CAPÍTULO 5

MARCELA

 Em toda minha vida, nunca me senti tão mal por ter feito algo tão impensado e impulsivo. Impulsividade era quase um segundo nome para mim, mas nunca tinha ido tão longe. Depois que saímos da festa, deixei que Ana me conduzisse pelas ruas escuras e frias da cidade sentindo o peso da loucura que havia acabado de fazer pesar sobre a minha alma.

Eu chorava. Ela esbravejava comigo.

Eu parava cansada e tonta pela bebida, para sentar nas calçadas e continuar chorando. Ela me erguia e me arrastava pela mão atrás de si.

Eu pedia desculpas entre as lágrimas. Ela dizia que não era a ela que tinha que pedir.

Assim que chegamos a sua casa, atirei-me em sua cama. Escondi meu rosto no travesseiro e a senti me abraçar. Sabia que estava muito brava, mas ainda assim era minha amiga e queria me consolar. Agarrei-me em seu pescoço e enterrei meu rosto em seu ombro até que parei de chorar.

Ela se afastou, perguntando suavemente:

— Por que fez isso, Marcela?

Não sabia o que responder.

— Você faz ideia do que acabou de fazer com a Joana?

Balancei a cabeça em sinal de negação.

— Ela está passando por uma barra com a família e é hostilizada por metade dessa cidade porque teve a coragem de assumir para todos que gosta de mulheres. Justo agora que as coisas estavam melhorando um pouco para ela você inventa de fazer isso.

Baixei os olhos, a vergonha me assaltando.

— Marcela, me diz. Por que fez isso? Por que beijou a Joana se você sempre encheu a boca para dizer que tinha nojo, que isso não era natural e um monte de outras coisas?

Engoli um soluço junto com as lágrimas que ameaçavam cair de novo.

— Desculpa, Ana. Não devia ter feito isso.

— Não existe essa coisa de “não queria”, Marcela. O fato é que você fez — seu olhar brilhava triste, magoado.

— Estava muito bêbada e com muita raiva daquele mauricinho e dos meus pais. Queria me vingar. Acho que entre o desejo de vingança e o álcool escolhi a Joana como minha arma de vingança. Sabia que meus pais teriam um treco com isso.

Ela ficou de pé gesticulando furiosamente, enquanto falava.

— Você é louca? Usar outra pessoa para fazer uma vingancinha idiota contra seus pais, como pôde?

Enterrei novamente meu rosto no travesseiro, deixando que minha voz saísse abafada.

— Não sei como pude, Ana. E isso me assusta. Mas, há outra coisa que me assusta muito mais que os meus atos desta noite.

— E o que é?

— Eu gostei do beijo dela — confessei.

Me senti aliviada por ela não ter feito nenhum comentário a respeito. Apenas deitou ao meu lado e me abraçou.

Ouvimos quando seus pais chegaram meia hora depois, mas eles passaram direto em direção ao quarto deles e não nos incomodaram. Eu os adorava; não, os amava mesmo. Eram sempre gentis e me tratavam como se fosse filha deles.

Adormeci abraçada a Ana, ciente de que teria muito que consertar no dia seguinte e muito mais para me arrepender. Acordei com a mãe dela tocando meu braço e sussurrando para que a acompanhasse.

— Venha, querida.

Levantei-me com cuidado para não acordar a Ana e a segui para fora do quarto, meio trôpega. Estava morta de sono e sentindo as consequências do exagero na bebida. Peguei meu celular que estava sobre a cômoda ao lado da porta e o liguei, o mostrador indicou cinco e trinta da manhã e, pelo menos, vinte ligações da minha mãe.

— Marcela, seus pais estão lá na sala. Querem falar com você — ela informou, os olhos ainda inchados de sono, vestia uma camisola e por cima um casaco.

— Filha, eles estão furiosos — o pai da Ana surgiu atrás de nós usando um pijama azul escuro. Ele tinha cinquenta anos e aparentava não ter mais que trinta e oito, sempre foi um homem bonito e costumava arrancar alguns suspiros das nossas colegas quando ia nos buscar na escola.

Suspirei pesadamente. Sabia o que estava por vir e comecei a caminhar em direção à sala, mas ele me impediu. Me abraçou carinhosamente e senti-me segura.

Por que meu pai nunca havia me abraçado assim?

— Ouça, — ele começou a falar sem se afastar — não vá falar com eles agora. Estão nervosos e tudo que irá acontecer será uma discussão onde coisas desagradáveis serão ditas. Conheço bem teu pai e sei como pode ser cabeça dura.

— Então, o que faço?

— Saia pelos fundos da casa. Assim que dissermos que você não está com a Ana, irão querer ver se é mesmo verdade. Por isso, é melhor você ir embora. Vá para casa, pegue algumas roupas e volte para cá depois que eles saírem. Está bem?

Aconcheguei-me mais em seu abraço, agradecendo. Fiz o que ele havia dito. Fui para casa e tomei um banho rápido. Coloquei algumas roupas dentro da mochila e voltei para casa da Ana, mas o carro do meu pai ainda estava estacionado na porta. Então, resolvi caminhar um pouco e pensar em tudo que havia acontecido durante aquela noite.

Passei em frente ao colégio. Não estava com cabeça para assistir aula, mas ajudaria a matar o tempo até que meus pais se acalmassem e saíssem da casa da Aninha.

Quando cruzei os portões, senti todos os olhares sobre mim e entendi, naquele momento, o que Joana havia sentido quando foi à escola pela primeira vez, logo após ter se assumido. Assim como aqueles garotos e garotas olhavam para mim naquele momento, eu também havia olhado para a Joana.

O arrependimento me tomou com impetuosidade e percebi o quão cruel e ignorante eu havia sido. Aquele olhar de reprovação e aversão estampado naqueles rostos que costumavam me admirar era bastante difícil, para não dizer triste e doloroso, de se receber.

Sentei-me em um dos muitos bancos espalhados no pátio. Havia três garotas do primeiro ano sentadas nele. Lembrava de tê-las visto na festa dos meus pais na noite anterior. Todas me olharam com desprezo e fizeram questão de levantar quando sentei.

Foi muito estranho sentir aquela rejeição e pensei, com tristeza, que até a semana anterior metade daquelas pessoas brigava para sentar ao meu lado, serem minhas amigas ou, no caso dos meninos, me paquerarem.

Elas se afastaram um pouco de onde estava, mas ainda podia ouvir o que conversavam:

— Vocês viram o que ela fez à noite passada?

— Sim.

— Não acredito que ela gosta de mulher, argh!

— Nem eu, mas isso explica muita coisa.

As cretinas nem se davam ao trabalho de falar baixo para que eu não escutasse. Comecei a bater o pé nervosamente, repetindo baixinho:

— Senhor, dai-me paciência, porque se me der forças, eu vou matar alguém!

Trinquei os dentes.

— Que coisa? — A mais baixa do grupo perguntou.

A loira que havia feito o comentário fez um gesto, batendo o punho fechado na testa como se dissesse que a outra era idiota.

— Dâhhh… Metade dos caras dessa cidade baba e corre atrás dessa garota como se fossem cachorrinhos e ela não dá a mínima bola para eles. Nunca deu.

— Tá, mas e daí?

— Nossa! Vocês são lerdas mesmo ou é só fingimento?

— Para de xingar a gente e explica logo.

— É claro que ela nunca deu bola para eles porque sempre gostou foi de mulher.

Me enfezei de vez. Levantei e parei atrás da loirinha ridícula que havia dito isso. As outras me olhavam assustadas, mas ela não havia notado a minha aproximação e continuou a falar.

— Argh, fala sério, né? Trocar esse bando de gatinhos por aquela sapa da Joana. Aquela garota é um nojo…

Ela continuou falando mal da Joana. As outras tentaram avisa-la para parar, mas ela não deu bola e prosseguiu. A medida que ela falava, algo começou a se formar dentro de mim. Era raiva, ódio, ou sei lá o quê!

Está certo que não conhecia bem a Joana e por muitas vezes havia sido eu a dizer tudo aquilo a seu respeito. Mas não podia, naquele momento, permitir que aquela cretina insultasse alguém que, apesar das minhas malcriações e insultos, cuidou de mim e tratou com gentileza.

— Estou louca para que aquela sapinha de uma figa saia…

Nem a deixei terminar a frase. Coloquei minha mão em seu ombro virando-a para mim e soquei seu rosto. Ela caiu sentada, tamanha era a força que usei. Se colocou de pé com a ajuda das amigas e avançou furiosa em minha direção.

Não sei o que me deu. Rolávamos pelo chão, nos arranhando, puxando os cabelos e roupas. Os outros alunos fizeram um círculo à nossa volta. Gritavam, aplaudiam, assoviavam e riam.

Nada disso me importava, só queria arrebentar aquela criatura ignorante. Sentei em cima dela e comecei a esmurrar seu rosto com toda a força que a raiva me permitia. Nunca em minha vida havia brigado daquela maneira, com os punhos fechados e aos socos. Queria acabar com ela.

Como ela pôde falar aquelas coisas horríveis sobre a Joana? Iria pagar por isso.

Sentia o sangue dela em minhas mãos, mas não queria parar de bater.

Senti alguém me enlaçar a cintura e me arrastar de cima dela. Esperneei, xinguei, mas não teve jeito! A pessoa que me segurava era muito forte. Fui arrastada para fora do colégio. Quando passamos pelo portão fui solta, então descobri quem havia me arrastado até ali. Joana. Minha fúria morreu naquele instante e senti vergonha por aquela situação.

— Você está louca, garota?

— Ultimamente, ando ouvindo muito essa pergunta.

— Por que será, hein? Vem! — Pegou em minha mão, meu corpo estremecer ao lembrar do beijo que trocamos. — Você não pode ficar aqui, se a diretora te pega vai ser expulsão na certa e adeus formatura.

Puxei minha mão e finquei o pé no chão.

— Não me importo — respondi, mais para ela não perceber o que havia me feito sentir com um simples aperto de mãos do que por rebeldia.

— Mas, eu me importo. Esta é a última semana de aulas. Agora, deixa de bancar a marrenta e vamos embora.

Deixei minha pose rebelde ruir.

— Não, minha mochila ficou lá dentro. Tenho que ir pegar — informei já dando meia volta.

— Não vai, não. Você é bem capaz de acabar se atracando com aquela pirralha de novo. Deixa que eu vou.

Em dois minutos ela estava de volta com minha mochila, o olhar enfezado e o maxilar contraído.

— O que você pôs aqui dentro? Chumbo?

Não pude deixar de sorrir.

— Mais ou menos isso — respondi.

Ela tirou um lenço de papel da sua mochila e se aproximou, imediatamente, dei um passo atrás.

— Seu nariz está sangrando — informou e me entregou o lenço baixando o olhar.

A minha vontade era de ir embora e deixa-la sem olhar para trás. Estava envergonhada por toda aquela situação, por ter beijado ela e gostado, por tê-la usado, por ter brigado com uma garota por sua causa e por ela ter me visto daquele jeito.

No entanto, quando ela começou a andar com passos lentos e cadenciados, a segui.

Ela me levou até a loja do irmão. Havia uma porta ao lado da entrada da loja que levava a um apartamento na parte de cima do prédio, aliás, pelo que pude notar em seguida, eram dois apartamentos. Entramos em um deles.

Ela atirou a mochila de modo displicente no chão e me indicou o sofá no qual sentei observando-a sumir por um corredor e voltar minutos depois com uma toalha molhada, a qual usou para limpar meus arranhões no rosto e braços.

— Ai! Cuidado! Tá doendo!

— Deixa de ser manhosa! — reclamou e me olhou por longo momento com gravidade, então se afastou. — Pronto. Agora, está bem melhor.

— Obrigada — agradeci com meu orgulho ferido se revirando como um animal selvagem em meu interior.

Ela se levantou, dizendo:

— Agora só precisa dar um jeito nessas roupas rasgadas. Se quiser te empresto uma.

— Não precisa. Tenho roupas limpas na mochila. Será que posso usar o banheiro?

Ela assentiu com um gesto e me indicou a direção. Decidi ser folgada e tomei um banho, estava mesmo precisando. Acho que demorei demais no banheiro, pois quando voltei, Joana estava adormecida no sofá. Fiquei observando-a por alguns minutos.

Não sabia o que estava acontecendo comigo, mas não conseguia desviar o olhar dela.

Então, o cheiro de café recém preparado invadiu o ambiente. Senti meu estômago reclamar e lembrei que ainda não havia comido nada aquela manhã. Segui o cheiro até a cozinha e dei de cara com um homem alto e magro, de cabelos e olhos tão negros quanto os de Joana.

— Oi — ele disse derramando o café em uma xícara e me entregando.

— Olá. Desculpe, eu… Esta é a sua casa?

Ele sorriu, o mesmo sorriso debochado da irmã.

— Sim e não. Sente-se e vamos tomar o café da manhã, tenho a impressão que assim como a Joana e eu, você também não se alimentou hoje.

Obedeci.

— Como assim, sim e não? — deixei a curiosidade falar mais alto.

— Este prédio é meu, mas não moro neste apartamento. Moro no apartamento em frente.

— Hum, então quem mora aqui?

— A partir de hoje, será a Joana. E por falar nela, onde será que está?

Fiquei um pouco surpresa com a revelação de que ela moraria ali a partir daquele dia, mas não deixei que a curiosidade voltasse a me dominar.

— Ah, ela estava dormindo no sofá e não quis acordá-la — informei, enquanto mordiscava uma torrada.

— Entendo. Também, depois daquela confusão de ontem à noite ela sumiu e só apareceu hoje cedo. Deve estar muito cansada. Nem sei por que insistiu em ir ao colégio.

Meu rosto queimou de vergonha, mas ele falou de forma tão tranquila, parecia que não havia ocorrido nada de mais.

— Desculpe!

Ele riu.

— Não precisa me pedir desculpas, foi a minha irmã que você beijou e não a mim — piscou o olho e deixou um sorriso malicioso visitar seus lábios. — Então, me diz, ela beija bem?

Acho que me tornei um pimentão de tão vermelha que fiquei, minhas bochechas ardiam com violência.

— Er… Por que ela vai morar aqui? — tentei mudar de assunto.

Ele sorriu por alguns segundos, então sua fisionomia tornou-se séria e até um pouco triste.

— Já faz algum tempo que venho pedindo para a Jô vir morar comigo.

— Por quê?

— Desde que ela assumiu para toda a família que é homossexual a situação vem se tornando insuportável. Meus irmãos não a aceitam, a destratam sempre que podem. Meus pais já estavam se acostumando com a ideia, embora não a aceitassem. No fundo, Joana tinha esperanças de que eles a compreendessem e aceitassem, mas depois da noite passada ela, finalmente, percebeu que isso seria impossível.

Pousei a xícara na mesa com um pouco de violência e ele percebeu meu desconforto e arrependimento por ter causado tudo aquilo.

— Por favor, não fique assim. Tudo isso era uma bomba prestes a estourar. E depois dos últimos acontecimentos foi exatamente o que aconteceu. Amo minha irmã, ela é a pessoa mais importante para mim e só quero vê-la feliz, mas felicidade é algo que não vejo em seus olhos há um ano. Ela estava definhando vivendo naquela casa com pessoas estúpidas e preconceituosas. Aqui, terá a chance de ser ela mesma. Terá liberdade de ir e vir, quando, como, e com quem quiser. E de quebra, ainda ganho uma funcionária de confiança! — sorriu e piscou o olho para mim.

 Joana surgiu à porta, sonolenta, esfregando os olhos como se fosse uma criança. A achei linda nesse momento e depois me repreendi por ter achado linda uma garota que não fosse eu mesma ou a Ana. Que estava acontecendo comigo?

— Ah, maninha, resolveu dar o ar de sua graça.

Ela sentou à mesa conosco e serviu-se de uma xícara de café. Tomou um gole e fez uma careta.

— Aff, você ainda não aprendeu a fazer um café decente?! Isso aqui está uma droga!

Bom, ela não estava mentindo. O café estava mesmo horrível, mas daí a falar daquele jeito com o coitado do irmão era demais. A reação dele? Para minha surpresa, caiu na gargalhada.

— Adoro o seu mau humor quando acorda! — disse ele lhe dando um leve beliscão na bochecha.

— Sai! — ela empurrou a mão dele.

— Estou muito feliz por você, finalmente, ter decidido vir morar aqui, assim vou poder tomar um bom café todas as manhãs e isso sem falar no almoço e no jantar, afinal, você cozinha divinamente bem.

Ela o olhou como se fosse partir a cara dele ao meio.

— Você quer alguém para te ajudar na loja ou uma escrava? Não sou piloto de fogão não, viu?

Ele ria com vontade. E eu? Não estava entendendo nada, mas se fosse dar um palpite, diria que isso se chamava cumplicidade e amizade. Ele levantou, deu-lhe um beijo estalado na bochecha, parou do meu lado e fez o mesmo, dizendo:

— Bem, vou indo. Tenho que voltar ao trabalho. Joana te espero às 13h, certo? Ah, — se voltou para mim — seja bem-vinda à família, cunhada!

Juro que quase morri de tanta vergonha nessa hora. Olhei encabulada para a Joana e vi que ela também estava vermelha. Deixei o ar escapar dos meus pulmões lentamente. Agora que estávamos sós, estava na hora de termos uma conversa.

— Joana, quero te pedir…

Ela ergueu a mão no ar e a balançou como se etasse um pensamento.

— Não precisa pedir desculpa.

— Mas…

— Marcela, o que está feito, está feito. O tempo não irá voltar atrás só porque você me pediu desculpas.

— Certo, mas, mesmo assim, desculpe.

— Tudo bem, esquece.

— Eu quero te explicar a razão…

— Eu sei muito bem o porquê. Marcela, sei que o que os seus pais fazem contigo não é nada legal. Sei como é se sentir sufocada pelas pessoas que a gente ama e admira e como é se sentir triste porque eles não te aceitam do jeito que é. Mas, por mais que você se sinta dessa maneira, isso não é motivo para usar outra pessoa que não tem nada a ver com a sua vida para se vingar. Não vou mentir, gostei de te beijar, mas isso não quer dizer que estou feliz por ter beijado a “maravilhosa” Marcela Farias, para não dizer, usada.

Baixei os olhos. Que podia fazer? Ela tinha razão, não tinha? Exagerei, usei e magoei alguém que não tinha nada a ver com minha vida e convivência com meus pais.

— Joana, mais uma vez, desculpe. Me deixei levar pela raiva e pela bebida.

— E agora está sentindo as consequências de seus atos, não é mesmo? Ou, vai me dizer que aquela briga no pátio do colégio não foi porque alguém deve ter te chamado de “Lésbica”, não, eles não usariam essa palavra, acho que o certo seria dizer “sapatão, sapa, entre outros que tenho até vergonha de falar porque são muitos baixos”?

Que eu poderia fazer? Não ia contar para ela que por algum motivo, ainda desconhecido por mim, briguei por causa dela.

— Foi mais ou menos isso. Olha, prometo que isso não irá mais acontecer.

— Marcela, você ainda não faz ideia de onde foi se meter. Eles não irão parar por aí. Vai piorar e muito.

— Tudo bem, eu aguento. E acho que estava mesmo precisando de uma lição, não é? Hoje, percebi como as palavras podem machucar mais que uma surra ou arma. Peço perdão por tudo que te disse, por ter te insultado e sei lá mais o quê.

— Tudo bem. Vamos deixar isso para lá.

— Mas, ainda não entendo e não acho natural duas mulheres ou dois homens, tá? — informei.

Ela suspirou e me olhou de um jeito estranho.

— Está certo. Você não precisa entender, Marcela, só aceitar que nem todo mundo é igual e que existem várias formas de amar. E que algumas dessas formas são diferentes da concepção que as pessoas têm do que é normal e natural.

Tentei esboçar um sorriso e estendi minha mão por sobre a mesa, dizendo:

— Tentarei, prometo. Amigas?

Ela apertou minha mão e senti como se estivesse tocando em brasa.

JOANA

Quis matar o Edu quando ele falou aquele “Seja bem-vinda à família, cunhada”. Quase morri de vergonha. Ele ainda iria me pagar por isso.

Finalmente, Marcela e eu estávamos nos acertando. Pelo menos, ela agora sabia como era triste ser ofendido e hostilizado por sua opção sexual, se bem que, ela não era lésbica. Também, eu não tinha por que ficar com raiva dela. A cidade toda e minha família já sabia da minha opção.

— Seu irmão me contou que você saiu de casa e agora irá morar aqui.

Suspirei e assenti com a cabeça.

— Isso aconteceu por minha culpa.

Que fofo! Ela estava se culpando e fez uma carinha de cão sem dono nessa hora. Se ela quisesse, eu a adotava. Me obriguei a manter a calma e aproveitei para guardar bem a lembrança daquele beijo, porque você nunca mais teria outra oportunidade daquelas.

— Não, culpa não foi sua. Não vou negar que o que aconteceu influenciou bastante, mas isso já deveria ter acontecido há muito tempo. Eu é que estava me negando a enxergar que minha família nunca irá me aceitar.

Me dirigiu um olhar intenso e estranho nesse momento.

— Felizmente, você tem seu irmão. Ele parece gostar muito de você e te compreender.

— É verdade, o Edu é maravilhoso e o amo muito.

— Somos parecidas nisso, não é?

— Em quê?

— Ambas não nos damos bem com nossas famílias porque queremos ser livres e que eles nos aceitem como somos.

Isso me pegou de surpresa, não era que a metidinha tinha razão? Ela olhou para o relógio.

— Já são quase onze horas, tenho que ir e enfrentar as feras — informou.

— Você ainda não falou com seus pais?

— Não. Fugi deles hoje cedo. Nem pretendia falar com eles, mas depois dessa conversa e de tudo que aconteceu hoje decidi que é melhor não adiar mais esse encontro.

— Entendo.

A acompanhei até a porta.

— Boa sorte.

— Pra você também e obrigada, por tudo.

Eu estava um trapo! Não havia dormido, exceto pelo cochilo que dei, enquanto Marcela tomava um banho e se trocava. Preparei o almoço, felizmente, o Edu teve a maravilhosa ideia de comprar comida e abastecer a geladeira. Tomei um banho e, não demorou muito, ele veio almoçar comigo acompanhado do João Pedro.

O JP era um loiro lindo, tão alto e magro quanto meu irmão. Estava sempre sorrindo e brincando. Levei um tempo para me acostumar com a ideia de que o melhor amigo do meu irmão e ele eram namorados. No fundo, a lembrança que sempre me acompanhou era da amizade deles. Mas, depois de um tempo, acabei me habituando com as trocas de carinhos e beijos. Quem os visse assim ficaria de queixo caído, afinal, ambos sempre foram muito másculos e não aparentavam ser gays.

— Hum, que cheirinho maravilhoso! — João Pedro entrou na cozinha dizendo. Correu e me agarrou, dando vários beijinhos em meu pescoço.

Edu fez cara de amuado.

— Ei, ei, ei! Vamos parar com essa agarração aí! Onde já se viu? Se você continuar agarrando meu namorado assim vou exigir reparação, hein?

— Ai, deixa de frescura! Não é todo dia que uma gata dessas me deixa dar uns beijinhos nela! — João Pedro adorava provocar o Edu.

Havia muito tempo não me sentia bem assim. Apesar de cansada e com sono, sentada ali naquela mesa com Edu e o namorado, me sentia livre, leve, solta. Podia ser eu mesma. Não precisava me conter para não falar algo que pudesse constrange-los como fazia com meus pais.

A tarde chegou e com ela meu primeiro dia de trabalho na loja. Edu foi logo me sobrecarregando de informações e trabalho.

— Você também vai ficar responsável por uma parte dos pedidos dos clientes. A Paula não está dando conta de todos eles…

— A gata da Paula ainda trabalha aqui? — sorri maliciosa.

— Nem pense nisso!

— Pensar em quê? — me fiz de desentendida.

— Sei muito bem que você sempre teve uma quedinha pela Paula, mas nem pense em dar em cima dela, entendeu?

— Ah, qual é, Edu? Quê que tem?

— Tem muita coisa, entre elas, o fato de que a Paula é hétero e, se por um acaso, ela viesse a te dar bola e sair contigo, não gostaria de vê-la triste e magoada pelos cantos por sua causa.

— Que é isso, Edu? Você fala como se eu fosse uma Dom Juan de saias e…

— Maninha, você é uma Dom Juan de saias. Já vi muita menininha por aí chorando por tua causa.

— Eita! Está bom, não chego nem perto da Paula. Mas, se ela me der bola de alguma forma, não vou me esquivar!

— Certo. Agora, mãos à obra.

Passei o resto da tarde trabalhando. Até que estava gostando. A ideia de ter um emprego para me auto sustentar, um lar só meu, e ninguém para pegar no meu pé com horários e outras coisas, estava me fazendo um super bem. Pena que mesmo tentando não conseguia tirar a Marcela do pensamento.

Fim do expediente, lá vem o meu “chefinho”.

— Mana, que tal uma cervejinha?

— Ah, não, Edu! Estou super cansada!

— Que é isso, mal começou a trabalhar e já está cansada?

— Deixa de ser palhaço, sabe muito bem que não dormi!

— Ok, mas vamos tomar só uma garrafinha lá no quiosque do seu Zé, vamos? Depois disso prometo que te deixo ir dormir.

Já disse que ele consegue fazer uma carinha de cão sem dono pior que a da Ana? Sempre consegue o que quer quando faz aquele bico.

— Ai, tudo bem! Vamos, mas antes me deixa tomar um banho e trocar de roupas.

— Certo, gata.

— Se importa se eu convidar a Aninha?

— Claro que não. Vai se arrumar logo, que do jeito que você é a gente acaba nem saindo de casa.

Liguei para a Ana e combinamos de nos encontrar no quiosque. Ela me pareceu um pouco estranha ao telefone, perguntei se havia acontecido algo e respondeu que precisava conversar comigo a respeito da Marcela. Fiquei com o pé atrás, pois a Ana estava muito séria.

A fisionomia dela denunciava que algo não ia bem quando nos encontramos uma hora depois. Dei uma cotovelada no Edu e ele entendeu que precisávamos ficar as sós na mesa. Com a desculpa de ir falar com uns amigos que estavam bebendo em outra mesa ele e o JP se afastaram.

— Ana, você está bem?

Aninha sempre foi brincalhona, sempre tinha um sorriso nos lábios não importasse a situação, mas vê-la com aquele olhar triste me partiu o coração. E foi pior quando começou a chorar. A puxei para perto e escondeu o rosto em meu ombro por alguns minutos.

 Edu nos olhava curioso e penalizado ao mesmo tempo.

— Está mais calma? — perguntei quando se afastou.

Ela confirmou com a cabeça.

— Quer sair daqui e ir para algum lugar mais reservado para conversarmos?

— Sim, por favor.

Com um gesto informei Edu que estávamos indo embora. Ele inclinou a cabeça em assentimento e voltou a dedicar atenção aos amigos.

Caminhamos até o meu novo lar. Quando peguei as chaves para abrir a porta ela me olhou interrogativamente. Sorri um pouco triste, enquanto a informava sobre as novidades.

— Saí de casa esta manhã.

— Como assim você saiu de casa? — me dirigiu um olhar de surpresa.

— É uma história um pouco complicada, Ana, mas conversamos sobre isso depois. Agora, quero que me conte o que está acontecendo contigo.

A fiz sentar-se no sofá ao meu lado. Amava aquela moleca linda e brincalhona que havia conquistado meu coração com sua amizade maravilhosa. Não suportava vê-la tão triste. Queria ajuda-la sempre que precisasse, assim como ela fazia comigo.

Ela permaneceu em silêncio por um longo instante e respeitei isso, mas logo tentei fazê-la falar outra vez.

— Aninha, vamos. Me diga, o que está acontecendo?

Ela me olhou chorosa.

— É a Marcela — respondeu finalmente.

— Aninha, se é por causa do que aconteceu na noite passada, não precisa mais se preocupar. Sei que você deve ter ficado muito zangada com ela pelo que fez comigo, mas hoje cedo nós conversamos e resolvemos isso.

— Não é isso! — seu tom subiu um pouco.

— Então, o que é?



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.