MARCELA
Sabe aquela sensação de vazio que às vezes vem do nada e toma conta da gente? Pois é, esse vazio tomou conta de mim assim que saí do apartamento da Joana.
Apesar de estar muito envergonhada por tudo que havia acontecido e que eu provoquei, me senti muito bem conversando com ela. E, devo confessar, comecei a analisar seriamente essa história de duas mulheres se beijarem e fazerem outras coisas também. Tipo, o beijo dela foi o beijo mais gostoso e maravilhoso que já provei e olha que já beijei muita gente por aí. Mas, nenhum se comparou àquele beijo.
Gente, se o beijo era assim imaginem…
— Ops! Marcela, sua doida, é melhor parar por aí. Nem estou te reconhecendo! Mas, pensando bem, aquela loirinha da festa parecia estar nas nuvens com a Joana fazendo… Oh, Marcela, se toca, né? Você é hétero, mulher! Melhore! Aff!
Fiquei me repetindo essas palavras o caminho todo. Me sentia meio lunática falando sozinha, mas não conseguia evitar que essa mistura de pensamentos e lembranças me visitasse a todo instante.
Me dirigi para a casa da Ana, afinal, os pais dela já deviam estar preocupados com o meu sumiço. E estavam mesmo. A mãe dela correu para me abraçar assim que me viu e foi logo perguntando onde havia e o que havia acontecido comigo para estar toda arranhada e tal.
— Ah, eu caí — menti, embora soubesse que dali algumas horas ela iria saber de todos os fatos.
Cidade pequena é foda!
— Caiu? Como assim caiu?
Ela era adorável, mas tinha o grande defeito de nunca se contentar com uma resposta curta, queria sempre saber como tudo aconteceu.
— Depois conto, Dona Marta.
— Tudo bem, filha — me sorriu, dando o assunto por encerrado para o meu alívio. — Você deve estar faminta, venha almoçar, venha.
— Na verdade, acabei de tomar café da manhã.
— Tudo bem. Então vá guardar suas coisas no quarto da Ana e descanse um pouco.
— Obrigada, tia, — sempre a tratei assim — mas não vou ficar. Mais cedo ou mais tarde tenho que enfrentar meus pais. E bem, acho que está na hora de fazer isso. Não posso ficar fugindo o resto da vida.
— Você tem certeza disso?
— Sim, tenho.
— A Ana nos contou o que realmente aconteceu.
Deu um passou atrás para me olhar melhor, enquanto se servia de um copo de suco. A mesa já estava posta para o almoço.
— Adoro a Joana. Acho-a uma moça maravilhosa e não consigo entender o porquê dos pais dela não conseguirem enxergar isso. A orientação sexual dela não influencia em nada no ser maravilhoso que ela é.
Aninha, que estava recostada à porta e até aquele momento tinha se mantido calada, entrou na conversa.
— Infelizmente, mamãe, nem todo mundo tem pais lindos, maravilhosamente gentis e compreensíveis como eu. Mas, a Jô é forte e vai superar tudo isso.
Diante daquelas pessoas que conseguiam enxergar a beleza e encanto de outros superando seus preconceitos, entre outras coisas, senti-me um ser mesquinho que não era capaz de aceitar a diferença, que tinha ”medo” das diferenças. Mas, nos últimos dias minhas ideias estavam mudando. Joana as estava mudando.
Estava me tornando uma pessoa melhor?
Sim, embora não quisesse admitir no momento, ou melhor, não quisesse enxergar isso, a minha pouca convivência com Joana estava modificando o modo como via as pessoas e encarava a vida, principalmente depois da besteira que havia feito na noite passada.
— Bem, passei aqui apenas para avisá-los que estou indo para casa encarar as feras. Me desejem sorte!
— Eu vou com você, Celinha — Ana se adiantou em direção a porta.
— Filha, — tio Reginaldo me abraçou — sabemos que o que aconteceu ontem à noite foi motivado pela bebida e raiva dos teus pais, mas quero que saiba que se essa fosse mesmo a sua orientação, você continuaria sendo sempre bem-vinda e muito amada nesta casa.
Aquilo me pegou de surpresa. Mas fiquei feliz em saber que sempre teria o apoio daquela família maravilhosa que, essa sim, era a minha família. Pois, aqueles que se diziam meus pais nunca se importaram comigo, apenas queriam uma bonequinha para exibir para os amigos.
Assim que pusemos os pés na rua, Aninha se voltou para mim com cara de poucos amigos.
— Desembucha, que foi que te aconteceu?
— Não aconteceu nada, vamos logo! — tentei avançar rumo a direção em que ficava minha casa, mas ela me puxou pelo braço.
— Supercílio e lábios cortados, não são resultados de quedas — pontuou e olhou para minhas mãos. — E isso não são cortes de quem caiu a não ser que tenha caído dando um soco no chão.
Revirei os olhos.
— Está bem. Venha, te conto no caminho.
Contei a ela sobre a briga no colégio, é claro que omiti o real motivo de ter agredido aquela menina estúpida, principalmente, porque ele ainda me parecia confuso. Contei, também, que Joana me tirou da briga, cuidou de mim e que depois conversamos sobre o que havia acontecido na noite anterior e pedi desculpas pelo que tinha feito.
Ela ouviu tudo calada, mas assentiu satisfeita quando disse que já estava tudo bem entre nós.
— Droga, Ana, tenho de admitir, essa garota é mesmo legal!
Ela me dirigiu um sorriso maroto.
— Só tenho amizades legais, Celinha.
Sorri entristecida para ela.
— Acho que não tão legais assim. Ando fazendo muita besteira ultimamente.
Ela me abraçou carinhosamente.
— Besteira é o seu segundo nome, esqueceu? — riu me dando um beliscão no braço.
— Ai! Por que fez isso?
— Só para ter certeza de que te ouvi dizer isso mesmo e de que não estou sonhando.
— E por que eu é que sofri o beliscão? — perguntei indignada.
— Porque você mereceu depois de tudo que aprontou e, também, porque não iria macular essa minha pele de pêssego — riu gostosamente, dando um passo para o lado a fim de evitar que retribuísse o “carinho”.
Finalmente, chegamos a minha casa. Respirei fundo, sabia que não ia ser nada fácil conversar com meus pais. Principalmente, porque eles, com certeza, ainda estavam furiosos.
Querem mesmo saber? Fiz aquilo para irritá-los e consegui.
Não me arrependo de maneira alguma de ter feito isso. Quero dizer, em relação a ter usado a Joana me arrependi sim, mas por tê-los deixado magoados e furiosos, não. Afinal, faziam isso comigo o tempo todo sem se importar com o que sentia ou achava.
Quando entramos em casa, vi meus pais sentados na sala com aquele mauricinho ridículo do lado. Quis voar no pescoço daquele palhaço só pela maneira desagradável como ele olhou para o meu decote. Ainda estava furiosa pelo modo que me perseguiu a noite toda e tentou me beijar.
Meu pai tentava aparentar uma calma que não sentia.
— Sente—se, Marcela — ordenou.
Obedeci e Ana permaneceu de pé, recostada no sofá em que me encontrava.
— Pai…
— Você fica calada! Marcela, não vamos mais aguentar os seus caprichos. Não quero saber o que há entre você e aquela… aquelazinha.
— Joana. O nome dela é Joana — informei.
— Já mandei você calar a boca! Não me interessa o nome dela. Você nunca mais vai se aproximar dela, entendeu? Ela não existe, nunca existiu! A noite passada não existiu! E é por isso que no próximo fim de semana vou anunciar seu casamento com o Carlos — apontou para o manézinho.
Meu queixo, literalmente, caiu. Em que século ele pensava que vivíamos?
— Não pode estar falando sério! — Ana se intrometeu na conversa.
Ele a fuzilou com o olhar.
— Estou falando muito sério e você não tem que se meter nesta conversa. Pensa que não sei que faz o papel de leva e traz entre minha filha e aquela… aquela…
— Joana! — falei outra vez.
Ana se adiantou, saindo de detrás do sofá.
— Nunca fiz papel de qualquer coisa e não interessa o que pensa. Se Joana e Marcela são ou não um casal, também não é da sua conta.
— Ora, sua fedelha!
Me coloquei de pé, entre os dois. Ana estava tomando minhas dores e, eu bem sabia, que apesar de toda a doçura dela, também era uma fera. E o meu pai corria o sério risco de ter uma baixinha ruiva esganando seu pescoço.
— Chega, vocês dois! — Ana recuou um passo e eu avancei outro. — Você está louco? Não vou casar com ninguém, principalmente, se o noivo for esse idiota!
— Enquanto você viver sob meu teto fará o que eu mandar! Aldo está disposto a passar por cima do triste episódio de ontem e ignorar seu deslize. Conversamos muito a respeito, vocês casam em um mês e ponto!
— Você é louco? — Ana voltou a se intrometer.
— Mas, não caso mesmo! Estamos no século vinte e um e não em mil e quinhentos. Não caso e não caso!
Ele ficou vermelho de raiva. Nunca o tinha visto assim. Pensei que iria explodir de tanta ira, mas a essa altura eu também já estava possuída pela raiva.
— Ouça bem, Marcela, filha minha não vai ser uma… sap… uma amante de mulheres! Não vai andar por aí se esfregando em outra mulher de jeito nenhum! O que as pessoas irão dizer?
— Que as pessoas se explodam! — gritei.
Ele se aproximou de mim ameaçadoramente.
— Eu fico com quem bem entender! Você não manda em mim! — a raiva me impulsionava, tornando cada palavra que pronunciava mais fortes e venenosas do que eram. — Vou ficar com a Joana e quem mais quiser. Homem ou mulher, não interessa! Deu bola, é gol!
Nunca tinha sentido o peso da mão de meu pai, mas ele não se conteve diante de tudo que dizia e me estapeou. Fiquei surpresa e paralisada nesse momento e ele se aproveitou disso para me arrastar pelos cabelos até meu quarto.
— Me solta! — gritei, enquanto Ana se pendurava no braço dele tentando me libertar.
Ele era muito forte e a empurrou com força fazendo com que caísse. Consegui me libertar de sua pegada, mas ele me acertou outro tapa e, enquanto sentia o sabor do meu próprio sangue, ele voltou a me estapear. Fui empurrada para dentro do quarto e jogada no chão como um saco de batatas.
— Você tem duas escolhas, Marcela. Você se casa e esquece esta história de ficar com mulheres ou vai embora desta casa e esquece que é minha filha! Pense nisso! Pois, só vai sair desse quarto quando decidir.
Trancou a porta atrás de si.
— Me tira daqui, pai! Eu não vou casar com ninguém! Me tire daqui!
Ouvi a discussão entre ele e Ana se tornar cada vez mais acalorada. Não precisava ver para ter certeza de que ele a tinha arrastado para fora de casa. Esmurrei e chutei a porta até que cansei.
Deslizei lentamente até o chão, chorei e chorei até que minhas lágrimas secaram e adormeci. Quando dei por mim, a porta estava sendo aberta e, para minha surpresa, a Joana entrou acompanhada da Aninha.
JOANA
À medida que a Aninha contava o que tinha acontecido na casa da Marcela fui sentindo meu sangue ferver. De onde os pais dela tiraram aquela ideia de casamento? E trancar a menina no quarto como se ela tivesse cometido um crime? Que loucura!
— Meu pai tentou conversar com o pai dela, mas não teve jeito. Ele bateu a porta na nossa cara e…
Nem esperei que ela terminasse de contar tudo direito, me coloquei de pé e caminhei decidida para a porta a qual escancarei perguntando:
— Você vem ou vai ficar aí?
— Ir para onde?
— Até a casa da Marcela, onde mais?
Ela me olhou surpresa por um longo instante.
— Sério?
— Seríssimo — me recostei a porta por um breve instante, enquanto sustentava seu olhar. — Olha, está certo que ela é a garotinha impulsiva, doida e preconceituosa mais irritante que já conheci na vida, mas nem por isso vou permitir que seja tratada assim pelos pais só porque cometeu a loucura de me beijar.
Ana se colocou de pé, não havia mais nenhum vestígio de lágrimas em seus olhos.
— Joana, espera um minuto. É impressão minha ou você está gostando da Marcela?
A pergunta me pegou de surpresa e acho que fiz cara de idiota por alguns segundos, mas me recuperei no instante seguinte.
— Desde a sexta série — revelei e saí deixando-a sozinha e com cara de boba, enquanto absorvia as minhas palavras.
Já estava quase chegando à esquina quando ela me alcançou.
— Jô, espera. Isso é sério? — perguntou um pouco sem fôlego.
Sem parar para olhá-la, respondi:
— Pareço estar brincando?
Ela segurou meu braço, interrompendo meu avanço.
— Se é assim, por que nunca me contou?
— Não achei que fosse necessário, afinal, ela nunca me deu bola. Nunca me notou. Não tinha razão para comentar que sou apaixonada pela sua melhor amiga desde que tinha doze anos.
Seu olhar se fixou em mim por longos segundos, cheio de gravidade.
— Jô, você não está confundindo as coisas, não? — perguntou por fim.
— Como assim?
— Me refiro a você estar se iludindo em relação a Marcela por causa daquele beijo.
Deixei um suspiro irritado escapar. Como fazê-la entender?
— Ana, se tem uma coisa da qual tenho certeza em minha vida, além de que todos um dia iremos morrer, é que a Marcela nunca vai gostar de mim como mulher. Agora, vamos deixar de conversa fiada e vamos logo para casa dela!
Ela não saiu do lugar.
— Se você sabe disso, então por que está indo atrás dela?
— Exatamente por isso, Ana! Eu a amo!
A fitei por um longo segundo, me dando conta de que jamais havia dito àquelas palavras em voz alta. — Mesmo que ela não sinta o mesmo, seja preconceituosa, me destrate e humilhe, este sentimento não vai mudar ou sumir. Morrerei com ela aqui dentro do peito — apontei para o meu peito e desviei o olhar do dela por um instante em que fitei as estrelas.
Nunca vi Ana de queixo caído antes, mas ela estava. Me olhava de uma maneira estranha, seu rosto tornando-se sério e sombrio.
— E o que pretende fazer quando chegar lá?
— Não sei direito, mas vou tentar conversar com os pais dela e explicar o que realmente aconteceu.
— Eles não vão te ouvir.
— Sei disso também, mas não custa tentar.
— E se sua tentativa fracassar, o que vai fazer?
— Improvisar!
O portão que dava acesso a casa estava aberto, então entrei com Aninha em meu encalço. Apertei a campainha e depois de alguns minutos tensos a porta foi aberta pela mãe de Marcela. Ela arregalou os olhos quando me viu.
— Boa noite, senhora. Vim para…
Acreditam que ela bateu a porta na minha cara? Que mal-educada!
Apertei a campainha novamente e ninguém apareceu. Insisti. Dessa vez a porta foi aberta pelo pai dela. Credo! Ele me olhou como se desejasse comer meu fígado.
— O que você quer?
— Quero…
— Minha filha não está para você! Aliás, não volte a se aproximar dela novamente!
— Mas…
— Estou lhe avisando, menina, se voltar a se aproximar de minha filha novamente farei com que se arrependa amargamente! Vou destruir a sua vida e de quem se opor a mim.
E, mais uma vez a porta foi fechada na minha cara.
— Será possível que essa gente não sabe esperar os outros falarem? Vêm logo com quatro pedras na mão! — me queixei.
— E você queria o quê? Meus pais são amigos deles há anos, mas quando meu pai veio lhes falar hoje cedo, teve a mesma recepção.
Depois dessa recepção “calorosa” meu sangue já estava evaporando de tanto que fervia em minhas veias. Me voltei para a Ana, meus dentes trincando de raiva.
— Ana, me dá a chave! — exigi.
Ela me olhou sem entender.
— A chave, Ana! — repeti.
— Que chave?
— Não se faça de desentendida. Sei muito bem que você tem a chave da porta lateral da casa. Você me disse isso um dia.
Ela deu um passo atrás.
— Tá, eu tenho uma chave. A Marcela me deu uma cópia porque estou sempre dormindo aqui e ela também tem uma lá de casa. Mas, o que você pretende fazer?
— Ora, é óbvio! Vou entrar!
— Está louca?! Não ouviu o que o pai dela disse?
— Ouvi perfeitamente e é por isso que vou entrar. Do jeito que aquele cretino falou não quero nem imaginar o que ele fez com a Marcela. Aliás, você sabe muito bem o que ele fez.
Ela deixou um suspiro indignado escapar.
— É, sei sim e ainda estou sentindo a dor do tapa que ele me deu.
Senti minha vista escurecer de raiva.
— Ele te bateu?
Ela baixou o olhar por um instante e quando voltou a me fitar havia o indício de lágrimas neles.
— Meu pai nunca levantou a mão para mim — comentou, enquanto revirava a bolsa até encontrar a chave.
Mal conseguia conter a raiva que me dominava e fazia meu corpo inteiro tremer. Demos a volta no jardim até encontrarmos a porta lateral que abriu facilmente e adentramos seguindo direto para o quarto de Marcela. A porta estava trancada, mas a chave havia sido deixada na fechadura.
Quando entramos, Marcela correu e se pendurou no pescoço da Ana.
— Ai, que bom que você veio!
E eu? Nem fui notada, para variar. Deveria aprender a ter vergonha na cara, mesmo.
— Vamos — falei, chamando a atenção das duas.
Marcela me observou por um longo segundo. Seus lábios que já estavam cortados após a briga no colégio, agora estavam inchados e com cor arroxeada e o olho direito começava a ficar com uma cor escura.
— Vamos? — perguntou confusa.
— É, isso é um resgate — informei.
Ela sorriu e que sorriso lindo.
Correu para pegar sua mochila que estava largada no chão junto a cama. Era a mesma que estava usando pela manhã. Pegou mais algumas roupas e objetos e colocou-os dentro dela. Pelo modo como fez isso e a quantidade de coisas que ali pôs, percebi que Marcela não pretendia voltar para casa tão cedo.
Quando saímos do quarto demos, para meu total desprazer, de cara com os pais dela.
— Mas, o que está acontecendo aqui? Como vocês entraram? E o que pensam que estão fazendo com a minha filha?
Marcela se adiantou.
— Pai, não vou me casar com ninguém, muito menos, com aquele idiota metido a besta!
— Cala a boca, Marcela! Você vai fazer o que eu mandar!
— Pelo contrário. Quando você me trancou nesse quarto, disse que eu tinha duas opções, então já fiz a minha escolha! Não caso com ele e ponto! E mais, você nunca mais vai pôr as mãos em mim novamente. Vou embora desta casa, vou viver como quiser e onde quiser!
— E vai fazer o quê? Vai viver com essa daí? — apontou furiosamente para mim. — Não vou permitir! Você não vai envergonhar o nome da nossa família assim.
As coisas estavam esquentando e, mais uma vez, vi em Marcela aquele olhar que indicava a raiva e frustração que sentia. Era o mesmo olhar que me dirigiu antes de me beijar na festa. Naquele instante, já sabia o que ela diria. E, como também estava com raiva dos pais dela, aproveitei para me vingar também.
Seu olhar cruzou com o meu, havia um pedido de ajuda nele. Sabia muito bem o que viria a seguir, então me aproximei dela e enlacei sua cintura. Deixei que o meu sorriso mais cínico aflorasse em meus lábios e sustentei um olhar de superioridade.
— Vou viver com a Joana, sim. E quer saber, papai? As coisas que ela me faz sentir e como faz sentir, nenhum homem já fez. E tenho certeza que aquele mauricinho nem imagina como é que se faz uma mulher feliz.
Deu-me um beijinho no pescoço. Aquele simples roçar de lábios me deixou de pernas bambas. Que efeito aquela menina causava em mim!
O olhar que o prefeito me dirigiu, deixava claro que queria devorar meu fígado e destroçar minha alma; se possível, o dela também. Avançou sobre nós, separando-nos.
Me prendeu contra uma parede e começou a me estapear e esmurrar. O homem estava possesso. Aninha tentou afastá-lo, mas ela sequer o fez desviar o olhar, então ela correu e desapareceu por outros cômodos da casa.
Marcela se livrou da mãe que tentava segura-la inutilmente, pois era mais alta e fisicamente mais forte que ela. Escanchou-se nas costas do pai, enlaçou o pescoço dele tomando um pouco do seu ar e o arrastou para longe de mim.
Deslizei para o chão buscando um pouco de ar, enquanto sentia a dor se espalhando pelo corpo.
Ele tentava livrar-se de Marcela, mas ela não o soltava de maneira nenhuma. Seria cômico se os tapas e socos que ele me deu não estivessem doendo tanto. Ana surgiu com uma jarra de água em uma mão e na outra trazia uma vassoura. Agora, sim, o circo estava armado.
Tentando me colocar de pé outra vez, me perguntei de onde ela tirou aquilo.
O prefeito, finalmente, atirou Marcela ao chão. Tentou chuta-la, mas ela se esquivou rolando para o lado e ele acabou acertando a canela da esposa que deixou um grito de dor ecoar pela casa. Ana, se aproveitando do momento de confusão dele, atirou-lhe a água que estava na jarra em seu rosto.
Ela esperava apartar aquela briga jogando água no cara? Por acaso, achava que era bombeira? Quando ele começou a gritar de dor e pelo cheiro que se espalhou no ambiente percebi que aquilo que ela lhe havia atirado ao rosto era álcool.
Onde que aquela doida foi arrumar álcool naquela casa.
Ajudei Marcela a se levantar e, pegando sua mochila saímos, as três, em disparada para a rua, enquanto sua mãe tentava ajudar seu pai que gritava de dor entre os muitos insultos e pragas que dizia contra nós.