Posso te falar de amor?

2. Cristiane (Parte 1)

(CRISTIANE)

Era estranho estar passeando por aquelas ruas estreitas e sem atrativos. Havia anos que não colocava meus pés nesta cidade. Tinha me esquecido como era o seu cheiro e os seus sons. Ela cheirava a uma mistura de mato com um pouco de concreto. Era delicioso e ficava ainda mais quando chovia, o que não era o caso daquela tarde ensolarada e abafada.

— Não sei a razão de você estar se escondendo atrás desse boné e desses óculos. — Henrique queixou-se pegando em minha mão e me dando aquele sorriso doce que só ele era capaz.

Sorri de volta.

— Não quero ser reconhecida, Rick. Acho que ainda não estou preparada.

Ele me jogou outro sorriso carinhoso.

— Cris, é quase, aliás, é impossível alguém te reconhecer. — Soltou minha mão e sentamos em um dos bancos da praça.

Um garotinho veio em nossa direção vendendo picolés, comprei dois e ficamos lá nos deliciando com eles, enquanto alguns fantasmas do passado assombravam minha mente.

Ele, por sua vez, ficou calado aproveitando seu picolé; sempre soube ficar em silêncio e esperar até que estivesse pronta para falar. Acho que fiquei perdida em meus pensamentos por tempo demais, pois ele me deu um cutucão nas costelas, dizendo:

— O que você tanto pensa? Se demorar demais tudo que irá restar será apenas o palito.

Olhei para o picolé em minha mão e constatei que já havia derretido quase todo.

— Pensava em nada em particular. — Menti dando um pouco de atenção ao que restava do gelado.

— Cris, se tem uma coisa que você não sabe fazer é mentir para mim. Você estava pensando naquilo que aconteceu, não é mesmo?

— Está tão na cara assim? — Deixei um suspiro escapar um pouco zangada comigo mesma por ser tão óbvia.

— Você sempre foi um livro aberto para mim. Não precisa se preocupar em ser reconhecida, afinal isso aconteceu há doze anos atrás. Você não é mais aquela adolescente de dezessete anos gordinha, quatro olhos e cheia de espinhas.

— Obrigada por me lembrar que eu era horrível. — Sorri, sem me importar realmente com o que falou sobre minha aparência.

A beleza é agradável? Claro! Mas, eu mais do que qualquer outra pessoa, sempre me importei com o coração.

— Você sabe muito bem que a minha intenção não é essa. E você não era horrível! Só era um pouquinho desprovida de beleza, na época.

Ele coçou a cabeça, encabulado ao perceber o que tinha dito.

— Ah, deixa disso! Olha só que mulherão você se tornou. Está uma gata! Se eu não estivesse noivo, você não fosse como uma irmã para mim e não fosse lésbica, daria em cima de você descaradamente.

 Não pude deixar de rir com isso. Ele era, realmente, um amor de pessoa. Sempre foi meu porto seguro, principalmente naqueles dias horríveis da minha adolescência. O riso passou e o silêncio recaiu entre nós, a saudade me dominando.

Não tinha boas lembranças daquele lugar, mas, também, o amava de muitas maneiras já que foi ali que nasci e cresci.

— Cris. — Ele me trouxe de volta, outra vez.

— Oi.

— Você tem vergonha do que é, de si mesma?

Sua pergunta me pegou desprevenida, mas fui sincera ao responder.

— Não. Pelo contrário, tenho muito orgulho da mulher que me tornei. Mas, você deve compreender que não foi fácil para mim enfrentar tudo e todos. Naquela época, acabei me tornando um pouco reclusa. Evitei, ao máximo, as pessoas naquele período, em parte, por ter medo de “encara-la” e, também, para evitar mais desconforto aos meus pais.

Ele baixou os olhos para seu picolé que já estava quase no fim.

— Sou uma mulher totalmente diferente da adolescente que conheceu anos atrás. Mudei muito, creio que para a melhor. Mas mantive minha essência e, parte desta essência, inclui o desconforto que é estar aqui e me mostrar diante de pessoas que me magoaram profundamente.

— Eu acho que entendo.

Sabia que ele entendia mesmo, embora não parecesse. Rick era muito mais profundo do que qualquer pessoa que já conheci, além de ser muito empático, principalmente, no que dizia respeito a mim.

Passeei o olhar pela rua, vendo as pessoas passarem felizes e despreocupadas e sorri, me dando conta de que toda cidade de interior é assim, ninguém tem muito com o que se preocupar. Não que não tenham problemas, mas é que levam a vida com mais calma e tranquilidade. Não é a correria das metrópoles.

Continuei assim por um tempo, o meu picolé já havia derretido completamente e atirei o palito na lixeira ao lado do banco em que nos encontrávamos. Os pensamentos flutuando em minha cabeça entre o passado e o presente, trazendo-me de volta os antigos medos, as dores que pensei ter esquecido e o desejo de não mais senti-las.

Então, a vi.

Ela ia passando tranquilamente do outro lado da rua. Fiquei completamente imóvel. Paralisada mesmo. Meu peito parecia querer explodir de emoção.

Como era possível que ainda ela continuasse tão linda?

Ela cruzou a rua e veio em nossa direção, a longa cabeleira negra e cacheada balançando às suas costas, aquele mesmo sorriso encantador nos lábios, os mesmos olhos cinzas simpáticos. Ela foi chegando mais e mais perto e meu coração começou a bater cada vez mais rápido.

Henrique, percebendo meu estado, me deu uma cotovelada.

— Ai! — reclamei.

— Fecha a boca. Vai querer um babador? — Me olhou sério. — Como é possível que depois de anos você ainda tenha essa mesma reação quando a vê?

Não consegui pronunciar nada em resposta, pois estava nervosa demais. Minhas mãos tremiam e o ar fugiu de meus pulmões por alguns segundos. Ele tinha razão e eu também não conseguia entender como, depois de tantos anos, ela ainda tivesse esse efeito sobre mim.

Ela parou à nossa frente e mordisquei o lábio para não me trair.

— Boa tarde, Henrique. Quanto tempo! — disse ela, ampliando o sorriso, e meu coração se desmanchou dentro do peito.

Ele levantou e a abraçou rapidamente.

— Hellena, está mais linda do que nunca! — afirmou, e permaneceu com o braço envolto na cintura dela, enquanto eu o fuzilava com os olhos através dos meus óculos escuros.

Conversaram por alguns minutos e aproveitei para observa-la melhor. Não usava aliança, então ainda era solteira. Será que tinha namorado? Doze anos e o bichinho do ciúme e da inveja me corroeu por dentro com a ideia dela ter alguém.

Os anos só lhe fizeram bem, estava ainda mais bela do que me lembrava. Meu coração se contraiu dentro do peito, angustiado pelas lembranças doloridas e o amor não correspondido que nunca pude lhe declarar olhando em seus olhos.

De vez em quando, ela me olhava com o canto do olho, evidentemente curiosa com a minha presença a observá-los em silêncio e, como Rick não havia manifestado interesse em me apresentar, perguntou:

— Não vai me apresentar sua amiga?

Ele corou violentamente, envergonhado, obviamente procurando uma saída que não estava lá. Eu corei, decepcionada por ela não ter me reconhecido. Mas concluí que havia sido melhor assim, teria ficado com vergonha se ela o tivesse feito e não saberia como agir.

Rick pigarreou visivelmente incomodado.

— Esta é a minha amiga… — parou, visivelmente da dúvida de como deveria terminar a frase e dirigiu o olhar para mim, em busca de socorro.

Hellena sorriu para mim e se voltou para ele.

— Sei, sua amiga. E a sua “amiga” tem nome?

Me perguntei como ele podia ter reclamado do meu congelamento, quando ele mesmo havia se colocado em situação semelhante.

— Jéssica, meu nome é Jéssica. — Menti, tentando dar firmeza a voz. Fiquei de pé e estendi a mão para ela que a apertou por um tempo longo demais, no qual meu coração quase parou.

Me observou por um longo segundo inclinando a cabeça em assentimento.

— É um prazer conhece-la, Jéssica.

E virou-se para ele, dizendo:

— Bem, foi muito bom te ver, Rick. Agora, se vocês me desculparem, tenho que voltar ao trabalho. — E foi saindo com seu passo lento e cadenciado.

Rick pôs as mãos em meus ombros, enquanto pousava um olhar sério e um pouco triste em mim.

— Pensei que, depois de tantos anos, você já a tivesse esquecido. Mas, pelo modo que ficou, vejo que não.

Tentei sorrir, mas estava desconcertada demais para fazê-lo. Ele tinha razão, ainda a amava. Ela foi meu primeiro amor, minha razão de viver e nunca sequer me notou até o dia em que meu pequeno mundo de desejos e palavras veio a baixo.

Caminhamos em silêncio até o local em que havia estacionado meu carro e, antes que entrasse no veículo, ele me chamou.

— Você não precisa ficar em um hotel na cidade vizinha. Sempre será bem-vinda em minha casa. Você também tem parentes aqui.

Sorri.

— Obrigada, Rick, mas não quero incomodar. Além de você, não tem mais ninguém nesta cidade que queira visitar. Além disso, acho que a sua noiva não ficaria feliz em saber que você está hospedando uma mulher em sua casa. Não quero lhe causar problemas.

— Mas, você não é qualquer mulher. É a Cris, a minha irmãzinha!

Sorri, agradecida pelo “irmãzinha”. Sempre fomos como irmãos mesmo e jamais conseguiria enxerga-lo de outra maneira, embora muitas pessoas imaginassem que nutria uma paixonite por ele na adolescência. Como vieram a descobrir, um pouco antes que partisse daquela cidade, a pessoa que habitava meu coração era Hellena.

O olhei com carinho, mas deixei claro nesse olhar que não cederia. Ele, que sabia me ler como ninguém, percebeu isso.

— Está certo. Não vou mais insistir. — Deixou um suspiro resignado escapar. — É muito cabeça dura.

Vagou o olhar pela rua por um instante.

— Esqueça o passado, Cris. Você sofreu, deu a volta por cima. Agora, seja feliz.

— Acha que não sou feliz? — questionei, surpresa.

— Não foi o que quis dizer. Mas, pelo o que vi lá na praça, você ainda não esqueceu Hellena e isso ainda vai te destruir um dia.

— Já me destruiu uma vez. Lembra?

— Sim, lembro. E não quero que isso aconteça de novo. — deixou um sorriso triste vir aos lábios.

Um outro silêncio constrangedor caiu entre nós por alguns minutos até que ele o quebrou. Me olhava sério, as mãos nos bolsos da calça, a postura ereta.

— Cris, Hellena é uma pessoa maravilhosa. É encantadora e gentil, é sempre muito alegre e simpática com todos, mas não é lésbica. E, além disso, você já sofreu o pão que o diabo amassou por causa dela.

— É uma maneira de se definir — reconheci azeda.

Ele encolheu os ombros.

— Sei que é duro o que vou dizer, mas ela, provavelmente, nem lembra de você.

Sua última frase me acertou como um soco no estômago, mas sabia que, outra vez, ele era o dono da razão. Dei-lhe um beijo no rosto após um abraço longo e apertado, entrei no carro e arranquei em direção a estrada sentindo um misto de raiva e pena de mim mesma.

***

Quando cheguei ao hotel, fui direto tomar um banho. Queria lavar minha alma e apagar a presença de Hellena nela, mas era impossível.

Cansada, me atirei na cama, ainda enrolada na toalha. Queria dormir. Tarefa impossível, pois Hellena não saía de meus pensamentos.

Pensava em como era linda e em como ainda mexia tanto comigo, mesmo depois de doze anos sem nos vermos.

Jogada na cama, observava a noite através da janela que havia deixado aberta. Um vento frio invadiu o quarto, trazendo o cheiro de terra molhada antes dos pingos da chuva começarem a tocar o teto do hotel. Os céus pareciam estar chorando as lágrimas que, havia muito tempo, secaram em mim.

O relógio de pulso, que repousava sobre o criado mudo, indicava que era um pouco mais de seis da tarde e fechei os olhos e, como se o tempo não houvesse passado, as lembranças me assaltaram com impetuosidade.

Me vi sentada no banco da praça com meu diário em mãos. Escrevia um poema para ela, para Hellena. Ela sempre foi linda desde a infância e quando cresceu e o seu corpo tomou as formas de uma mulher, havia muito tempo meu coração já sabia que a amava, não apenas por sua beleza, mas por seu olhar, por seu coração, por sua doçura.

Nunca tive muitos amigos. Na verdade, naquela época, só tinha o Rick. Ele era considerado um dos rapazes mais bonitos da escola e sempre ficava com as meninas mais bonitas, mas nunca ficou com Hellena, pois sabia de meu amor por ela e respeitava isso. Todas com quem ele saía, invariavelmente, questionavam nossa amizade e insinuavam que meus sentimentos por ele eram mais profundos do que demonstrava.

Ele ria, dando de ombros ao me contar essas coisas. Mas, algumas iam mais além. Algumas namoradas ciumentas exigiram que se afastasse de mim.

Quando isso acontecia, elas nunca mais voltavam a ficar com ele, pois deixava claro que se não podiam aceitar a sua melhor amiga, aquela que considerava uma irmã, então não havia espaço para elas em sua vida.

Ao contrário de mim, Hellena tinha dezenas de amigos e os que não eram, o desejavam ser.

Ela era linda, eu era um patinho feio.

Ela sempre muito habilidosa em tudo que fazia, eu sempre desengonçada e atrapalhada.

Ela sempre rodeada de gente, eu sempre sozinha ou com o Rick.

Ela sempre alegre, eu sempre triste e pensativa. Todos a amavam, ninguém me queria.

Até mesmo minha família tinha dificuldade em aceitar meu jeito de ser. Éramos uma o oposto da outra. Em tudo contrastávamos e eu a amava e ela não sabia, até aquele dia…

Era a última semana de aulas. Depois dela, a turma iria se separar definitivamente, alguns iriam fazer faculdade, outros trabalhar, ir embora da cidade procurando dar um outro rumo as suas vidas. Enfim, iriam viver da maneira que lhes agradasse.

No meu caso, pretendia ir embora, entrar numa boa faculdade, conseguir um bom emprego, talvez fazer novas amizades, encontrar alguém que me amasse…

Tentava me iludir e, além de mim, só Rick sabia os reais motivos de ter insistido tanto com meus pais para ir embora quando terminasse o ensino médio. Não suportava mais ama-la, saber que ela sequer me notava e que jamais me corresponderia. Era quase sufocante e decidi dar uma chance a mim mesma de encontrar um pouco de felicidade longe dali e tentar esquecê-la.

Naquela quarta-feira, acordei preocupada. Na verdade, mal havia dormido, pois meu diário havia sumido no dia anterior. O havia procurado em todos os locais possíveis, mas não havia sinal dele. A angústia e o medo de que alguém descobrisse os meus segredos mais íntimos começaram a me dominar. A contragosto, me permiti ir para a escola.

Encontrei Rick no caminho e seguimos juntos, como fazíamos todos os dias.

— Relaxa! Você deve ter guardado junto com algum de seus livros e não se lembra. — Disse ele, tentando me acalmar.

— Para, Rick! Eu o perdi, é um fato. O que me angustia não é tê-lo perdido, mas o medo de que alguém o leia e descubra meus sentimentos por Hellena. Já imaginou? Nunca mais iria conseguir olhar para ela e…

— Ei, calma! Vamos encontrar seu diário. Vou te ajudar depois da aula. Iremos revirar sua casa e deixa-la de pernas para o ar se for preciso — riu e piscou o olho para mim e isso me trouxe um pouco mais de calma.

Chegamos à escola no momento exato em que era dado o sinal para o início das aulas. Como sempre, a turma foi entrando às pressas na classe, alguns rindo e brincando, outros em silêncio. Foram se acomodando em seus respectivos lugares e se dando conta de alguns papéis sobre as carteiras.

Assim que sentei na carteira, empalideci. Sobre todas as carteiras se encontravam cópias das páginas do meu diário.

Comecei a tremer, descontroladamente.

Todos os rostos começaram a se voltar para mim, alguns com olhares acusadores, outros rindo e ainda tinha os olhares de nojo. Mas, o pior de todos os olhares, foi o que recebi de Hellena. Um olhar indecifrável, mas que deixava transparecer um pouco de surpresa e pena.

Pena!

Isso era tudo que eu menos queria ver em um olhar dela para mim.

Nervoso, Rick pegou minha mão e me puxou em direção a porta.

— Vem. — Mas alguns garotos nos barraram a passagem.

— Calma, aí! Onde pensam que estão indo? — Perguntou um deles. Seu nome era Diego, na ocasião, era o namorado de Hellena.

Diego subiu em uma cadeira e começou a ler, em voz alta para a turma, tudo o que havia conseguido pôr em palavras sobre meus sentimentos por Hellena. Por um longo minuto, em que Rick tentou chegar até ele para impedi-lo de continuar, mas foi barrado por alguns garotos, Diego debochou de minhas palavras e do meu amor. Rindo, ele desceu da cadeira e foi até Hellena.

— É isso que você quer? — A beijou rapidamente na boca, enquanto ela continuava imóvel com os olhos presos em mim. Me sentia morrer a cada instante.

Diego sorriu, divertido, ao perceber meu desconforto e ignorou minhas lágrimas, voltando a ler em voz cada vez mais alta:

“Nunca saberei a razão de amá-la tanto, pois tenho plena consciência de que em todos os anos que dividimos a mesma sala de aula, coincidência ou não, sempre estudamos juntas, poucas foram as vezes em que ela me desejou um bom dia ou fizemos uma atividade juntas.

Nunca fomos amigas, nunca o tentamos ser.

No entanto, a amo. A amo mais que a minha própria vida e me parte o coração saber que jamais serei notada por ela. Talvez seja melhor assim, já me dói demais amá-la em segredo, pior seria se ela soubesse, pois sei que jamais me corresponderia…”.

 

Chorava mais a cada palavra que ele pronunciava. Hellena continuou emudecida. Nossos colegas riam com gosto. Meus sentimentos, para eles, não passavam de uma piada e isso estava me matando.

Rick teve que bater em dois garotos para que conseguíssemos sair da sala.

Nos corredores foi ainda pior. Quem quer que tivesse feito aquilo, havia deixado cópias em todas as salas. Os alunos estavam todos nos corredores rindo à nossa passagem.

O que aconteceu depois disso foi inevitável. Henrique me levou para sua casa e eu chorei em seu colo até que minhas lágrimas secassem. Como a cidade era pequena, não demorou muito para que todos os moradores soubessem do meu amor por Hellena. O mais difícil foi enfrentar os meus pais e ver a decepção em seus olhos. No fim, acabaram se conformando, afinal, não deixaria de ser sua filha, eles me aceitando ou não.

Não voltei mais para escola e evitei sair de casa durante todo o período das férias, em parte, por medo de encontrar Hellena e receber outro olhar de pena que me magoou profundamente. Quando o fazia, recebia alguns olhares atravessados, piadinhas e até alguns xingamentos, entre outras coisas. Henrique, que já era uma das pessoas mais importantes da minha vida, tornou-se minha força, o meu pilar de sustentação.

De Hellena, nada soube e nem a tinha visto até certa tarde, quando ouvi algumas meninas conversando na rua.

No dia seguinte, iria embora para a capital do estado. Minhas malas já estavam prontas, já havia me despedido de alguns familiares e foi voltando da casa de um deles que decidi me sentar ali e me despedir silenciosamente daquela cidade pequenina e insignificante que, no entanto, foi meu lar e, apesar dos acontecimentos e hostilidades, eu amava.

Havia adiado a data de minha partida por causa da festa de aniversário de Rick, pois ele fazia questão da minha presença, embora soubesse que seria doloroso para mim. Ele insistiu muito e, como o amava como a um irmão, acabei cedendo.

Estava sentada em baixo de uma árvore na calçada na metade do caminho para minha casa. Aproveitava aquele momento para guardar aquela cidade em minha memória, seus cheiros, seus sons e vista. Sentia tudo fluir em mim como o sangue em minhas veias, preenchendo meu coração com a saudade.

Como o tronco da árvore em cuja sombra me abrigava era muito grosso, fiquei encoberta e longe das vistas das garotas. Todas haviam sido minhas colegas de classe e reconheci suas vozes quase que imediatamente, mas não dei muita atenção ao que diziam até que ouvi o nome de Hellena ser pronunciado e, logo em seguida, o meu.

— Vocês vão à festa de aniversário do Henrique? — Vitória, uma morena de estatura mediana, sorriso um tanto quanto debochado e olhos um pouco puxados, perguntou.

Samara e Angélica, gêmeas idênticas, de olhos grandes e cílios longos, cabelos tingidos de ruivo, responderam quase que em uníssono:

— Claro.

— E você? — Quis saber Samara.

— Mas, é claro que sim! Não perderia essa festa por nada! — Riu.

— Por que tanta animação? Pensei que você e Henrique estivessem meio brigados desde que ele te deu o fora.

Vitória riu alto. Não gostava muito dela, afinal. A achava metida e arrogante, mas nunca questionei os motivos de Rick terminar o namoro com ela.

— Bem, nós nos falamos, sim. O suficiente para ele me convidar para a tal festa. Ainda gosto dele, é verdade. Mas o motivo de querer ir à festa é outro.

— E qual seria? — Angélica perguntou, curiosa.

— Ah, eu quero ver se a idiota da Cristiane vai à festa depois que todo mundo descobriu que ela é afim da Hellena! Coitada! Cheia de aspirações de namorar Hellena. — Gargalhou e me senti o mais insignificante dos seres.

Parei de prestar atenção na conversa delas no momento em que avistei Hellena vindo em minha direção. Meu coração, aos pulos, parecia querer sair do peito. Meu rosto começou a arder e minhas mãos a tremer.

Ela se aproximou devagar, os olhos fixos em mim e pareceu tão incomodada quanto eu. Parou diante de mim pronunciando um “Oi”, quase sussurrado, que comecei a responder, mas o som da voz de Samara se insinuou entre nós quando perguntou:

— Por que você não gosta da Cristiane? Que foi que ela te fez?

Como Hellena veio pelo lado da calçada em que me encontrava, elas não a viram se aproximar. Ela também pareceu surpresa ao ouvir a pergunta e, calada, pôs-se a escutar a resposta de Vitória.

— Que foi que ela me fez? Nada! Ou melhor, quase nada.

— Como assim?

— Ela foi responsável pelo Rick ter terminado nosso namoro. Eles estavam sempre juntos, ela ligava e ele logo me deixava para ir atrás dela. Cheguei a brigar com ele por causa dessa amizade, disse coisas horríveis dela. Falei tudo que estava entalado em minha garganta e ele terminou comigo por isso. Se ela não fosse tão feia, poderia jurar que ele é apaixonado por ela. E, até ler o diário, jurava que ela era louca de amores por ele. Imaginem a minha surpresa ao descobrir que aquela idiota é totalmente apaixonada pela Hellena!

Meu rosto ardeu mais e meus olhos cruzaram com os de Hellena que estava tão ruborizada quanto eu. Queria fugir de seu olhar e daquelas palavras, mas minhas pernas se negaram a partir.

— Até ler o diário?

— Sim.

— Mas, só encontramos algumas páginas àquele dia. Como você pôde ler o diário se… Não me diga que foi você!

— Isso mesmo! — Riu.

— Mas, como?

— Uma tarde fui até a casa do Rick pegar um casaco que havia esquecido. A mãe dele disse que ele havia saído com a filhotinho de cruz credo para ir até a padaria, mas que eu poderia entrar e procurar. Fui até seu quarto pegar o tal casaco e encontrei a mochila dela. A curiosidade bateu. Quando encontrei o diário, pensei que encontraria ali a prova de que ela era apaixonada por Rick, mas o que descobri me surpreendeu e me deu uma ideia. Já que ela havia sido a culpada pelo fim do meu namoro, resolvi me vingar. Tirei cópias de algumas páginas do diário e, alguns minutos antes dos portões do colégio serem abertos, pulei o muro dos fundos e entrei nas salas deixando as cópias. Assim, quando todo mundo chegou… O resto vocês já sabem. Me diverti muito vendo aquela idiota receber o que merecia.

Já não conseguia conter as lágrimas e, para minha surpresa, Hellena diminuiu a distância entre nós e me envolveu em um abraço forte e silencioso, enquanto Vitória destilava seu veneno contanto o que havia aprontado.

Escondi meu rosto em seus cabelos, triste e decepcionada com tudo aquilo. Me perguntava silenciosamente a razão de inspirar tanto ódio em alguém a quem jamais fiz mal. Sufoquei um gemido dolorido, quando ela apertou um pouco mais os braços a minha volta e percebi que estava tremendo.

De certo modo, estava feliz por estar nos braços de Hellena naquele instante, mesmo sabendo que o motivo disso era a pena que sentia de mim.

— Eita, Vitória, você é terrível. — Samara afirmou, rindo.

— Quero morrer sua amiga. — Angélica completou. — Mas, poxa, pensei que você fosse amiga da Hellena. Essa história toda também prejudicou ela. O pessoal fez tanta piadinha com a coitada, isso sem falar naquele arranca rabo entre ela e o Diego que culminou com o fim do namoro deles.

— Hellena e eu nunca fomos muito amigas, mas não era minha intenção prejudica-la. Apenas aconteceu. E, se querem saber, me sinto realizada por ter me vingado daquela ridícula.

Nesse momento, Hellena afrouxou o abraço e se afastou de mim. Seus olhos cinzas fixaram os meus por alguns segundos, e estavam marejados e me pareceram intempestivos. Então, ela saiu do nosso abrigo permitindo-se ser vista por elas.

— Então, você acha divertido brincar com os sentimentos alheios, Vitória? — Questionou e pude sentir a raiva em suas palavras.

As três se voltaram para ela, assustadas por sua aparição repentina e seus olhos se arregalaram mais ao me verem surgir logo atrás dela, ainda enxugando as lágrimas.

Hellena se adiantou em sua direção e eu não vi ou ouvi mais nada daquela conversa, pois havia me afastado correndo e tentando segurar as lágrimas que teimavam em molhar minha face.

Entrei em casa às pressas e me trancafiei em meu quarto para chorar. Só saí de lá porque Henrique ameaçou arrombar a porta caso não saísse para ir à festa com ele.

— Para, Rick! Já estou saindo. — Escancarei a porta no segundo seguinte. Ele me encarou por um segundo, no qual deixou claro seu desagrado pelo confinamento voluntário.

— Até que enfim!

Me analisou com seriedade.

— Hum, gatinha!

Revirei os olhos para ele e o empurrei para o lado a fim de obter passagem para o corredor.

— Você ainda não aprendeu a mentir. Agora, vamos logo!

Ele, praticamente, me arrastou até sua casa.

Amava Henrique, mas estar ali era torturante para mim. Todos fingiam me ignorar, mas me observavam de rabo de olho. Alguns cochichavam e riam olhando para mim, outros, simplesmente faziam questão de esbarrar em mim e me olhar de cara feia. Mas, a maioria dos presentes estava mais interessada em dançar. Permaneci sentada ao lado da janela, observando a lua que brilhava solitária no céu escuro, assim como eu entre tantas pessoas.

Vaguei o olhar até o meio da sala, Rick já estava na terceira cerveja e segunda ficante da noite. A garota se pendurava no pescoço dele como se fosse um náufrago a uma boia de resgate. Por um instante, nossos olhares se cruzaram e largou a menina da vez, vindo sentar-se ao meu lado.

— E, então?

— E, então o quê? — Respondi, entediada.

— Em que tanto pensa?

— Em nada. Apenas observando a lua.

— Sei. Caso você não tenha notado, estamos em uma festa. Que tal dançar um pouco? — Sorriu e me estendendo a mão.

— Não, Rick. Já é deprimente estar aqui com todos esses olhares acusadores a me espreitar e você ainda quer que eu me humilhe mais dançando contigo?

— Quer dizer que é humilhação dançar com o seu amigo? — Soou ofendido.

— Não é isso! Mas, confesse, me fez esse convite porque está com pena.

Ele bem que tentou desviar o olhar e negar, mas era evidente.

— Te amo, cara, mas não tente fazer isso novamente. É ainda mais doloroso vindo de você.

Ele encolheu os ombros, arrependido.

— Desculpe, só queria te ver alegre em uma data que é importante para mim.

— Tudo bem. — Dei de ombros. — Se quer dançar, irei dançar, mas só vou porque o aniversariante é o meu melhor amigo e eu sou a única garota da festa com quem ele não dançou ainda.

Ele sorriu e me arrastou para o meio da sala onde todos se acotovelavam embalados pelo som de uma música de sucesso na época.

Vi, com desprazer, que Diego, agora ex-namorado de Hellena, também estava na festa.

— Por que você convidou esse babaca do Diego? — Questionei.

Rick se afastou um pouco para mirar meu rosto. Era muito mais alto que eu e senti seus músculos, definidos pelo trabalho na fazenda do pai, se tencionarem.

— Desculpe. Meu pai é amigo do pai dele, como você sabe. Apesar de ter me recusado, o meu velho, me obrigou a convidá-lo. Disse que fomos criados como irmãos e, apesar de gostar muito de você, não há motivo para tomar suas dores. — Ele estava completamente sem graça.

Respirei fundo. De fato, seu pai tinha razão. O problema de Diego era comigo, não havia razão para Rick não o convidar.

— Relaxa. — Falei tentando sorrir. — Mas, você podia, ao menos, ter me avisado.

— Pra você usá-lo como motivo para não vir?

Mordisquei o lábio, ele estava certo. Não teria ido se soubesse.

— Vamos só ignorá-lo e curtir a sua festa — pedi.

Ele sorriu em assentimento e me puxou para mais perto. Mas, Diego não tirava os olhos de mim, enquanto esvaziava outro copo de cerveja. Desviei o olhar do dele e vi Hellena.

Ela acabara de entrar na festa, linda em um vestidinho preto quase sem decote na frente, mas que deixava parte de suas costas nuas. Cabelos soltos, os cachos tocando-lhe a cintura. Um sorriso discreto nos lábios. Prendi a respiração quando seus olhos se fixaram em mim e, outra vez, senti o rubor tomar conta da minha face, principalmente, porque desejei estar dançando com ela em vez do meu amigo.

Diego foi ao seu encontro. Estava bêbado. Segurou seu braço com força e começaram a discutir. Palavras que, pela expressão em seus rostos, eram duras e com o intuito de ofender e ferir. Ele apertou seu braço com mais força, pois a expressão de dor no rosto dela tornou-se evidente. Ela gritou com ele, um grito que foi abafado pela música alta, mas suficientemente alto para chamar a atenção de quem estava próximo.

E os convidados, lentamente, começaram a parar de dançar ou beber para observa-los. Meu coração batia descompassado de angústia por ela.

— Rick. — Falei em seu ouvido, ele estava de costas para eles, por isso ainda não havia visto o que acontecia.

— Oi. — Respondeu.

— Ajude a Hellena. — Pedi.

— Como assim? — Se afastou para mirar um olhar confuso em mim.

Parei de dançar e o fiz voltar-se para a entrada, onde estavam. Imediatamente, ele caminhou até eles e afastou Diego dela. Alguém parou a música e me aproximei do círculo de pessoas que já estava sendo formado em volta deles.

— Que é isso, cara? Me larga! — Diego berrou.

— Não vou largar coisa nenhuma. Não esqueça que você está na minha casa e não quero confusão aqui.

— Porra, tô conversando com a minha namorada e você não tem o direito de se meter!

— Eu não sou mais sua namorada, Diego! Me deixa em paz!

— Ah, não! Não sou mais, só porque você quer! Que é? Prefere essa daí?

Ele apontou para mim e todos os rostos o seguiram, mas o único que vi foi o de Hellena que ficou ruborizado.

— Você é um idiota! Não sei como não percebi isso antes! — Ela lhe deu às costas e foi embora.

Diego ainda esperneou e tentou se libertar da prisão que Rick lhe impunha passando os braços em volta de seu corpo, imobilizando seus braços. Mais dois rapazes se adiantaram para ajudar Henrique que empregava todas as suas forças na tentativa de impedi-lo de sair atrás de Hellena.

Aproveitando-me da confusão que se instalou entre ele e Rick, fui atrás dela.

Estava preocupada com ela. Não sabia o que diria, mas queria saber se estava bem. Assim que virei a esquina a avistei encostada a uma árvore, chorando. Aproximei-me, temerosa de sua reação à minha presença. Mas, para minha surpresa, ela me abraçou, enterrou seu rosto em meu ombro e chorou por longos minutos.

Curiosamente, havíamos invertido os papéis daquela tarde.

Não vou mentir, estava de coração partido por ter a garota dos meus sonhos chorando em meus braços, mas, por outro lado, me encontrava feliz por ser em meus braços que ela estava chorando.

Ela parou, afastou-se, enxugou as lágrimas, me olhou com doçura e lhe ofereci a mão que ela aceitou de pronto, me convidando com o olhar a caminhar ao seu lado.

Nenhuma palavra foi dita.

Nenhum som quebrou o silêncio que havia entre nós naquele momento e me permiti curtir aquele pedaço de sonho, sentindo o calor da sua mão na minha e a carícia da brisa que nos alcançava.

Então, chegamos ao portão de sua casa.

Tentei, debilmente, falar algo. Queria aproveitar aquele momento para lhe confessar meu amor olhando em seus olhos. Mas, nenhum som saiu de minha garganta e as palavras, que sempre soube usar com maestria com o auxílio de uma caneta, me abandonaram.

Ela ergueu sua mão e acariciou minha face, depois se curvou e me deu um beijo no rosto, mas tão próximo a boca que, ao se afastar, nossos lábios roçaram levemente. Foi o suficiente para me fazer sentir nas nuvens.

O portão rangeu quando o abriu, pronunciando um “tchau” e tudo que escapou de meus lábios foi:

— Adeus.



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