adriana relaxou sob o peso do corpo de Bianca, agradecendo aos céus por terem escapado da morte. Fitava os olhos negros dela, sentindo uma vontade quase gritante de rir. Tinha certeza de que aquela mulher ainda lhe daria muito trabalho.
Sua respiração se normalizou e fez questão de empurrá-la para o lado, mas Bianca lhe sorriu e a beijou.