CAPÍTULO 18

JOANA

Foi uma Marcela totalmente diferente que entrou em meu quarto no hospital, duas horas após ter saído acompanhada por Edu. Tinha os olhos vermelhos, mas com um brilho decidido; um sorriso triste, mas orgulhoso.

Não havia necessidade de perguntas. A resposta era óbvia. Ela não chorou ou disse qualquer coisa, apenas se aninhou em meus braços tomando cuidado para não me machucar.

— Eu topo — falou baixinho em meu ouvido. — Quero ir embora desta cidade contigo.

Mais tarde, vim a saber por Edu o que realmente aconteceu, pois Marcela jamais voltaria a tocar no assunto. Na ocasião, chorei por ela, pelo que havia perdido, pelo buraco que sempre haveria em seu coração, mas também chorei de alegria e orgulho por saber que ela estava disposta a lutar por nosso amor e enfrentar qualquer coisa para vive-lo.

Não denunciei o prefeito a polícia. Não o fiz por falta de vontade, mas sim, em respeito à Marcela, mesmo ela dizendo que não se importava.

A verdade, é que já estávamos cheias de tudo aquilo e não queríamos mais confusão. Felizmente, nada de mais grave me aconteceu em consequência ao atropelamento, então assim como ela estava fazendo, decidi esquecer que um dia tivemos qualquer contato com o Prefeito Felipe Farias e sua esposa Mariana.

4 ANOS DEPOIS

— Vai ou não me contar o que está planejando?

— Edu, para de me encher o saco!

Era o meio da tarde e caminhávamos lado a lado em direção a loja que eu administrava ao lado de Marcela havia quase quatro anos. Tínhamos nos mudado algumas semanas depois que saí do hospital. Conciliávamos a gerência da loja com os estudos e, embora eu mesma tivesse duvidado da nossa capacidade de fazer aquele trabalho dar certo, tudo ia bem.

Alugamos e mobiliamos uma casa pequena, que dividíamos com um labrador bagunceiro chamado Teddy, era um presente da Aninha.

— Esta casa precisa de um toque masculino — ela argumentou e Teddy latiu concordando e correndo pela casa, fazendo de um vaso sobre a mesinha de centro da sala sua primeira vítima.

— Você não quis dizer um toque “monstruoso”? — questionou Marcela indo recolher os cacos. — Ele é uma peste!

— Ele é um fofo! — repliquei afagando a cabeça de Teddy, ainda filhote, que abanava o rabo cheio de felicidade no meu colo.

Ela riu e deu de ombros.

— Bem, se posso conviver com a sua bagunça diária, posso encarar a aventura de cuidar desse pestinha!

— Quem você está chamando de bagunceira? — fiz um bico chateado e Teddy me deu uma lambida na bochecha, enquanto Aninha se divertia às nossas custas.

Nunca me senti tão feliz. Não escondíamos de ninguém que éramos um casal e as pessoas sempre nos trataram com naturalidade e respeito. Me dei conta do quanto os horizontes se expandiam quando nos encontrávamos em lugares onde ser diferente era algo quase normal como era o caso de uma cidade como aquela com algumas universidades onde pessoas de todos os tipos frequentavam. Obviamente, ainda acontecia um ou outro episódio de preconceito e eu até cheguei a achar essas situações engraçadas, pois desde que Marcela estivesse ao meu lado, todo o resto não importava ou poderia ser contornado.

Edu vinha nos visitar duas vezes por semana para acompanhar o trabalho na loja e saber como estávamos. Nos fins de semana íamos visitar meus pais ou eles vinham até nós, por vezes nos reuníamos na casa de Hellena e Cris que adoravam organizar almoços entre as famílias e amigos um domingo por mês. Às vezes, nós organizávamos e era como se estivéssemos ainda mais completas.

Naquele momento, Edu havia cismado que eu estava aprontando algo mais do que uma festa surpresa para o aniversário de Marcela naquela noite.

— Não minta para mim, maninha, te conheço! Me conte logo!

— Me deixa em paz, Chatolino!

— Meu trabalho é tornar sua vida chata e sem graça com momentos de elevada irritação. Nem pense que vai se livrar de mim.

Estaquei no meio do caminho e ele seguiu meu exemplo.

— Babaca! — o xinguei.

Ele riu e me deu um beijo estalado na bochecha.

— Talvez um pouquinho, talvez — admitiu.

Revirei os olhos e enfiei as mãos nos bolsos da calça jeans que usava.

— Ok, seu chato! Tem algo mais, sim.

Ele esfregou as mãos satisfeito, a aliança dourada que usava refletindo a luz do sol da manhã intensamente. João Paulo finalmente o amarrou e estavam morando juntos havia quase um ano. Edu não admitia, mas gostava de exibir aquele anel de compromisso dourado e que as pessoas soubessem que ele tinha alguém que o amava acima de qualquer coisa; gostava de chocá-las revelando sua homossexualidade, o que acontecia com frequência já que ele era tão másculo quanto um peão de rodeio sobre o lombo de um touro. Ele gostava de derrubar a ideia preconcebida das pessoas de que todos os gays eram efeminados ou se travestiam.

— Oba! Vamos lá, desembucha.

Contei meus planos detalhadamente, enquanto seu sorriso se tornava cada vez mais largo e balançava a cabeça satisfeito.

— E então, vai me ajudar?

— Tá brincando? Mas, é claro que sim! — me puxou para um abraço apertado no qual alguns dos meus mais queridos ossos estalaram.

MARCELA

Teddy se jogou em cima de mim quando abri a porta e apesar de cansada, encontrei forças para sorrir e lhe afagar a cabeça. Me joguei no sofá pesadamente e ele repousou a cabeça em meu colo pedindo mais carinho.

Edu havia me prendido na loja por mais de uma hora após seu fechamento. Havia cismado que as contas não estavam corretas e tive de rever todo o caixa do mês para lhe provar o contrário. Teria sido mais fácil se Joana estivesse conosco, mas ela havia saído mais cedo, pois tinha uma consulta com o dentista.

Estava exausta, quando saímos da loja e ele se despediu apressado. Então, Aninha surgiu, com um rostinho triste e pedindo concelhos amorosos, pois havia brigado com o namorado. Após um sorvete e muita conversa, ela partiu mais tranquila e eu me senti aliviada, pois não gostava de vê-la triste.

Retirei os sapatos, aliviada pelo frio que emanava do chão. Teddy se apossou de um deles mais que satisfeito e tive de persegui-lo por metade da casa para recuperar o par. O pestinha era um devorador de sapatos e nós já havíamos perdido as contas de quantos pares haviam sido destruídos por ele.

— Ei, já disse que isso não é brinquedo e nem comida!

Ele latiu em resposta, abanando o rabo e deixei que um sorriso me viesse aos lábios. Era muito difícil ficar com raiva dele, pois me derretia de amores sempre que seus olhos castanhos pousavam em mim. Aninha havia acertado em cheio ao dá-lo para nós. Joana era louca por animais e eu sempre havia desejado ter um cachorro, mas meu pai era alérgico e ter um mascote em casa era algo que jamais aconteceria.

Lavei as mãos e o rosto no banheiro e fitei meu reflexo no espelho sobre a pia por um longo minuto. Me permiti reconhecer meu pai em meus traços, sempre fui muito parecida com ele, e senti um aperto no peito pelo laço partido, mas jamais me arrependi de ter posto fim ao nosso contato, embora ficasse triste ao pensar à respeito.

No quarto, me deparei com uma caixa sobre a cama e um bilhete que dizia:

 

“Jantar às 21h. Use isto.

Te amo!

Jô.”

 

Deixei um suspiro apaixonado escapar. Joana sempre me surpreendia com bilhetinhos pela casa; eram poemas, às vezes apenas um “eu te amo”, noutras uma flor ou um mimo qualquer. Mas, nunca havia me deixado um vestido junto.

Com um sorriso meio bobo e encantado, tomei um banho relaxante e coloquei o vestido, uma maquiagem leve e a aguardei. Poucos minutos haviam se passado quando a campainha tocou e ao abrir a porta me deparei com uma figura bem conhecida. Seus cabelos longos e ruivos estavam mais curtos alcançando os ombros desnudos em um corte desfiado. A boca vermelha se alargou deixando dentes muito brancos à mostra e Natália se adiantou para me cumprimentar com um beijinho no rosto.

Havia alguns meses, nossos caminhos tinham se cruzado novamente. Ela havia conhecido alguém, estavam juntas havia um ano e Natália havia largado a vida na capital do Estado para dividir uma vida pacata com a namorada naquela cidade.

Apesar da minha desconfiança, Joana reatou alguns laços com ela. Se tornaram amigas e, mesmo com o pé atrás, resolvi me arriscar e conhecê-la melhor para evitar conflitos com a minha mulher.

Confesso, passei a gostar dela e de sua companhia, embora tivesse a certeza de que jamais seria capaz de esquecer tudo o que se passou entre ela e Joana e a loucura que cometeu ao droga-la. Vez ou outra acabávamos discutindo, pois ela insistia em me provocar e vice-versa, mas era divertido mesmo assim.

— Hora errada, ruiva, estou aguardando Joana para sairmos.

Ela riu e piscou o olho de um jeito provocante.

— Eu sei, morena. Sou sua carona. Joana me pediu para te pegar, ela estava um pouco “enrolada” e não conseguiria chegar a tempo.

Meio mal-humorada, aceitei sua carona e fiquei surpresa quando tomamos a estrada que levava para fora da cidade.

— Então, para onde estamos indo?

Percebendo a desconfiança em meu olhar e voz ela riu batendo a mão levemente no meu ombro.

— Relaxa, morena! Juro que é só uma carona, meus dias de loucura acabaram.

— Nunca se sabe!

Ela caiu na gargalhada concordando e a nossa viagem durou poucos minutos e paramos diante da entrada de um sítio. O lugar era esquisito, no meio do nada e sem ninguém à vista. Claro que fiquei apavorada.

— Chegamos! — Natália informou parando o carro, o motor ainda ligado.

— Esta é a hora em que você me mata e desova o corpo? — fiz uma piada infeliz, mas não podia negar que ainda tinham desconfianças em relação a ela.

Ela riu.

— Engraçadinha! Cai fora do meu carro, antes que eu cogite essa possibilidade.

Ela pousou a mão sobre a minha antes que saísse.

— Ei, morena, — me voltei para fita-la e encontrei um semblante sério e ao mesmo tempo sereno — nunca te agradeci pela surra que me deu naquele dia infeliz.

Arqueei a sobrancelha, confusa.

— Eu, realmente, passei dos limites e os seus tapas foram uma punição mais que merecida, mas também foram um banho de realidade.

— Por que isso agora?

— Só queria que soubesse que você me abriu os olhos para os erros que cometi e estava cometendo e isso me ensinou uma grande lição. Recordando as palavras da Jô na época, creio que posso dizer o mesmo para você. Graças ao que fez, embora de uma maneira tosca e bem dolorida, você me trouxe de volta ao meu normal e foi por isso que consegui me abrir para os meus sentimentos e, com isso, conheci o amor da minha vida. Obrigada!

Seu olhar estava marejado. Estalei um beijo em sua bochecha e me afastei mexendo com ela.

— Da próxima, me avisa que você bebeu antes de oferecer uma carona.

Ela riu e peguei sua mão.

— Eu tive que errar muito para encontrar o amor nos braços de Joana, não é a mesma coisa, mas às vezes a vida resolve nos pregar algumas peças como lição. Às vezes, a maior lição de todas é amar e se permitir amar.

O carro levantou um pouco de poeira quando se afastou e me vi envolvida pela escuridão e silêncio quebrado apenas pelos grilos. Me aproximei do portão de entrada e meus olhos cruzaram com os de Joana que me aguardava, ela me envolveu em um abraço apertado e senti seu perfume invadir meus sentidos.

— Feliz aniversário! — sussurrou em meu ouvido.

— É só amanhã — respondi me afastando.

— É daqui algumas horas.

Concordei, perdida em seu olhar na penumbra da noite.

— Desculpe não ter podido buscar você, ainda tinha muito que preparar.

— E Edu e Aninha te ajudaram, não é mesmo?

— Sim, foram minhas abelhinhas operárias. Precisavam te distrair um pouco.

— Os dois safados, até entendo, mas você precisava ter mandado a ruiva dos infernos me buscar?

— Não chama ela assim.

Sorri.

— Era só ter me dito que queria jantar, não precisava ter tido esse trabalho todo.

— Não teria a mesma graça, queria que viesse até aqui e será um jantar especial e inesquecível.

— Jantar é jantar em qualquer lugar — observei. — O que tem este lugar de tão especial?

— Nada, mas terá em breve.

Ela se afastou e senti o frio da ausência de seu corpo me envolver.

— Vê as estrelas? — mirou o céu estrelado e segui seu exemplo. — São infinitas, como o que sinto por você. Não há outra pessoa no mundo com a qual queira dividir minha vida e não posso te fazer qualquer promessa, exceto, que irei sempre estar ao seu lado e que o meu amor será para sempre seu.

— Jô…

— Quero sempre acordar com o seu sorriso e dormir com um beijo teu, te fazer chorar de alegria e rir de pura felicidade, poder dizer que te amo e sentir meu coração bater mais forte ao ouvi-la dizer que me ama, me fingir de brava ao vê-la fazer uma cena de ciúmes e por dentro rir com a certeza de que não há necessidade de fazer isso, pois meu coração só a você pertence.

— Jô, eu já sei de tudo isso, meu anjo…

Ela sorriu e me entregou o embrulho que trazia nas mãos.

— Nunca me canso de dizer.

Abri o embrulho na semi-escuridão, a pouca luz que tínhamos vinha da casa ao longe. Encontrei uma rosa no interior da caixa e ao lado dela outra caixa, menor e aveludada. Em seu interior um par de alianças.

Dei um passo atrás, pensando que ela não estava fazendo o que imaginava, mas estava.

— Marcela Farias, quer casar comigo?

Já morávamos juntas, já éramos casadas, já a amava loucamente, mas não titubeei ao responder completamente encantada e feliz:

— Sim, sim, sim! — a puxei para mim, beijei-a e grudei meu corpo ao dela. — Eu te amo, te amo, te amo! Aceito, aceito, aceito…

Ela me brindou com o sorriso mais lindo do mundo em meio às lágrimas e, me puxando pelas mãos, levou-me para dentro da casa. Qual não foi a minha surpresa ao encontrar ali todos os amigos queridos e familiares que nos apoiaram.

Joana havia planejado tudo perfeitamente. Estava tudo tão lindo! Havia pétalas de rosas espalhadas pelo chão e músicos iniciaram uma canção, que jamais esquecerei, quando nos aproximamos e ela gritou para todos:

— Ela disse SIM! — e chorou outra vez, abraçada a mim.

Foi a melhor noite da minha vida. Sabíamos que encontraríamos dificuldades e obstáculos no meio do caminho, mas nada disso importava, pois estaríamos sempre uma ao lado da outra.



Notas:

É isso, amores!

Mais uma que chegou ao fim. Sei que devem ter encontrado algum erro no texto, procuro ler e reler antes de postar, mesmo as histórias já concluídas, mas algumas coisas sempre me escapam. Peço desculpas por isso. 

Espero que tenham gostado de conhecer Marcela e Joana e, de quebra, saber como estão a Cris e a Hellena.

Beijos carinhosos e até a próxima! 




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