Entro sem falar nada. Finjo estar concentrada no celular. Chegamos ao térreo. E ela me faz um convite.
– Almoça comigo Mariana. – Reduzo o passo, respondo sem me virar.
– Obrigada, mas já tenho companhia.
Saio, mais uma vez sem olhar para trás.
Quando chego lá fora, Carlinha já está me esperando.
– Oi irmã! – Me dá um beijo no rosto. – Que cara é essa Mari?
– Ai Carla, problemas no trabalho. Melhor nem comentar, porque depois do almoço tem tudo pra piorar!
Vamos almoçar no meu restaurante árabe preferido, sinto que vem um pedido de empréstimo pela frente.
Não deu outra, Carla quer fazer um intercâmbio de seis meses com os amigos da faculdade. E quer ajuda financeira.
Carlinha é doze anos mais nova que eu. Sempre fiz tudo que podia para ajudar, inclusive financeiramente. Ela é dedicada aos estudos. Nunca nos deu trabalho. Não que ela seja uma santa. Mas nunca foi nenhuma peste. Já que estava virando sócia do escritório ia poder ajudá-la. Ela me conta todos os detalhes e ficamos de falar com mamãe à noite.
Terminamos o almoço e volto para o escritório.
Entro em minha sala e Luana está lá.
– Poxa, nem pra me chamar pra almoçar hein.
– Ah Lua, desculpa. A Carlinha me mandou mensagem chamando pra almoçar, pois precisava falar comigo. Depois daquela reunião fiquei meio baratinada.
– Com a reunião ou com a Fernanda?
A Luana me conhece como ninguém. Sabe que tem alguma coisa com relação à Fernanda. Eu preciso contar essa história toda para ela. Mas agora não é o momento.
– Depois a gente conversa sobre isso ok. Já, já, vão nos chamar para falar sobre o tal problema da Fernanda.
– E o que a gente tem a ver com isso?
– O problema é que ela quer que você aceite o caso dela. Pedir a guarda das filhas dela.
– Não mesmo! – Levanta e fica andando pela sala.
– Lua, se ela vai ser nossa sócia e é amiga pessoal do Ricardo, não tem porquê você não aceitar o caso dela.
– Tem vários advogados aqui no escritório. Não tem por que ser eu a aceitar esse caso.
– Tem sim, porque você é a melhor nessa área.
Alguém bate na porta da minha sala.
– Pode entrar.
Era a Marta, secretaria do escritório avisando que eles já estavam nos aguardando.
– Mariana, o doutor Ricardo está aguardando vocês na sala dele.
– Ok, obrigada Marta.
– Já que não tem jeito, vamos logo. – Luana levanta e vamos em direção a sala do Ric. – Mas ainda não terminamos a nossa conversa não viu.
– Ai Lua! Já falei que mais tarde tá.
– Vou cobrar, pode esperar.
Bato na porta. E ouço a voz da Fernanda.
– Entrem e se acomodem, por favor.
Sentamos em frente a sua mesa. Ricardo que já estava acomodado começa a falar.
– Meninas, vocês estão aqui porque são as melhores da nossa equipe. Luana, você é a melhor em direito de família que nós temos. E o caso da Fernanda não é simples. – Se volta para Fernanda e pede que ela explique.
– Então, eu fui casada durante 8 anos com a Manuela. Quando nos conhecemos ela tinha acabado de ficar viúva, Clara e Geovana tinham um ano. Quando resolvemos nos assumir e morar juntas. As nossas famílias não aceitaram muito bem, porém a família do Carlos odiou a ideia da Manu estar com uma mulher e principalmente que essa mulher fosse conviver com as crianças. Ameaçaram entrar na justiça pedindo a guarda das meninas, mas uma das irmãs do Carlos foi contra e não permitiu que dessem entrada no processo. Há dois anos nos separamos. Mas continuei participando da vida das meninas normalmente. Acontece que a Manuela morreu há seis meses, vítima de um acidente de carro. E a tia das meninas, que nos ajudava, foi morar em Nova York. E a guerra começou novamente. Eles querem me tirar minhas filhas. Eu não as adotei, entretanto todo mundo sempre soube que a Manuela queria que as crianças ficassem comigo caso acontecesse alguma coisa com ela. – Faz uma cara de culpa. – Eu sei, casa de ferreiro o espeto é de pau. Mas a gente nunca espera que algo assim aconteça com a gente. Eu sei que as meninas podem expor sua vontade ao juiz. Mas eu não quero correr nenhum risco. Por isso aceitei vir para o Rio trabalhar aqui no escritório. Conseguiria manter uma distância razoável da família do pai delas. Estaria perto de você que é a melhor na área Luana. E estaria perto da minha namorada.
Nesse instante ela me encarou e desviou o olhar. E eu percebi que estar perto da Fernanda me deixa fora do ar. Sim eu prestei atenção em tudo que ela falou. Uma droga a família querer separá-las. Mas a parte da namorada me matou mais um pouquinho.
Me dei conta que estavam todos em silêncio esperando a Luana falar alguma coisa.
– Eu vou pegar essa causa e vai ser descontada do seu salário, porque vou querer receber cada centavo. Você não é minha amiga Fernanda, aliás, eu não te conheço. Mas acredito que uma família deve permanecer unida, independente de como os laços são formados, se elas se sentem suas filhas e querem ficar com você, eu farei todo possível para que isso aconteça. – Faz uma pausa. – Quero todas as informações, fotos, documentos, tudo que ligue a relação estável de vocês. E já adianto que vou querer conversar com essa Laura. Quando você tiver tudo em mãos me procura. Ah e quero falar com as meninas também. – Olha para o relógio. – Agora preciso ir porque tenho uma audiência.
– Obrigada por aceitar o caso Luana. Não imagina o alívio que sinto ao saber que você estará à frente do processo.
– Agradeça quando tudo isso terminar.
– Mariana, depois eu gostaria de falar com você. – Escuto Fernanda falar comigo.
– Ok, assim que tiver um tempo volto aqui.
No final do expediente resolvo ir logo saber o que tanto a Fernanda quer falar comigo. A secretária libera minha entrada.
– Ela deixou sua entrada liberada Mariana.
– Obrigada Tina.
Bato na porta e entro direto.
– Estou aqui Fernanda. O que você precisa falar comigo?
– Eu só queria que a gente a gente não ficasse num clima ruim Mariana. Eu gosto de você. A gente se divertia, tínhamos uma boa amizade. Sinto muito que não possa corresponder os seus sentimentos.
Corto a fala dela.
– Fernanda, a gente não tem mais nada para falar a respeito desse assunto. Para mim ele foi encerrado no dia que me declarei e você disse que não sentia o mesmo. Não vejo porque estamos falando novamente sobre isso.
– Eu percebo que você está estranha comigo.
– E você queria o que Fernanda? Infelizmente não vim com um botão que liga e desliga meus sentimentos. Certamente vai demorar um tempo, mas eu vou conseguir esquecer isso. Não precisa se preocupar comigo ok.
O tempo vai passando. Sete meses depois, Luana consegue ganhar o caso da guarda das meninas. O namoro da Fernanda fica a cada dia mais sério. E eu cada dia mais triste e deprimida. E para melhorar ouvi uma conversa entre Fernanda e Ricardo, que fez com que eu me decidisse largar tudo e me livrar desse sentimento, que só estava me fazendo mal.
Carlinha volta dos seis meses de intercâmbio. Fala super bem da aventura que foi passar esse tempo fora. Acabo me empolgando e começo a pesquisar sobre mestrados na Inglaterra e encontro um que me chama a atenção em Londres, com ênfase na área de gestão e direito. Me inscrevi e fui aceita, mas ainda não tinha certeza se iria ou não. Minha família e Luana não queriam que eu fosse. Mas eu precisava me afastar.
Até que recebo o incentivo que precisava para confirmar minha ida para a Europa.
Uma tarde de sexta-feira no final do expediente, fui até a sala do Ricardo levar a cópia de um documento que ele havia me pedido. A secretária dele não estava. A porta estava entreaberta, quando fui bater escutei ele conversando com Fernanda.
– Então todo esse estranhamento entre você e a Lua é porque a Mariana é apaixonada por você? Como eu não percebi isso? Por isso a Mari é tão distante de você. Ela nunca participa de nada que você esteja. Se a sua namora estiver então.
– Ric você está me saindo um belo fofoqueiro viu.
Quando vou entrar, escuto uma pergunta que me faz dar um passo atrás.
– Mas se vocês se davam tão bem, por que você não deu uma chance a Mari?
– Eu acho a Mariana um encanto de pessoa, divertida, gentil, inteligente, mas não é o tipo de mulher que me atrai. Não conseguiria ter um relacionamento com ela. Ser lésbica já é complicado, imagina estando com uma pessoa que não usa uma saia, vestido, maquiagem. É complicado. Minha família já não engolia a Manuela que era totalmente feminina. Imagina alguém como a Mariana. Fora que estava conhecendo a Scheila, que tem tudo a ver comigo.
Meus olhos se enchem de lágrimas, que luto para conter.
A ficha finalmente caiu! Sirvo para ser a amiga distante, a mulher não. Fora que sou gordinha. E a Scheila a namoradinha é praticamente uma modelo, magra e linda.
Preciso sair daqui. Acho que nunca mais vou conseguir olhar pra ela. Percebo que estou chorando. Viro as costas pra sair. Dou de cara com a Marta.
– Mariana, o que aconteceu? Você está passando mal?
– Não Marta, tá tudo bem. Só recebi uma notícia ruim, vou ter que ir embora. – Vou saindo. Volto. – Entrega esses documentos pro Ricardo, por favor!
Nem me dou conta que a Marta certamente ia falar que me encontrou do lado de fora da sala chorando e eles provavelmente perceberiam que eu ouvi a conversa. Saí do escritório para não voltar mais, até hoje.