Os Estranhos Casos de Elizabeth Evernood e Margareth Blindwar
Terceiro Caso: Deus Onipresente
Texto: Carolina Bivard
Ilustrações: Táttah Nascimento
Revisão: Naty Souza e Nefer
A detetive Margareth Blindwar não participava da força-tarefa que Greendwish criara para resolver o caso do assalto ao banco nacional. Eles estavam estagnados na investigação e, embora ela os ajudasse, não havia participado das primeiras averiguações e o comissário a colocara no apoio.
A equipe estava crescendo e mesmo que a detetive ainda sentisse que a tratavam com uma deferência distinta dos demais, todos consideravam as suas opiniões. Era uma fase inesperadamente agradável, após três anos infernais ao lado de Stain.
O prefeito, depois que solucionaram do caso da família Evernood que ficara vinte anos estagnado, decretara que o novo departamento tivesse um local especial dentro da comissaria, para que a Crimes Graves pudesse atuar mais livremente e sem interferência de outros delitos corriqueiros que aconteciam pela cidade.
Ela sentia a tensão dentro do prédio toda vez que chegava ao trabalho, pois precisava passar pelo departamento comum para chegar até a ala designada para o seu setor. Os detetives e policiais que foram destacados para a Crimes Graves eram tratados com despeito e inveja. Havia uma ruptura moral dentro do distrito policial.
Os outros detetives do departamento sentiam-se incomodados, mas ela não. Passara por todo aquele desprezo e, agora, não precisava mais olhar o dia inteiro para os rostos daqueles que a menosprezavam.
— Departamento de Crimes Graves, detetive Blindwar falando.
Margareth atendeu o telefone com a frase padrão.
— Meg, sou eu, Beth.
— Oi, Beth! Está com saudades?
Margareth brincou com a amiga, pois elas haviam se visto na noite anterior. Tinham jantado em um restaurante, nas cercanias da cidade, de um amigo de Elizabeth Evernood. A noite havia sido agradável e, cada vez mais, Margareth se rendia aos sentimentos que a detetive particular despertava nela.
Aquela noite que dormira com Elizabeth, após a solução do assassinato dos pais dela, fora decisiva para que Margareth não lutasse contra o que sentia. Passara parte da noite vendo a amiga dormir, embalada pela segurança de sua presença, até dormir como há muito não fazia. Era como se dormir ao dela fosse o certo para sua vida. Embora soubesse que não poderia se abrir com a detetive particular e, muito menos contar a alguém, também não se privaria de seus sentimentos.
Era certo que se questionava, entretanto, era tão prazeroso quando estava com Elizabeth que deixou de se condenar. Apenas preencheria a alma com a alegria de estar com ela.
— Preciso de você… e acho que precisaremos do seu departamento.
A voz baixa e entristecida de Elizabeth do outro lado da linha despertou a detetive para um estado de prontidão.
— O que houve?
— Venha para a Igreja da Nossa Senhora do Sagrado Coração com alguns policiais e, se possível, a perícia. Houve um assassinato aqui. Darei detalhes mais precisos, quando chegar. Fui chamada pelo Monsenhor Benoit.
— Certo. Aguarde que logo estarei aí.
Despediram-se e Blindwar acionou Spencer. Gostava do garoto verdadeiramente e o incentivava a se candidatar para um cargo de detetive. Infelizmente era uma posição que precisava de aprovação da comissaria, antes de mais nada. Felizmente, nunca puderam falar dela quando entrou, pois os outros detetives haviam passado pelo mesmo crivo, ou seja, indicação. Mesmo que tivesse feito todo o treinamento policial, o principal era a indicação ao cargo, até mesmo para entrar no treinamento.
— Vamos, Spencer. Temos um caso grave.
— A senhorita não vai falar com o comissário?
— Ele está numa reunião com o prefeito, por conta do assalto ao banco. Falarei com Dashwood. Pelo que entendi da ligação, não será algo que eles irão querer explanar aos quatro ventos.
Dashwood e Reynold estavam sendo pressionados pelo desfecho do caso do banco e preferiram que ela fosse sozinha, acompanhada de Spencer, Smith e a perícia.
***
Naquela manhã, não houve serviços consagrados da igreja. Ela fora trancada, com um aviso na porta. Blindwar, os policiais e a perícia entraram pelos fundos, através da porta paroquial. A sacristia estava fechada e Margareth pediu para que os outros a esperassem. Queria encontrar Elizabeth e conversar com ela a sós, antes de tudo.
Não havia ninguém circulando pelo local, ou mesmo à vista. Seguiu até o interior da igreja. Viu Elizabeth sentada em um dos bancos, com a cabeça baixa e as mãos cruzadas sobre a testa. Aproximou-se devagar e sentou-se ao lado dela.
— Ele era um bom homem. – Elizabeth, por fim, falou, após um momento. – Ele era dedicado à sua fé e um bom homem. – Reafirmou. – O padre Javier não era daqui. A igreja católica faz dessas coisas. Permutam seus sacerdotes entre lugares… países até.
— Eu não o conheço bem. Sou anglicana.
— Como a maioria daqui, mas isso não importa. Ele está morto na sacristia. Foi assassinado. Então, não o conhecerá.
Elizabeth inspirou fundo, endireitando-se e olhando para o altar, além do púlpito, encarando o “Salvador”.
— O padre diria que há um motivo para tudo. Para mim, não há motivo na covardia!
Falou enraivecida, levantando-se do banco.
— Vamos. Tranquei a porta para que ninguém entrasse.
***
Margareth observava os detalhes do local, antes mesmo da perícia entrar em cena. Rodeou o corpo, tomando cuidado para não pisar em nada relevante e reparou bem na posição que o sacerdote estava.
— Foi envenenado. – Margareth concluiu. – A espuma branca na boca e os lábios arroxeados apontam para isso.
O padre estava debruçado sobre a própria mesa.
— Foi o que observei quando cheguei aqui; e o Monsenhor Benoit também. Por isso ele me contatou, pois sabia que eu era conhecida do padre Javier. Queria também discrição no caso, lógico. A igreja nunca quer ser envolvida em escândalos.
— E alguma instituição religiosa quer? Nenhuma delas. – Margareth pontuou. – Seja Católica, Anglicana, Judaica, Muçulmana…
— … Hinduísmo, Budismo. – Elizabeth acrescentou. — Conheci várias religiões, ao longo dos anos. Há dois anos, um monge hindu foi morto por um devoto da própria religião. O maior sacrilégio para um hindu é tirar uma vida. Por aí, você pode ver. Todas as religiões têm seus dogmas, porém o ser humano os distorce, ao seu bel-prazer.
— E o Monsenhor, onde está? Queria falar com ele. — Margareth questionou.
— Está enviando um telegrama para a diocese, mas falou que estaria aqui assim que liberasse.
— Vou mandar os peritos entrarem e o policial Smith de volta à comissaria. Greendwish não vai gostar do que temos aqui…
Margareth interrompeu a fala, vendo que se dessensibilizara em relação a dor de Elizabeth, com a perda do amigo.
— … É… quero dizer que ele achará o caso complexo.
Elizabeth sorriu desalentada, e ao mesmo tempo, encantada com o remendo desajeitado de Margareth, para consertar a fala seca que utilizou.
— Não se preocupe comigo. Eu conhecia o padre, porque ele me importunava, quando vinha à igreja reclamar com o “patrão” dele. Não o conhecia intimamente, no entanto, via que era um homem correto e muito dedicado à sua fé. Só lamento que pessoas boas como ele, morram dessa forma, enquanto outras… ah, deixe para lá. Não importa se quem morre é bom ou mau.
— Então, vamos pelo menos dar a ele a justiça.
— Saiba de uma coisa, Meg, ninguém me tirará deste caso. Mesmo que Greendwish intervenha, continuarei atuando. Monsenhor Benoit me contratou. Esse caso é meu, mesmo que a polícia não queira que eu atue.
— Não se preocupe quanto a isso. Greendwish conhece sua competência. Mesmo que haja algum problema legal, eu confio em você.
Margareth deu a ela a garantia de que, se houvesse algo que a impedisse legalmente, ela manteria a detetive particular no caso, informando-a de tudo.
***
O monsenhor Benoit estava nervoso e atordoado.
— Eu já falei que não sei, detetive. Vim hoje cedo para falar com o padre Javier, a respeito da feira que faremos no domingo em “Graças a Santa Helena”. A igreja estava fechada, ainda, pois combinamos de nos falar antes da missa de hoje. Entrei pela porta paroquial…
— … O senhor tem a chave da igreja? – Margareth interpelou.
— Tenho a chave de todas as igrejas que pertencem a minha Diocese, detetive. – Ele a olhou ensimesmado. – Está desconfiando de mim, senhorita?
— Não se sinta pressionado, Monsenhor. – Elizabeth intercedeu. – A detetive Blindwar precisa fazer estas perguntas, mesmo que saiba que o senhor nada tenha a ver com o assassinato.
Evernood não falara exatamente a verdade, pois sabia que não poderiam descartar ninguém de imediato. Contudo, queria tranquilizar o Monsenhor, visto que ele estava abalado com a perda do pároco. Ela reparou na forma como o policial Spencer anotava a tudo nos mínimos detalhes. Finalmente Margareth conseguira respeito e algum apoio entre os membros da corporação.
O Monsenhor se acalmou, inspirando e passando as mãos pelo rosto, para tentar entender um pouco do que ocorria.
— Sabe de alguém que poderia ter desavenças com o padre Javier? – Margareth perguntou.
— Ele era querido pela comunidade mais pobre, o que muitas vezes não agradava a algumas famílias mais proeminentes.
— Por que ele era querido pela comunidade mais pobre?
— Fazia um trabalho diferente de caridade na igreja. Tentava ajudar aqueles que não tinham um trabalho, como posso dizer… normal.
— Ele ajudava párias, é isso? – Evernood interveio.
— Sim. Dava comida a prostitutas velhas que não conseguiam mais sobreviver do corpo, auxiliava meninos e meninas abandonados, que perderam os pais e viviam na rua. Muitos sobrevivendo de pequenos furtos. Tentava tirá-los do círculo de prostituição, também. A maioria deles, quando se veem sem ninguém e passando fome, começam a vender o corpo desde muito cedo.
— O senhor está querendo dizer que, as famílias mais abastadas não gostavam de frequentar uma igreja que era também frequentada por essa classe, é isso? – Margareth questionou.
— Sim. Eu mesmo conversei com ele diversas vezes sobre isso. Muitas pessoas dessa região, abandonaram esta paróquia para frequentar igrejas mais distantes.
— Alguma dessas famílias se mostrou agressiva quanto ao trabalho do padre? – A detetive Blindwar voltou a questionar.
— Eles reclamavam, todavia, não acredito que alguém pudesse matar o padre por conta disso.
— Mesmo assim, gostaria de saber se havia alguém muito incomodado com essa situação.
— Os Turner discutiram com ele algumas vezes. Robert Turner disse que ele se arrependeria de cuidar dessa gente.
— O senhor Turner utilizou estas palavras, Monsenhor?
Elizabeth inquiriu, estreitando o olhar, como se algo a despertasse.
— Sim. Nesse dia eu estava junto, exatamente porque Turner viria falar com o padre Javier, a pedido de outros paroquianos. Ele também falou que aqueles a quem ele ajudava com tanto empenho, um dia se voltariam contra ele. Que o padre não sabia quem eram aquelas pessoas e que nem todos eram pobres coitados. Havia assassinos entre àquela gente.
Conversaram mais um pouco com o Monsenhor. Greendwish havia chegado com mais alguns policiais e se juntou a elas para escutar o fim do interrogatório. Quando liberaram o clérigo, o comissário se voltou para a senhorita Evernood.
— A senhorita já se encontra em condições de voltar à ativa?
— Estou novinha em folha, comissário.
Evernood respondeu displicentemente. Não queria provocar Greendwish, pois ele muitas vezes lhe dera cobertura, contudo, a nova posição na polícia fazia com que ele tivesse que ter um rigor maior. Um deslize qualquer e ele poderia ser destituído de seu cargo.
— O Monsenhor lhe chamou primeiro e sei que não vamos nos livrar de você por conta disso, porém faça um favor a nós e a você mesma. Seja discreta.
— Não me lembro de ter alardeado em minhas atuações, comissário.
Respondeu com certo tom de ironia. Mesmo preocupada com o caso, não pôde deixar de provocar. Era a sua reação normal, frente a atitudes que considerava hipócritas. Greendwish muitas vezes se beneficiara com as suas investigações.
O comissário bufou, entendendo o recado.
— Já que está conosco, qual seria a sua opinião sobre o primeiro passo a tomar?
— Contratar os doutores Hughes para participar da necrópsia. São especialistas em veneno. Nos dariam um parâmetro de que tipo de veneno matou o padre. Fora isso…
— … procurar o senhor Turner. – Margareth acrescentou. – Me parece, pelo que o Monsenhor falou, que ele conhecia o público que o padre auxiliava.
— Faça isso, Blindwar. – O comissário decretou. – Enquanto isso, procurarei esses doutores de que a senhorita Evernood falou. – Olhou para Elizabeth. – Não se vanglorie.
Virou-se e se foi.
Elizabeth não pôde deixar de sorrir, diante da atitude do chefe de polícia. Voltou-se para Margareth e a questionou.
— Não desconfia de Turner?
— Não. Ele é do tipo que ladra, somente.
— Mas acredita que ele saiba de algo.
— Assim como você. As palavras dele pareciam duras, mas no fundo…
— … Eram uma advertência. – Evernood completou. – Também percebi. Estava querendo alertar o padre sobre algo.
Spencer que a tudo observava, se pronunciou pela primeira vez.
— O Monsenhor falou que não havia sido convidado para aquela conversa, mas foi assim mesmo, preocupado com o desfecho… – Balbuciou como se conjecturasse. – Vou com as senhoritas, para dar apoio.
Falou resoluto, arrebatando um sorriso das duas.
***
Tocaram o sino da entrada da mansão Turner e um empregado veio atender. Elizabeth se calou, deixando que Margareth se apresentasse.
— Sou a detetive Blindwar do departamento de Crimes Graves. – Apresentou seu distintivo. – Gostaria de falar com o senhor Turner.
O empregado olhou distintivo e depois, reparou no policial fardado à retaguarda.
— Aguardem um momento, por favor.
Deixou que entrassem no vestíbulo para aguardar e dirigiu-se ao interior da propriedade. Retornou em alguns minutos, conduzindo-as à sala de estar.
***
Saíram em direção ao carro da senhorita Evernood e Edwin as esperava, abrindo a porta do veículo.
— Almoça comigo?
Elizabeth perguntou, antes de entrar no veículo.
— Gostaria muito, mas devo voltar para o departamento. Greendwish vai querer o relatório da nossa conversa com o senhor Turner.
— Posso fazer o relatório, detetive Blindwar. – Spencer se prontificou. – Sei que querem conversar sobre o que senhor Turner revelou.
O tom de entusiasmo, misturado ao constrangimento, em se prontificar a encobrir os passos da detetive, fez com que Elizabeth sorrisse.
— Vejo que o policial Spencer está empenhado em acobertá-la, Meg.
— Bem… é que…
— Não ligue para o que a senhorita Evernood fala, Spencer. Ela gosta de colocar as pessoas em situações constrangedoras.
Voltou-se para Elizabeth que ria mais ainda do rubor que coloriu a face do policial.
— Spencer será um bom detetive e estou o incentivando a requerer uma indicação. Para isso, ele terá que se apresentar mais ao comissário.
— Então vá, Spencer e diga a Greendwish que eu raptei a detetive dele, para averiguar uma informação.
Elizabeth falou, simpática.
— Dê a Greendwish todas as informações que obtivemos com Turner. Fale com ele pessoalmente e não só através de relatórios. É disso que ele precisa. Das informações justas e não de um monte de palavras num papel, onde ele terá que pinçar o que tem importância. Faça isso por ele e garanto que o comissário lhe reparará mais.
— Sim, detetive e… Obrigado.
Spencer foi para a viatura, satisfeito. Tentou manter uma postura profissional, entretanto, via-se que estava feliz com a confiança que a detetive depositara nele.
Margareth entrou no carro e Edwin fechou a porta, entrando pelo lado do motorista.
— Para onde, senhorita Evernood?
— Para casa, Edwin. Eu e Meg temos muito a conversar.
O mordomo acenou, olhando-a pelo retrovisor.
***
Já haviam almoçado e tomavam um licor na sala de estar. Meg estava agitada, pois toda vez que começava uma conversa sobre o caso, Elizabeth a distraía com algum outro assunto.
— Eu não posso ficar aqui o dia inteiro, Beth. Ainda não falamos sobre o depoimento de Turner. Tenho que voltar e ver o que conseguiram na autópsia do padre.
Elizabeth suspirou, pois sabia que a detetive de polícia não gostaria de saber que ela agira sem a sua participação, contudo, Evernood também sabia que a amiga discutiria com ela, sobre os métodos que utilizara.
— Sente-se aqui ao meu lado, Meg.
— Já vi que mandou Edwin atrás do tal homem que Turner falou, aquele que rondava a Igreja.
Afirmou irritada. Ela não era ingênua, muito pelo contrário, era muito observadora e viu quando Elizabeth conversou com Edwin mais afastada e o empregado desapareceu.
— Não pode ser assim, Beth! Você fala de parceria, mas me esconde tudo!
— Se eu lhe falasse, você seria obrigada a relatar para a comissaria e aí viriam os procedimentos. Não falei para proteger você. Assim poderá colocar a culpa em mim, não entende? Quando Edwin retornar, poderemos conversar sobre o que ele averiguou e assim, poderemos prosseguir. Confie em mim.
— Já atuei antes com você sem os procedimentos!
Margareth respondeu emburrada, mesmo que intimamente concordasse com ela. Elizabeth a observou, com os braços cruzados. Ela parecia uma garotinha birrenta. Prendia o riso, encantada com a personalidade e beleza da detetive de polícia.
— Atuaria da forma como fez antes? Você era subordinada e agora é uma detetive respeitada dentro do distrito.
— Não deixarei um assassino escapar por conta de procedimentos.
— Exatamente por isso não lhe falei. Nunca admitiria que se prejudicasse por ações minhas.
Margareth se levantou, resoluta.
— Você é muito presunçosa. Não seriam ações suas, pois tenho minha opinião e, se o decidisse, seria por minha conta. Você fala de direitos femininos, autonomia, mas age como os homens que trabalham comigo.
Virou-se para ir embora, no que foi rapidamente impedida por Elizabeth. A detetive particular, levantou-se e a segurou pelo braço, trazendo-a para encará-la.
— Desculpe-me! Eu errei… desculpe-me.
Estavam próximas, e Elizabeth se arrependia verdadeiramente pelo que fizera. Queria tanto que Margareth não se prejudicasse com suas atitudes voluntariosas, que esquecera do principal: o que mais gostava nela era a clareza de opiniões e a independência, coisa rara de se ver em uma mulher do meio em que viviam.
— Perdoe-me, Meg. – Pediu mais uma vez. – Nunca mais farei isso.
Elas se fitavam e seus corpos se tocavam, pelo arroubo desesperado de Evernood para tentar impedir que Margareth fosse embora. O corpo de Margareth tremeu, reagindo involuntariamente ao toque e a proximidade da amiga. Cada vez mais a presença de Evernood a perturbava, com o perfume, gestos e elegância. Conseguia manter a segurança de seus sentimentos, quando estava a uma distância segura, todavia o contato, fazia com que ela deixasse seu controle resvalar ligeiramente.
Aprumou-se, entretanto Elizabeth não a soltara, esperando por uma resposta.
— Está bem. Vamos nos sentar e conversaremos sobre o assunto.
Desvencilhou-se, delicadamente, das mãos perturbadoras de sua amiga, que a mantinha entre seus braços. Engoliu em seco, sem encará-la, e voltou a se sentar no sofá. Elizabeth Evernood notara uma reação diferente na detetive de polícia. Algo entre a inquietação e o embaraço.
Sentou-se ao lado de Margareth, pousando uma das mãos sobre a coxa dela, numa atitude intimista, dedicada a quaisquer “melhores amigas”. Nada de mais, se não fosse o fato de, há algum tempo, perceber que a detetive correspondia em pequenas ações seus sutis flertes.
— Entenda-me, Meg. Gostou de você demais, para que minhas ações a prejudiquem, todavia a entendo e, mais uma vez, peço desculpas por não ter participado a você o que fiz.
— Desculpo-a se me falar o que mandou Edwin fazer.
Margareth queria pegar a mão de Elizabeth e retirá-la de sua coxa, no entanto, sabia que seria uma clara alusão de que a estaria rechaçando do “conceito de melhores amigas”.
— Bem…
Elizabeth contou seus planos. Ela conhecia um homem com as descrições que o senhor Turner dera e dissera para Edwin o encontrá-lo e levá-lo até a casa de campo dela. Assim que o mordomo voltasse, a detetive Evernood iria interrogar o homem.
— Por que levá-lo para sua casa de campo? Poderíamos fazer isso aqui, mesmo!
Margareth inquiriu, após o relato.
— Porque ele é um homem humilde. Perdeu o emprego na fábrica Norah de tecelagem na última depressão e a mulher dele também. O padre Javier o auxiliava no que conseguia, para que os filhos dele não passassem fome. Com o tempo, Javier passou a pagá-lo por alguns serviços prestados na igreja, mas não era muito. Suas roupas eram andrajosas, causando repulsa. Eu o via por lá, cuidando do jardim da igreja, ou outra coisa qualquer. Esse homem não tem dinheiro para comprar qualquer veneno que seja e dá-lo ao padre.
— Acha que viu algo e fugiu? Que se o abordássemos aqui ele se retrairia?
— Com toda a certeza. Ele é gente do povo e desconfia da polícia.
— Então, fugiria de nós.
Margareth concluiu.
— Exato.
Naquele mesmo momento, Tristan entrou na sala, fazendo um sinal tão sutil que sequer Elizabeth percebeu. Ela se perdera na expressão concentrada da detetive de polícia, imaginando se um dia conseguiria tocá-la com intimidade. O empregado pigarreou, para chamar-lhe a atenção, certo de que estava fazendo algo impróprio. A sua patroa gostava muito de discrição, porém, sabia que o recado era importante.
Elizabeth elevou o olhar.
— Pode falar, Tristan. Edwin já está com o nosso homem?
— Sim, senhorita Evernood.
— Obrigada, Tristan.
Elizabeth o dispensou e voltou seus olhos para Margareth, pedindo silente que ela se posicionasse diante da situação. A detetive de polícia custou a responder, avaliando as consequências.
— Vamos. Não podemos deixar que um suspeito espere para interrogarmos, certo? – Margareth respondeu, sorrindo.
Elizabeth num impulso, beijou-lhe o rosto com entusiasmo, feliz, com a decisão. A senhorita Blindwar semicerrou os olhos, apreciando, não só o toque dos lábios em seu rosto, como o delicado perfume cítrico da amiga, que chegou às suas narinas, inclemente. Abriu-os e viu que Elizabeth a encarava com um sorriso aberto.
— Ok! Vamos!
Falou, levantando-se de supetão, tentando ear do corpo aquela excitação que a acometeu de súbito.
***
Chegaram à casa de campo, que não levava mais que quarenta minutos, a partir da capital, e desceram do carro na entrada. Evernood é uma mulher de surpresas. Margareth pensou, ao ver a propriedade. Imaginava uma casa opulenta e cheia de cômodos, e se deparou com uma casa que devia ter no máximo dois quartos. Embora bem cuidada, era simples.
— Vamos entrar. Edwin deve estar tratando nosso informante com mimos.
— E por quê?
— Disse-lhe para acalmá-lo… que não era nosso “homem da morte”.
Aquela frase caiu mal na mente da senhorita Blindwar. O que Edwin faria se ele fosse o “homem da morte deles”?
Entraram e escutaram vozes vindo da cozinha. A casa tinha uma disposição de cômodos simples. Após a entrada, um pequeno vestíbulo separava a cozinha de uma sala de estar e um corredor que Margareth presumira levar aos quartos. Evernood seguiu direto para a cozinha.
Encontraram três crianças, uma mulher e um homem sentados à mesa, comendo bolo e tomando chá. Edwin estava de pé, auxiliando uma moça, que preparava algo no fogão. O mordomo se voltou para elas e todos da humilde família se levantaram, respeitosamente, porém seus olhares transmitiam temor.
— Como vão? Fiquem à vontade.
A senhorita Evernood falou, retirando suas luvas e colocando-as sobre o móvel de louça. Foi até o fogão e cheirou a comida fumegante que cozinhava.
— Ah, Violet! Estou com saudades das maravilhas que faz!
— Então venha mais vezes aqui, senhorita.
A empregada respondeu alegremente, como se tivesse uma intimidade incomum com a sua patroa.
— Tempos difíceis, Violet. Assim que tudo se acalmar, venho passar um fim de semana.
— E por acaso existem tempos fáceis para a senhorita?
— Gotcha1!
Evernood respondeu, piscando para ela, descontraída. Voltou-se para o patriarca da família.
— Podem se sentar. São meus convidados.
A cozinha parecia ser o maior cômodo da casa, pois abrigava uma mesa de oito lugares e ainda havia espaço com todas as comodidades para a preparação de alimentos.
Evernood sentou-se, pegando um pedaço de bolo recheado e levando-o à boca. Margareth reparava em como a amiga se sentia relaxada. Seguiu seus passos, retirando a luva e sentando-se.
— Senhorita, o seu empregado me falou por que nos trouxe aqui, mas não queremos problemas com a polícia.
— E não terão, se nos falar o que sabe. Só queremos descobrir quem assassinou o padre Javier.
Margareth se posicionou, dando a sua palavra, tranquilizando Elizabeth. A detetive particular poderia agir, negociando com o homem e sua família.
— Senhor Scott, lembra-se de mim lá da igreja, não lembra?
— Sim, senhorita Evernood. Sempre a via conversando com o padre Javier. Ele gostava muito da senhorita.
— E eu dele. Por isso estamos aqui. Quero colocar na cadeia quem fez isso com nosso amigo.
— Não quero encrencas para mim. Eu e minha família agradecemos muito o que o padre fez por nós, entretanto, isso está além do que somos.
Margareth estreitou os olhos, percebendo o medo que acometia não só o homem, bem como a esposa. As crianças estavam alheias, apreciando as guloseimas. Provavelmente há muito tempo não comiam tão bem.
— Por que diz isso? Não quer que o assassino dele seja pego? – Blindwar interpelou.
— Não é isso, senhorita…
— … Blindwar. Chamo-me Margareth Blindwar.
— Pois então, senhorita Blindwar, não vejo como pegarão quem está por trás. É gente que tem poder.
— Então, nos diga o que sabe aqui e garanto que nem aparecerá nos relatórios da polícia.
Blindwar garantiu, vendo que aquela família não tinha quaisquer condições de assassinar o padre.
***
— Estamos há três dias na espreita. Greendwish está no meu pé e o caso está esfriando.
Margareth cochichou. Estavam encobertas pela estrutura de uma ponte, observando as famílias que se alojavam por ali. Fogueiras de detritos estavam acesas, aquecendo a noite daqueles desafortunados.
Um homem chegou perto de uma das fogueiras, impondo as mãos para se aquecer.
— Olhe lá. Ele outra vez.
Evernood a interrompeu, chamando a sua atenção.
— Deve ser nosso homem, concordo, no entanto ele vem e vai, sem se comunicar com ninguém. Temos que segui-lo, senão, não sairemos do lugar.
A senhorita Blindwar pontuou, reafirmando a ideia que tinha. Elizabeth insistira na outra noite, que deveriam permanecer na espreita, até que o suspeito cometesse um deslize. Contudo, também estava intrigada e ele não agira, durante aqueles dias.
— Está bem. Vamos segui-lo. Está com a sua arma?
— Sim. Não gosto de surpresas desagradáveis.
Naquele exato momento o homem saiu, caminhando pela rua que beirava o rio principal da cidade. Elas tentavam segui-lo, mantendo certa distância para não alertá-lo. Ele entrou em uma viela mal iluminada e as detetives tiveram que se aproximar mais, ou o perderiam.
O homem olhou para trás várias vezes, fazendo-as recuar entre as sombras para se esconderem. Ele entrava por ruas e becos escuros, que davam para vielas menores. À medida que se embrenhava pela parte mais pobre da cidade, mais distância elas tinham que tomar para que ele não as visse.
— Devíamos ter pedido para Edwin vir conosco.
Evernood resmungou, sabendo a tática do suspeito em despistar.
— Edwin esteve seguindo esse homem nos últimos dois dias e ontem, o suspeito dormiu ao relento, junto a ponte. Eu mesma já o desqualificava como o aliciador que o senhor Scott descrevera.
Perderam o suspeito de vistas. Estavam frustradas e estagnadas. Retornaram pelo caminho, atentas. Era madrugada e embora estivessem em vestes masculinas, nada impedia que encontrassem algum grupo de desordeiros. Foi exatamente nesse instante em que a mente de Blindwar conjecturava sobre isto que um grupo mal-encarado de bêbados virou na esquina, topando com as duas.
Elizabeth colocou a mão dentro do bolso do sobretudo e se colou ao lado de Margareth, empurrando-a sutilmente para dar espaço ao grupo. Queria que passassem por elas sem perturbação. Baixou a cabeça, escondendo parcialmente o rosto entre a aba do chapéu e a gola elevada do sobretudo. A detetive de polícia não fez por menos, acompanhando-a no movimento.
A tática parecia dar certo, até que um dos ébrios esbarrou no braço de Elizabeth em seus passos trôpegos. Parou de rir de alguma pilhéria estúpida de seus companheiros para se voltar, provocando-a. Brandiu a garrafa que carregava, reclamando:
— Acha que a rua é só de vocês? Aliás… o que rapazes tão nobres fazem por essas bandas? Vocês não são daqui.
Margareth segurou firme o braço de Elizabeth, rebocando-a e falando com um tom grave na voz.
— Desculpem-nos, senhores.
Continuou na caminhada e a detetive particular a acompanhou. De longe Elizabeth pararia para discutir com eles, contudo gostou da atitude firme da amiga.
Escutaram o coro das gargalhadas e uma voz que parecia se aproximar a cada passo.
— Eles não são daqui mesmo, David. Seguramente devem ter “algum”, para terminarmos a nossa noite melhor.
Agarrou o braço de Elizabeth, puxando-a para si.
Qual não foi a surpresa ao levar um soco direto. Ele desfaleceu. Seus companheiros levaram poucos segundos para reagir, correndo na direção delas.
— Se afaste!
Elizabeth gritou para a detetive de polícia, empurrando-a com força. Meg cambaleou de lado, aprumando-se logo em seguida. Viu quando os três homens restantes foram de encontro a Evernood e se adiantou para ajudá-la, mas estancou logo em seguida.
Evernood desferia golpes de artes marciais orientais, incapacitando um a um seus adversários. Cruzou os braços, estreitando o olhar, vendo-a aniquilá-los. Sorriu de lado. Ao final, todos estavam no chão, desacordados e Elizabeth estava ofegante. Pousou a mão nas coxas, curvada, para recuperar o fôlego.
— Onde aprendeu a lutar Muay Thai? – Margareth perguntou.
— Conhece esta luta?
— Pratico há quatro anos com mestre Kauêda. Lógico que meus pais não sabem. Eles me deserdariam por isso.
Margareth respondeu, encolhendo e relaxando os ombros, como se não fosse nada demais.
— Você estava indo tão bem… – Sacudiu a cabeça. – Estava admirada de alguém conhecer essa técnica, só isso.
Elizabeth já recuperada, revirou os olhos.
— Vamos sair daqui e… tome isso.
Jogou um soco inglês para a amiga, que o pegou no susto.
– “Ele” – Elizabeth apontou para o objeto – ajuda muito e quem sabe da próxima vez, lhe estimule a me auxiliar.
Margareth olhou o objeto manchado de sangue.
— Você é cruel.
Virou-se para seguir o caminho de volta e Elizabeth a acompanhou.
— Como pôde usar isso contra aqueles bêbados, Beth? Coitados.
Sua fala era carregada de ironia, fazendo Evernood rir.
— Preferia que eles acabassem comigo?
Respondeu no mesmo tom, sorrindo.
— Eu não deixaria, você sabe. Mestre Kauêda fala que sou muito boa. — Margareth se gabou.
— Aquele velho… Deve falar isso para todas as mulheres que fazem aulas com ele, e o pior, fazem às escondidas.
As duas chegaram à rua principal que beirava o rio e foram abordadas por um carro.
— Precisam de carona, senhoritas?
Evernood se debruçou na janela.
— O que faz aqui, Edwin? Não disse para ir dormir?
Ele a olhou imparcial, respondendo:
— Estava com insônia, senhorita Evernood. Saí um pouco para ver se o sono vinha.
Evernood bufou, abrindo a porta para Margareth entrar.
— Está muito tarde e não podemos fazer mais nada hoje. O que falou para seus pais?
Margareth entrou no carro, seguida de Elizabeth.
— Pode me deixar em casa. Não há problemas.
— Claro que não! Manteremos o disfarce. Amanhã irá enfrentar Greendwish. O que falará para ele?
— Que você me deu pistas e irei averiguar… Não se preocupe. Quando falar com ele, se algo sair do nosso contexto, ligo para avisá-la.
Elizabeth “Chimou”2 em falsa reprovação.
— Está me saindo uma detetive rebelde, Meg.
— Garanto que você não desaprova.
Respondeu-lhe enfadada.
***
Chegaram à mansão Evernood e passava da meia-noite. Edwin pegara os chapéus e sobretudo e as duas mulheres se dirigiram para a sala de estar. Teriam que discutir e tentar nova abordagem. Aquele homem que seguiam era esperto e já percebera que o estavam observando.
— Edwin, vá dormir. Amanhã cedo precisarei de você para ir a casa de campo. Já é hora da família Scott nos falar tudo o que sabe e não dar somente pistas. Não conseguiremos nada seguindo aquele homem.
— Sim, senhorita. Amanhã irei bem cedo para a casa de campo.
— Edwin… – Elizabeth o chamou de volta. – Eles são nossos protegidos. Devem entender que não faremos nenhum mal.
Falou estoica.
— Sim, senhorita. Compreendo.
Edwin respondeu, inclinando ligeiramente a cabeça, retirando-se.
Por vezes, Margareth captava esse tipo de interação entre os dois e a intrigava.
— O que Edwin poderia fazer com eles que precisasse você lhe chamar a atenção?
Evernood colocava um whisky em dois copos e ofereceu um para Margareth, encarando-a firme.
— Ainda desconfia de nossos métodos, e eu entendo.
A detetive de polícia pegou o copo e Elizabeth se sentou numa poltrona. Fez um gesto para que Margareth sentasse. Acomodadas, a senhorita Evernood a encarou.
— Não é o que Edwin faria e sim, o que os Scott pensam sobre quem os auxilia. Eles perderam tudo e passaram a viver num mundo que ninguém auxilia ninguém. A única pessoa que conheceram que os ajudou, acabou morto. Creia-me, eles não acreditarão tão fácil em outra pessoa.
— Falou para Edwin ter muito tato com eles…
Margareth conjecturou, perdendo o seu olhar e pensamentos, na cor âmbar da bebida em seu copo.
— Estamos estagnadas, Beth.
Margareth concluiu desanimada.
— Não. Não estamos. O que o casal Hughes descobriu sobre o veneno?
— Eles ainda estão investigando, mas todos os indícios apontam para o aconitum.
— Que boticários da cidade tem aconitum em seu estoque?… Já temos nossa missão de amanhã.
Elizabeth falou, dando um generoso gole em sua bebida.
— Vamos nos banhar e dormir, Meg. Amanhã, teremos um dia cheio. Espero que tenha desculpas suficientes para Greendwish. Não acredito que terá tempo de passar no departamento.
Margareth suspirou forte, dando uma golada no whisky para amortecer os pensamentos.
— Acho que vou convocar Spencer amanhã. – Comentou desolada. – Se o colocar junto a investigação, parecerá mais formal. Não que não goste dele. – Retratou-se pelo desânimo. – Tem boas atitudes…
Elizabeth se levantou da poltrona, sentando-se no sofá, ao lado da amiga.
— Entendo a sua situação. Só não tenho a mesma forma de agir, porque não estou ligada a uma instituição. Mas compreendo… – Reafirmou. – Você tem obrigações que são boas, afinal. Se não acharmos uma forma correta de prender o assassino, de que valeria o esforço? Você é meu contraponto para que não saia da linha, Meg.
Evernood colocou a mão sobre a coxa da amiga, elevando o copo para um brinde. Margareth tocou com seu copo no dela e verteu o líquido de uma vez só. A proximidade com a amiga perturbava a senhorita Blindwar. Começava a duvidar se tomou a decisão correta, quando resolveu deixar que seus sentimentos por Elizabeth se estabelecessem dentro de si.
Inspirou fundo e levantou-se.
— Vamos. Quero tomar um banho antes de dormir. Amanhã, como você mesmo disse, teremos um dia cheio.
***
No meio da madrugada, Margareth acordou num sobressalto, escutando um grito e gemidos no quarto ao lado. Eou o sono dos olhos, pegou a sua arma e foi até a porta do quarto da amiga, abrindo-a de súbito. Viu Elizabeth sentada na cama ofegante.
— Desculpe-me se a acordei.
Evernood redimiu-se, explicando imediatamente para a amiga.
— Após o atentado que sofri, às vezes… bem, às vezes tenho pesadelos.
Margareth se acalmou, baixando a arma, compadecendo-se da amiga.
— Não há o que desculpar, Beth. Se tivesse sofrido um atentado como o seu, nem sei como eu estaria. Fico feliz que tenha sido só um pesadelo, pode apostar. – Balançou a cabeça sorrindo – Meu coração veio na boca. Você grita alto!
Brincou, levando Elizabeth a rir junto com ela.
— Quer que durma aqui com você?
— Não quero incomodar seu sono, Meg.
— Não me incomoda.
Margareth fechou a porta atrás de si e caminhou em direção a cama. Pousou a arma na cabeceira. Elizabeth afastou as cobertas para dar espaço para que a amiga se deitasse ao seu lado. A detetive de polícia se acomodou, sentindo seu coração palpitar. Merda! Por que insisto em me torturar? Agora ficarei o resto da madrugada acordada. Blindwar repreendeu-se, mentalmente, prevendo que não dormiria estando ao lado de Elizabeth.
Evernood colocou um braço sob a nuca, olhando o teto.
— Nunca pensei que me abalaria tanto…
Margareth virou a cabeça na direção do rosto da amiga.
— Pois acho que se não se abalasse, para mim não seria uma pessoa normal.
Elizabeth a encarou, perdendo-se em pensamentos por instantes.
— Posso abusar um pouco mais de você?
— Claro, Beth!
Evernood sorriu de lado, mas logo se aprumou.
— Você não sabe o que vou lhe pedir… Se não se sentir confortável, não tem por que aceitar. Quero que seja sincera.
Margareth meneou a cabeça, tentando compreender a intenção da amiga.
— Posso lhe abraçar para dormir?
O choque perpassou pelo olhar da detetive de polícia e logo Elizabeth se retratou.
— Não precisa se sentir pressionada. É só um capricho… para me sentir tranquila.
Elizabeth sabia que aquele pedido mexeria com os sentimentos da amiga. Tinha quase certeza de que Margareth nutria algo por ela, o mesmo que sentia. Percebera ao longo do tempo, as pequenas atitudes positivas às suas investidas. Também tinha certeza de que ela nunca tivera um tipo de relacionamento como aquele. Tateava com cuidado pelos sentimentos dela, pois não queria machucá-la e nem deixá-la em conflitos pessoais. Queria que tudo ocorresse na maior naturalidade possível, embora se divertisse com as reações.
— Não… Não. Tudo bem para mim. Abraços sempre são acalentadores. Não tenho problemas com isso.
Independentemente de Margareth prever que a madrugada seria longa para ela, algo a aclamava fortemente a sentir os braços de Elizabeth a envolvendo. Já Evernood pensava em como admirava aquela mulher, cada vez mais. A cada ato, Margareth mostrava para ela que, apesar de não entender muito bem o que acontecia, não se atinha às normas socialmente aceitas.
Elizabeth se virou para Margareth a encarando amorosamente, fazendo com que a detetive enrubescesse e baixasse o olhar. Delicadamente, pousou a mão sobre o quadril da amiga, empurrando-a para se virar de lado, encaixando seu corpo comodamente, logo em seguida. Passou o braço sobre a cintura da detetive de polícia e segurou uma das mãos soltas. Pousou a testa em sua cabeça, suspirou e, embora a emoção, forçou-se a dormir
***
A madrugada havia sido uma tormenta para Margareth. Após muito tempo, o cansaço e o sono, finalmente, se apoderaram dela. Quando acordou, estava sozinha no leito. As cortinas estavam fechadas e o quarto escuro. Tomou um grande bocado de ar e expirou forte. O que estou fazendo?…
Aquela pergunta não a deixava, contudo, sorriu, apreciando as lembranças de como seu corpo reagira àquele contato. Estava apaixonada e não negava o fato, porém, o que faria?
A porta se abriu e a luz ofuscou seus olhos. Cerrou-os brevemente para acostumar-se com a claridade e quando abriu, pôde divisar Elizabeth pousando uma bandeja com iguarias sobre a mesa de lanches, ir até as cortinas e abri-la. O dia entrou através das vidraças, clareando todo o cômodo.
— Acorde, dorminhoca. Já são nove e meia da manhã.
— Mmm…
Resmungou manhosa.
Acaso não foi você que me deixou assim?
Pensou e sorriu, dengosa.
— Estou encrencada no departamento.
Margareth constatou, já que deveria se apresentar na comissaria de Crimes Graves, logo cedo.
— Não, não está. Liguei para Greendwish. Contei que obtive uma informação ontem à noite e como não quis averiguar sozinha, a chamei. Disse a ele que não queria problemas jurídicos, se acaso a informação fosse verdadeira. Falei que perdemos o suspeito e que fomos dormir de madrugada.
— Contou a ele sobre nossas suspeitas?
— Ainda não. Isso você deverá fazer. – Elizabeth sorriu, irônica. – Só dei uma desculpa para a sua preguiça. – Gargalhou. – Depois vemos uma história para contar a ele, para que não fique no seu pé.
— Não vou reclamar. – Margareth se espreguiçou. – Não tenho muita vontade de ir ao departamento hoje. – Riu.
Margareth se levantou, vendo o que Elizabeth trouxera para comer.
— Nossa! Que delícia de desjejum! Amo ovos quentes!
— Eu sei. – Evernood respondeu, sorrindo. – Vi que comeu com entusiasmo quando dormiu aqui da outra vez.
Margareth se sentou à mesa sem cerimônia.
— Não vai comer?
Perguntou já colocando o guardanapo no colo. Estava faminta e feliz.
Elizabeth Evernood reparou a atitude da amiga. Tomou-se de felicidade também, quando percebeu que a noite junto a seu corpo não deixou Margareth confusa e retraída. Sentou-se à mesa.
***
Estavam à espreita, quando o policial Spencer chegou.
— Spencer, que roupa é essa? Estamos de tocaia, não vê?
Margareth o repreendeu, asilada junto a Elizabeth na virada de um casario, na esquina de uma rua.
— Ah… Desculpe. Não sabia que viria para uma tocaia. Greendwish não me avisou…
Ela bufou. Segurou-o pelo braço e o levou para longe da rua que observavam. Assim que se distanciaram, começou a desabotoar a casaca da polícia.
— Tire tudo isso. – Referiu-se ao uniforme. – Tem algo para cobrir a sua camisa?
— Tenho um “trench coat” no carro.
— Vista-o. Coloque a sua arma no bolso e tire o cape. Talvez consiga passar despercebido.
O policial se apressou a fazer o que a detetive havia demandado. Colocou também um cachecol em volta do pescoço para esconder a lapela da camisa. Margareth o olhou aprovando.
— Vamos. Você ficará na esquina oposta. Estamos vigiando um boticário que foi apontado por uma testemunha como um contrabandista de substâncias perigosas.
Ela deu todas as informações para o policial, para que ele as ajudasse a seguir o indivíduo. Teriam que pegá-lo em alguma atividade ilícita para que pudessem pressioná-lo a falar. Estavam vigiando o homem desde que obtiveram a informação de um consumidor de “láudano”.
Margareth pediu reforços para a vigia, pois a noite cairia em breve e elas teriam que ter gente para substituí-las. Algum tempo mais tarde, Greendwish chegou com Dashwood.
A noite já havia caído e o boticário ainda não havia saído de sua loja. Pelas informações do viciado, toda noite após fechar a loja, o homem ia distribuir as substâncias para os seus compradores e, algumas vezes, o fazia de dia, dependendo da demanda.
— Ele não saiu ainda?
Greendwish perguntou aos sussurros, pois a rua estava deserta e somente o vento frio quebrava o silêncio com seu assovio.
— Não. Hoje ele não saiu de dia.
Evernood respondeu. Não gostava de trabalhar com aquela multidão de gente, todavia sabia que agora teria que prestar contas de algumas de suas ações, se não quisesse que algum advogado se intrometesse, alegando que o caso havia sido feito fora da lei.
— Vão descansar.
— Senhor…
Margareth queria intervir, mas Greendwish a interrompeu.
— Vocês estão cansadas e sei como lidar numa tocaia. Ou acha que não? Se o pegarmos, as avisarei, Blindwar.
Evernood segurou o cotovelo de Margareth, discretamente.
— Obrigada, comissário. Qualquer novidade, seja a hora que for, estaremos atentas em minha casa. A detetive Blindwar dormirá lá, para que não precisemos desperdiçar tempo.
Margareth fez um sinal com a cabeça, a contragosto, aceitando a resolução. Quando estavam afastadas, inquiriu a amiga.
— Não posso dormir todas as noites em sua casa. – Deixou os ombros caírem. – Esse caso é meu. Gostaria que Greendwish me levasse a sério.
— Acredite em mim, Meg, conheço Greendiwsh há um tempo. Tem um método de trabalho próprio e não acha producente pessoas cansadas agindo em situação de risco. Para ele o rendimento cai, se estamos muitas horas em atividade. Tenha certeza que foi nisso que ele pensou quando nos dispensou.
Margareth silenciou, avaliando o que Elizabeth falara. Realmente não conhecia muito o seu chefe de polícia. Estava cansada e se ficasse na mansão Evernood, não sabia se conseguiria dormir direito. Também seria o segundo dia que não dormiria em casa. Previa a reação de seus pais a isso.
— Não devo dormir em sua casa hoje. Já tenho problemas demais com meus pais… especificamente minha mãe. Ela irá me atormentar se continuar dormindo fora, toda noite.
— Deixarei você em sua casa, se quiser, no entanto, seria mais fácil se estivéssemos juntas, quando prenderem o homem. Tristan poderia entregar um bilhete seu, com explicações.
— Está bem… Está bem. Quando entrei na polícia, sabia que teria esses conflitos, mesmo.
Evernood gostou da resposta da amiga e quando chegaram ao carro, abriu a porta do carona para que Margareth entrasse, confiando-lhe um sorriso aberto. A detetive entrou e quando Elizabeth tomou a direção, perguntou:
— Edwin não vem?
— Acredita que deixaria tudo a cargo de Greendwish?
— Não. Acho que não. – Margareth sorriu irônica. – Já previa isso, não é?
— Depois de um tempo trabalhando com ele… – Elizabeth deu de ombros. – Eu o conheço e ele me conhece. Com toda a certeza, ele sabe que Edwin acompanhará tudo à distância.
Arrancou com o carro.
***
Chegaram e Elizabeth pegou o sobretudo e chapéu de Margareth, retirando os seus também, deixando-os pendurados em ganchos no hall de entrada.
— Escreva uma mensagem para seus pais.
Caminhou em direção ao escritório, abrindo a porta para que a detetive entrasse. Retirou as luvas, jogando-as sobre a mesa de madeira pesada que compunha a mobília do cômodo. Margareth nunca havia estado naquela sala e se encantou com as estantes que ladeavam a parede de trás da mesa e a lateral. Havia muitos livros, contudo, a sala era grande e arejada, com portas que davam para um jardim interno da propriedade.
Sentou-se à mesa que Elizabeth indicara. Uma pequena pilha de papel de carta em branco e caneta repousavam sobre o tampo, arrumados primorosamente. Escreveu o bilhete e voltou seu olhar para a amiga, que estava diante de uma prateleira, observando alguns títulos.
Evernood retirou um deles e o abriu, lendo o índice. Logo depois, abriu-o em uma página específica. Lia, alheia a observação da senhorita Blindwar sobre si.
— Sabia que o “aconitum” era utilizado em flechas de guerreiros japoneses na antiguidade? Se a flechada não matasse o oponente, o veneno possivelmente o faria. Também era dada a pessoas que eram identificadas como lobisomens. Diziam os antigos que parava a transformação deles.
— Acho que todas essas pessoas morreram antes da transformação.
Margareth respondeu, fazendo Evernood rir.
— Também acho. Por isso não se transformavam em lobisomens.
Elizabeth pegou sobre a mesa um sininho e ainda rindo do que lera e do humor zombeteiro da amiga, tocou-o.
Tristan entrou no aposento com uma bandeja contendo uma garrafa de brandy e dois cálices, pousando-a sobre a mesa. Margareth estendeu o bilhete para ele.
— Leve este bilhete, agora mesmo, à casa da senhorita Blindwar e entregue diretamente a um de seus pais. – Evernood demandou.
— Sim, senhorita Evernood. A senhora Blister disse que o jantar estará servido em quinze minutos.
— Obrigada, Tristan.
Elizabeth o dispensou, pegando a garrafa e servindo os dois cálices. Entregou um deles para Margareth e, antes que ela pudesse recolher a taça, a detetive particular segurou a mão dela, junto com o cálice e a fitou.
— Venha. Sente-se aqui no sofá comigo. A senhora Blister nos chamará quando a mesa estiver posta.
Margareth a acompanhou, ligeiramente enrubescida, diante da intensidade do olhar da amiga. Sentou-se no sofá, seguida por Elizabeth. A detetive particular parecia sempre estar cômoda com situações que para a senhorita Blindwar eram, no mínimo, embaraçosas. Situações em que ficava próxima demais a seu objeto de afeto.
Aparentemente alheia ao desconforto da amiga, Elizabeth retirou os sapatos e como vestia calças de corte reto e largas, não teve dificuldades em recolher as pernas sobre o sofá, cruzando-as. Deu um gole despretensioso no cálice, apreciando a bebida descer pela garganta. Gemeu suavemente demonstrando o tanto de prazer que lhe proporcionou. Encolheu-se toda, soltando mais gemidinhos.
— Por Deus! Não pensei que estivesse com tanto frio, até beber um pouco desse brandy.
Exclamou displicente, voltando a encarar a detetive de polícia.
— Não vai beber?
Perguntou, reparando que Margareth ainda não havia levado o cálice à boca.
— Não gosta de brandy?
Elizabeth continuou a inquirir a amiga, reparando a dispersão dela.
— Hã?! Ah, gosto sim. – Margareth acordou de seus devaneios. – Gosto sim. – reafirmou. – Desculpe, estava pensando…
Margareth deu um gole na bebida e não percebeu a expressão sutil de prazer no rosto de Elizabeth e nem a atenta observação que a amiga dirigia aos mínimos gestos dela.
Evernood ponderava sobre a possibilidade de chegar mais próximo. Elevou a mão, aproximando-a do rosto da detetive de polícia, fazendo com que ela paralisasse. Tocou com os dedos a fronte, afastando uma mecha rebelde de cabelo que se soltara do coque.
O coração de Margareth palpitou forte, a respiração ficou presa e os olhos temerosos, suplicavam mudos para que Elizabeth não percebesse a aflição que lhe tomava. Delicadamente, Elizabeth resvalou a ponta dos dedos, desenhando a face da detetive de polícia, apreciando a tez suave e os traços delgados do rosto. A senhorita Blindwar engoliu em seco, tentando malograr a emoção que lhe acometia. Fitaram-se por segundos, que lhes pareceram horas e, por fim, Evernood interrompeu o contato, recolhendo a mão e bebendo mais um pouco da bebida.
Qualquer palavra que pudesse sair pela boca de Margareth, permaneceu presa no nó que se formou na garganta.
— Você é uma mulher muito bonita, Meg. Nunca teve pretendentes?
Evernood quebrou o silêncio, inquirindo-a como se aquele gesto não a tivesse abalado.
— Sim, mas nenhum me interessou.
E agora acho que sei por quê.
A detetive de polícia respondeu, deixando seus pensamentos correrem pela mente aturdida. Elizabeth terminou de beber seu brandy, tentando lograr o sorriso que teimava em desenhar seus lábios. Pousou o cálice uma mesinha lateral e quando se voltou para Margareth, a porta se abriu. Era a senhora Blister.
— Senhoritas, o jantar está servido.
Margareth imediatamente se levantou do sofá, agitada. Voltou-se afobada para a cozinheira.
— Estamos indo, senhora Blister.
Rapidamente encaminhou-se para a porta, a fim de se livrar daquele magnetismo que envolvera as duas mulheres. Estava assustada.
Elizabeth abanou a cabeça, esmorecida. Por instantes, achou que conseguiria amainar os medos da detetive de polícia e mostrar-lhe que os sentimentos que carregava não eram maus. Acho que me precipitei, pensou.
O jantar foi extremamente incômodo. Margareth permanecera calada a maior parte do tempo, respondia às perguntas de Elizabeth e, assim que terminaram, quis se recolher. Queria se distanciar da amiga o mais rápido possível. Subiram as escadas para o andar dos quartos e despediram-se. Assim que a detetive de polícia entrou no quarto destinado à ela, apoiou-se de costas na porta, exalando um bocado de ar dos pulmões.
— Por Deus!
Falou alto, colocando a mão na cabeça.
— Eu quase me perdi… E se ela perceber algo em mim? E se ela me odiar?
Questionava-se, atormentada pelos fortes sentimentos. Pensava que deveria se afastar da amiga, entretanto, esta mesma ideia a angustiava terrivelmente. Estava confusa e a imaginação do que poderia ocorrer com as duas a partir dali, fazia o medo tomar-lhe por completo.
No quarto ao lado, da mesma forma, Elizabeth pensava no que havia feito. Condenava-se pela precipitação. Entretanto, diferentemente de Margareth, ela tinha certeza do que queria e, do que leu no olhar e atitudes da amiga. Seria muito engano seu se Margareth não nutrisse os mesmos sentimentos por ela.
— Merda! Me precipitei!
Capitulou, diante da constatação.
— Não posso estar errada no que vejo e percebo vindo dela!
Elizabeth vivera muitas aventuras. Desde nova, sempre soube o que queria para si. Seu tio era um homem à frente de seu tempo e nunca a julgou, pelo contrário. Dizia-lhe que a vida era curta e os seres humanos eram insignificantes diante dela, para que conceitos morais hipócritas fossem levados em consideração.
Ao mesmo tempo, Evernood nunca esquecera os olhos expressivos da garota que a consolou na infância, diante de um momento tão difícil de sua vida. Diferentemente de todos os outros, Margareth não expressou uma pena gratuita pela situação e, sim, a compaixão de uma alma sincera. Nunca a esquecera.
Houve momentos, ao longo de seu crescimento, que viveu frugalidades. Passou pela adolescência rebelde e até perdeu-se em esbanjamentos fúteis, participando de esbórnias sem sentido. Seu tio lhe trouxera à razão, conduzindo de forma branda seu desenvolvimento como pessoa, sem lhe castrar a essência.
Quando retornou à sua cidade natal e à casa de seu nascimento, a lembrança da garota que a consolou anos atrás estava distante, até que a encontrou em uma festa. Aquele encontro marcou uma nova trajetória.
A senhorita Evernood não a reconhecera de pronto, porém se encantara por ela. Não só a beleza, mas os gestos e atitudes simpáticos e elegantes com que tratava a todos. Não era uma cordialidade formal que marcava a personalidade da desconhecida, mas a brandura, alma expansiva e alegre que iluminava a festa. Quando soube de quem se tratava, tomou-se de uma comoção jamais sentida. O abalo em suas estruturas foi tanto que resolveu ir embora, sem mais.
À partir dali se distanciou, porém notícias de Margareth Blindwar sempre chegavam a ela. Foi impossível dentro do círculo social que viviam não ter conhecimento da figura interessante que a socialite se tornara. Evitara-a até o dia que soube que ela decidira entrar para a corporação da polícia. Aquele gesto fora demais para o “copo” de admiração que Evernood já nutria. Transbordou.
Foi nesse momento que decidiu acompanhar a trajetória da detetive, mesmo que à distância, até que chegou o dia de se encontrarem, naturalmente, nas vielas da vida. Encantou-se mais e o amor que, para Elizabeth não passava de uma admiração forte, apossou-se de seu coração, com todas as garras.
— Não posso perdê-la… Foi um momento de fraqueza, por Deus! O que eu faço agora?
Olhou à volta, desnorteada. A camisola quente de algodão sobre a cama disparou a sua mente.
— Tenho que saber como ela está.
Foi até o seu armário, pegou uma camisola de flanela. Sabia que a senhorita Blister deveria ter deixado uma de algodão sobre a cama de Margareth, mas precisava de uma desculpa qualquer. Foi até o quarto ao lado e bateu na porta.
Margareth estava sentada sobre a cama, ainda pensando no que se passava com ela. A mente trabalhava em um turbilhão, tentando organizar as ideias para amainar as emoções e divisar uma saída para elas, sem que precisasse se afastar de Elizabeth. Seu coração saltou, novamente, diante das batidas da porta.
Inspirou fundo e expirou várias vezes para se acalmar. Foi até à porta e a abriu, vendo Elizabeth com uma peça de vestuário na mão.
— Hoje está muito frio…
Elizabeth não esperou ser convidada e entrou no quarto. Era uma atitude não muito convencional e até poderia ser interpretada como falta de senso e educação, porém, a detetive particular não queria dar chances para a sua hóspede recusar o contato. Já no quarto, se dirigiu para a cama, pegando a camisola de algodão, pousando a outra. Virou-se para a amiga, que paralisara.
— … Vim deixar uma camisola de flanela. Embora a lareira esteja acesa, hoje, a noite será fria.
Elizabeth falou com naturalidade, esperando uma resposta da amiga.
— Obrigada. – Margaret respondeu aturdida. – Com certeza, será uma noite fria.
Diante da estoicidade da detetive de polícia, Elizabeth se aproximou, na tentativa de consolá-la. Via o medo permear seus olhos. Não resistiu.
— Gosto demais de você, Meg. Se estiver invadindo seu espaço… se estiver lhe incomodando, pode falar.
Elizabeth espertamente imprimiu um tom de lamúria nas palavras, deixando Margareth com uma sensação de culpa. Caminhou apressada até a detetive particular, imaginando que havia ferido os sentimentos da amiga, com suas reações rígidas. Presumiu que havia magoado Elizabeth com atitudes reservadas demais, diante da afabilidade com que ela a tratara.
— Não! Não pense assim! Desculpe-me, eu… eu que não reajo bem ao carinho simples. – Mentiu. – Sou muito travada em minhas emoções e… bem, não soube como me portar.
Margareth já segurava o rosto de Evernood entre as mãos, encarando-a com olhos aflitos. Nada poderia doer mais nela do que Elizabeth achar que rejeitaria a amizade.
Elizabeth semicerrou os olhos, apreciando o toque das mãos em seu rosto. Abriu, voltando a fitar o negro dos orbes que derramavam temor e amor. Ali estava a resposta concreta de que precisava. Tentou conter a ação que já precipitara em sua mente. Impossível! As mãos de Elizabeth seguraram num ato reflexo a cintura da detetive de polícia, trazendo-a para perto de seu corpo e depositou um beijo sobre os lábios rubros da amiga. Conteve-se a custo.
— Gosto demais de você para que me repudie.
Elizabeth sussurrou, ainda próxima à boca que a chamava a mais beijos. Virou-se sem esperar resposta. Saiu do quarto, deixando Margareth completamente inerte e atônita.
A detetive de polícia pousou a mão sobre os lábios, amortecida. Aquela seria outra noite insone. Durante a madrugada, todos os pensamentos foram aleatórios, sendo a única coisa que se fixara na mente era a incrível leveza prazenteira dos lábios da mulher que amava.
Não tiveram tempo na manhã seguinte para destrinchar nuances do que ocorreu entre elas. Greendwish ligou para a mansão Evernood, pouco antes do sol raiar, fazendo com que as duas se adiantassem, para seguir para o departamento de polícia.
***
O comissário havia deixado o boticário em uma sala. Quando chegaram, Greendwish logo falou para a detetive Blindwar:
— Tire algo dele, pois está mudo desde que chegou.
Olhou através da vidraça da sala, desanimado. Margareth o observou e logo perguntou:
— O ecaram?
— Lógico que não, Blindwar. Os hematomas são por ele ter resistido a prisão.
Falou categórico, contudo, Margareth não acreditava que fosse de todo verdade.
— Quero que a senhorita Evernood entre comigo. Faça dela, uma consultora oficial da polícia para não termos problemas jurídicos futuros. Ela é boa em interrogatórios. – Olhou para Elizabeth que anuiu com a cabeça. – Além do mais, devemos essa prisão à ela.
Greendwish, apesar de não gostar de ser pressionado, tendo que responder sobre as suas decisões para o alto escalão, conhecia bem o estilo da detetive particular e sabia que se houvesse alguém para convencer aquele sujeito a dar um nome, seria a senhorita Evernood. Aceitou a proposta. Faria um documento para declarar Evernood a consultora deles naquele caso.
***
Horas haviam se passado e o homem não falava nada além de impropérios. Por fim, Evernood perdeu a paciência.
— Tudo bem. Não quer falar mesmo, quem comprou o veneno de você? – Virou-se para Margareth. – A cidade gostará de saber que prendemos um suspeito no caso do padre Javier…
Margareth estreitou os olhos, captando a estratagema.
— É. O “Jornal da Hora” não nos deixa entrar na delegacia em paz. Eles pegam qualquer ação nossa, mínima que seja, e inventam coisas…
Margareth suspirou ao falar, como se nada pudesse fazer.
— E, certamente, já devem estar preparando uma edição extra, contando que prendemos um boticário da cidade… Deve sair ainda esta tarde. – Disse Evernood.
— Que pena. Sua botica ficará marcada… até mesmo para quem compra substâncias escusas. Ninguém vai querer estar ligado a um traficante preso. – Blindwar concluiu com falsa pena.
— Vocês não me assustam. Tem pessoas com poder que compram comigo. Eles me ajudarão.
O boticário falou, rindo sarcástico.
— Ou se distanciarão, com medo de serem ligados a você. Mas tudo bem. Daqui a alguns anos, quando sair da cadeia, poderá reconstruir sua vida em outro lugar.
A detetive particular suspirou, como se estivesse com pesar sobre a vida do homem. O boticário ficou pálido, fazendo Blindwar atuar com rapidez.
— Mas há uma saída. Se nos falar quem comprou o veneno, podemos conseguir uma pena mais leve, afinal você estará cooperando com a polícia.
A detetive de polícia olhou para a vidraça, sabendo que Greendwish estava vendo do outro lado, através das persianas semiabertas. Ele também conseguia escutar, graças às frestas vazadas na parede, que haviam instalado há alguns dias.
****
Evernood odiava aquele tipo de intervenção da polícia. Era agressiva e não faziam discretamente. Preferiu sair de cena, deixando a abordagem do indicado pelo boticário para a polícia. Ela tinha outras suspeitas. Infelizmente, a polícia abordar e prender o interceptador do veneno dificultaria a chegada dela até os mandantes. Não importava. Edwin havia feito a investigação que ela pedira, assim que soubera quem era o interceptador.
Margareth não estava com ela. Estava presa na comissaria, executando inúmeros procedimentos oficiais.
Era noite e Evernood estava de tocaia. Somente ela e seu fiel “mordomo”. A polícia prendera o intermediário, entretanto, ela conseguira através da vigilância de Edwin, outro nome e estava à espreita.
Margareth ficará perdida. Que desperdício de tempo!
Pensou, imaginando que Blindwar fora requisitada para fazer o novo interrogatório.
— Oi.
Evernood se alarmou com a voz que chegou atrás de si, de repente.
— O que está fazendo aqui, Meg? – Sussurrou, contendo a surpresa na voz.
— O mesmo que você. Acha que ficaria às voltas no departamento, sabendo que levaria a mais outro dia de interrogatório? Procurei Edwin e ele me falou que investigou o interceptador. – Sorriu. – Não vai se livrar de mim tão fácil.
Elizabeth abriu um sorriso maior do que gostaria. Ali estava aquela incrível mulher a seu lado. Sem temores e sem dúvidas.
— O que acha?
Blindwar perguntou, observando, sob a ponte, as mesmas famílias, crianças e prostitutas que, por dias, observaram anteriormente.
— Acho que estão seguros, pois se uma coisa que Greendwish fez de bom, foi ocultar as prisões, embora possam desconfiar, já que os seus fornecedores estão sumidos.
— Estou começando a entendê-lo. – Margareth falou. – Quando disse que estava cansada e que não ficaria para o interrogatório do interceptador, ele me liberou sem hesitar. Antes de sair, me repreendeu pela minha “moleza” e piscou para mim. – Margareth sorriu.
— Como encontrou Edwin?
Evernood perguntou intrigada, afinal, seu “mordomo” era bem discreto.
— Simples. Fui à sua casa e perguntei a Tristan qual era o recado que Edwin deixara para mim. O garoto ficou um pouco confuso, achando que esquecera algo e me disse onde Edwin estava.
— Merda! Tristan não tem malícia. Terei que conversar seriamente com ele…
Margareth via que Evernood não estava raivosa com o garoto, pelo sorrisinho que delineara nos lábios. Parecia até que gostara da indiscrição ingênua do empregado.
— Então, o que temos?
— Alguém que rapta crianças para prostituição. Crianças que, desafortunadamente, são obrigadas de uma hora para a outra a morar nas ruas.
— Crianças sem pais?
— Sim. Pais que morreram por doenças, ou outros infortúnios. Aquele homem que nos foi indicado pelos Scott, não anda mais por aqui, depois de o seguimos. Pelo que Edwin apurou com a família do interceptador, ele não voltou mais após ter sido descoberto por nós.
— Então, quem estamos seguindo agora?
Evernood apontou uma mulher.
— Emily Target.
Margareth a reconheceu. A polícia local estava sempre às voltas de seu estabelecimento. Tinha um pub, em que as más línguas diziam ser um prostíbulo, entretanto homens e mulheres da nata local frequentavam. Ela estava acompanhada de dois homens corpulentos.
As duas detetives sabiam o que fazer. Ficar atentas e encobertas. Não poderiam abordá-la, diretamente.
— Vamos embora. Edwin saberá como agir.
— O quê? Temos que pegá-la!
Margareth contestou.
— Temos que pegá-la praticando o ato criminoso. Confie em mim, Meg. Edwin a seguirá e comprovará o que especulamos, mas só a pegaremosse a abordarmos nesse ato, entendeu?
— Sim. Se a pegarmos aqui, acompanhando alguma dessas crianças, poderá dizer que estava simplesmente auxiliando, tirando das ruas ou oferecendo um emprego.
— Exato. Tenho um plano.
Não era exatamente o que a senhorita Blindwar esperava, contudo, confiava em Elizabeth. Acenou afirmativamente. Foram embora.
Naquela noite, Margareth fora para casa. Travara uma discussão com a mãe e mais uma vez seu pai a salvou das inúmeras repreensões dela. Pensava que após duas noites agoniantes sem dormir direito na casa de Evernood, seria derrubada pelo cansaço. Ledo engano. Passou outra noite com os pensamentos e sentimentos que tinha por Elizabeth, em rebuliço.
***
Greendwish chamou a detetive Blindwar em seu gabinete. Ela bateu na porta e o escutou mandá-la entrar.
— Senhor…
— O que está fazendo aqui, Blindwar?
— O senhor me chamou.
Ela respondeu confusa e ele a encarou, severo.
— Preciso falar com todas as letras? Por Deus, Blindwar, achei que seria mais atuante e insistente. Não vê que não posso fazer o que faz? Vá até Evernood e veja o que ela consegue. Atue como se eu não estivesse lhe acobertando. Só peço que seja discreta!
Falou irritado. Margareth demorou um tempo para assimilar o que seu chefe demandara. Sorriu largamente.
— Senhor, preciso verificar com nossa consultora o que ela descobriu.
Falou burlesca, sabendo que seu pedido nada mais era do que algo para indicar que o havia compreendido.
— Finalmente entendeu! — Ele elevou as mãos e deixou-as cair. — Vá. Só não me deixe completamente às escuras. Se precisar se ausentar do departamento, me ligue, para eu ter subsídios para a comissaria. – Fez um gesto com a mão, liberando-a. – Vá e não volte sem alguma coisa concreta desse caso e lembre-se, nunca tive essa conversa com você. — Voltou a olhar documentos, ignorando a presença dela.
***
Outra noite havia chegado e Margareth se encontrou com Evernood na frente do pub da senhorita Emily Target como haviam combinado. Elizabeth a olhou de cima à baixo, elevando uma de suas sobrancelhas.
— O quê? – Blindwar perguntou diante do olhar de escrutínio da amiga. – Você disse para me vestir como se fôssemos sair…
— Sim, sair para um pub que, pelo que me consta, também é um prostíbulo.
— Um prostíbulo de luxo, devo acrescentar. Ou esqueceu? – Blindwar também inspecionou as vestimentas da amiga. – Você que está parecendo um homem, vestida com esse… Nem sei o que é.
— É uma casaca feminina. – Elizabeth bufou. – Temos papéis a desempenhar.
— É feminina porque marca suas formas e você está de salto, mas ainda assim, é uma casaca.
Evernood de maneira nenhuma achara que Margareth estivesse inadequada. Ela apenas se impressionara com a elegância. Seria uma noite difícil para a detetive particular atuar, sem que seus olhos não parassem o tempo todo sobre o corpo da amiga. Abanou a cabeça e retomou os planos.
— Vamos entrar como um casal que busca diversão.
— O quê? Nós somos mulheres!
— O que acha que as pessoas buscam quando vem a um local como este? Por favor, Meg! Aqui encontraremos pessoas de nosso meio social, que se escondem diariamente em atitudes refalsadas.
— O que quer dizer com isso?
Elizabeth revirou os olhos e decidiu pôr um fim na ingenuidade de Margareth.
— Homens que gostam de homens e casam porque a sociedade os cobra e, vem aqui, para tentar enganar suas frustrações, causadas por eles mesmos. Mulheres que estão em casamentos desafortunados, onde o marido as vê apenas como reprodutoras e mães. Ou então, homens que não enxergam nada além de seu órgão genital e que só sentem prazer com a subserviência completa de uma mulher. – Evernood suspirou e a fitou séria. – Quer realmente que continue a relatar a hipocrisia de nossa sociedade?
Blindwar se empertigou. Ela sabia, quando entrou para a polícia, que chegaria o momento em que encararia fatos dos quais não gostaria. Decidira, há muito, que não se abalaria.
— Tudo bem. Então o que seremos? Qual será o nosso papel?… Só para me preparar.
Evernood sorriu de lado, gesto característico de quando apreciava algo.
— Somos um casal de mulheres que buscam fantasias com outras mulheres. No nosso caso, com meninas.
— Einh?
Margareth perguntou confusa, recebendo um olhar advertido e sério de Evernood.
— Está bem! Está bem… – Blindwar reagiu. – … mas quero ressaltar que acho isso nojento. Interesse por crianças?!
— Também acho nojento, mas se queremos descobrir algo nesse estabelecimento, temos que fazer o jogo.
Margareth aceitou os termos, enlaçando o braço da amiga que a conduziu até a entrada do pub.
Tocaram o sino da porta e um homem corpulento, porém alinhado, as recebeu. Evernood simplesmente estendeu uma nota de dinheiro de grande importância, indiferente à austeridade que o porteiro impunha.
— O senhor Walker nos indicou.
Elizabeth falou com ar de indiferença, voltando seu rosto para Margareth, beijando-lhe o rosto carinhosamente. O gesto pareceu natural para aos olhos do porteiro. Ele pegou a nota e fez um gesto para que entrassem.
— Como sabe agir nessas situações? Quem é Walker?
Margareth a inquiriu aos cochichos. Evernood simplesmente riu discreta, sem responder. Chegaram ao salão, antes que a senhorita Blindwar pudesse interpelá-la novamente.
Descortinou-se um local claro e sofisticado, diferente do ambiente lúgubre que Margareth imaginara. Ela correu os olhos com interesse pelo lugar, vendo mulheres e homens, bonitos e alegres, interagindo. Pessoas de boa aparência, tragando charutos e cachimbos e, bebendo descontraidamente. Virou o rosto, tentando se esconder no abrigo do ombro de Elizabeth.
— O que foi?
— Aquele lá, no sofá perto do piano, é o banqueiro Hayek?
— Não estava preparada para isso, não é? Nunca imaginou que alguém como Hayek pudesse estar num lugar como esse e ter um rapaz sentado em seu colo. – Evernood riu. – Relaxe. Ele não a condenará, afinal, também está aqui.
— Pensando que estou com uma mulher… Pensando que tenho interesses nesse lugar.
Evernood se retesou. Não a condenava por se envergonhar daquele local, mas a afirmativa sobre estar com uma mulher atingiu-a fundo.
— Pode deixar que, quando descobrirmos tudo por trás do assassinato do padre Javier, ficará esclarecido de que estava com uma mulher pelo interesse da investigação. Sua imagem não será maculada.
Blindwar fechou os olhos ligeiramente, pensando sobre o que a amiga falara.
E por acaso não tenho interesse em uma mulher?
Questionou-se, mas logo se recompôs, quando um garçom passou servindo champagne e Evernood pegou duas taças, entregando uma para ela. Seu nervosismo assumiu escalas altíssimas, quando Elizabeth se recostou no bar e a puxou para se apoiar nela de costas. Blindwar sentiu o braço da detetive particular, envolver sua cintura num gesto de posse. Prendeu o ar, não pela ação a desagradar, mas por ser extremamente prazerosa.
Hoje enlouqueço de vez… Onde fui me meter?
Assim que pensou, sentiu o queixo de Elizabeth apoiar em seu ombro e a voz baixa e rouca a lhe falar no ouvido.
— Tente ser natural, você praticamente está dizendo com suas expressões que quer correr daqui.
Evernood falava como se sussurrasse palavras de amor para a amante. Ao fim da frase, depositou um beijo no pescoço de Margareth e logo depois, afastou-se um pouco para tomar um gole da bebida. Por segundos, a detetive de polícia se perdeu na incrível sensação que os lábios macios da amiga lhe proporcionou.
Já que era para ser natural, Margareth se deixou levar, resvalando a mão pela lateral da coxa de Elizabeth, girando o corpo para encará-la de frente. Observou a boca da amiga, pintada num tom pastel claro, mordeu o próprio lábio. Isso é loucura! Pensou, todavia não refreou o próprio impulso. Tocou, hesitante, os lábios de Evernood.
A detetive particular, apesar de surpresa, sorriu ligeiramente, antes de arrebatar de vez a boca de Margareth. Sabia que a reação dela era para se adequar ao ambiente e para assegurar o sucesso da missão, entretanto, não se poupou de apreciar cada movimento que suas línguas faziam e cada sabor que extraía daquele beijo simulado. Sentiu Blindwar estremecer em seus braços e um gemido emitido inadvertidamente. Separaram-se devagar, encarando-se intensamente.
— Que casal lindo! Não me lembro de vê-las aqui em meu estabelecimento antes.
Uma voz falsamente sensual tirou-as do transe idílico que as acometera, fazendo Evernood se recompor em seu disfarce. Ela voltou o rosto na direção da voz, sorrindo.
— Havíamos escutado falar muito bem do lugar, apenas tivemos que criar um pouco de coragem para vir.
— E agora que criaram coragem, – a mulher abriu um enorme sorriso – têm algo mais ousado em mente para a diversão de vocês, ou simplesmente querem ficar a sós? Disponibilizamos quartos, também.
Evernood olhou para Blindwar, como se perguntasse a ela o que desejava.
— Eu nunca tive experiências a três. Viemos aqui por isso, não foi?
Margareth declarou, dando continuidade ao plano delas. A senhorita Emily Target previa uma noite de lucros.
— Tenho exatamente o que procuram. Janet é uma moça experiente…
— …Não. – Evernood interrompeu. – A senhorita não entendeu. Eu gosto de ter o pulso da relação.
Elizabeth tracionou mais o corpo de Margareth apertando-o contra si, simulando uma reação de propriedade.
— Preferia uma garota com modos recatados. Alguém tímido, até.
— Mmm… Entendo.
Emily Target hesitou por um momento, antes de dizer:
— Me acompanhem, por favor. Acho que tenho o que procuram.
Entraram por um corredor escondido atrás de uma cortina. Atentas, as detetives observaram todos que circulavam por ali. Emily Target abriu uma porta e pediu para que entrassem e esperassem. Era um quarto com uma cama ornada e arrumada. Havia uma mesa com cadeiras em um canto e alguns dildos feitos em couro sobre uma penteadeira.
— Ela não engoliu a nossa história. – Evernood declarou. – Está nos testando para ver como reagimos. Percebeu como, rapidamente, nos atendeu? Não esperava que satisfizesse nossos “desejos” tão cedo.
— Acha que nos conhece, Beth?
— Provavelmente. Ela lida com a nata da sociedade e deve saber quem somos. Foi ingenuidade nossa vir. Temos que sair daqui, sem levantar novas suspeitas.
— Agora ela trará uma de suas garotas e se a dispensarmos sem mais, seremos expostas…
— Não dispensaremos a garota. – Evernood respondeu enfática.
— O quê?! Não está pensando realmente em termos uma relação com uma prostituta, não é?
— Eu disse que não dispensaríamos a garota. Ela que nos dispensará. – Elizabeth apressou-se em explicar. – Se não estiver enganada, essa cafetina nos trará uma garota com maioridade suficiente para não incriminá-la, entretanto será uma novata nesse negócio.
— Uma que não teve muitas experiências, e daí?
Evernood levantou-se e foi até a penteadeira. Pegou um chicote de pontas e o maior dildo que havia, mostrando para Margareth. A detetive de polícia, apesar de chocada, concordava com a abordagem. Provavelmente, a menina se recusaria e teriam uma desculpa para ir embora.
— Certo, mas sinceramente, não sei como fazer isso.
Evernood gargalhou.
— Deixe comigo e verá que nem precisarei tirar a roupa.
Ela prendeu o grande pênis de couro sobre a calça e pegou uma corda, dando-a para Margareth.
— Fique posicionada a meu lado, empunhando a corda visível. O dildo e o chicote são por minha conta.
— Estou vendo!
Margareth falou, observando de lado aquele implemento preso ao corpo da amiga e a postura altiva que adotara diante da porta. Era, no mínimo, uma cena bizarra.
A porta se abriu e por ela, passou uma cafetina risonha juntamente à uma moça bem vestida, mas visivelmente abalada com a visão que descortinou à frente delas.
— Eu… Eu não…
A moça gaguejou, virando-se rapidamente e saiu do quarto correndo, enquanto o sorriso morria no rosto de Emily Target.
— Vocês disseram que queriam uma moça inexperiente! O que é isso?
Emily Target apontou para o corpo de Evernood, que vestia um dildo de onze polegadas em couro e segurava um chicote com esporos metálicos na ponta. Seria cômico se a situação permitisse.
— Eu não falei que queria uma moça inexperiente e sim, que queria alguém com modos recatados. Lembro-me, também, de dizer que gostava de ter “pulso” na situação.
Elizabeth falou indignada e Margareth acompanhou o teatro dela. Jogou a corda que levava no chão com força.
— Vamos embora, amor. Certamente, este não é o local que indicaram. – Bufou agastada.
Evernood já precipitava em retirar o pênis preso a ela e, também, largou o chicote no chão.
— Vamos! Nos enganamos com este lugar.
Resmungou com empáfia. Segurou a mão de Margareth, rebocando-a. Quando passou pela cafetina, parou, olhando-a de cima a baixo.
— Me decepcionou, senhorita!
Puxou a companheira em direção à saída, deixando a cafetina confusa e paralisada.
— Veja aquela porta ao fundo.
Evernood sussurrou para a detetive, detendo-se momentaneamente no passo, para que Margareth reparasse. Uma mulher estava trancando a porta, com um cadeado. Escutaram lamúrias vindas de dentro do local. Apressaram-se para sair.
***
Chegaram à mansão Evernood rindo da situação, mesmo que a investida tivesse surtido o efeito contrário ao que imaginavam.
— Foi ridículo! Admita, Beth. Você com aquele chicote e o… – Margareth fez um gesto direcionado ao ventre da amiga. — Estava ridículo. Confesse!
Elizabeth riu com gosto, retirando a casaca e as luvas.
— Venha. – Puxou Margareth para a sala de estar. – Temos que juntar tudo que observamos e pensar em uma nova abordagem. O padre Javier descobriu algo relacionado a essas crianças de rua.
— Sim, até agora, tudo nos leva ao sequestro de menores e exploração sexual. Mas, quem está por trás? A senhorita Target? Ela já é conhecida, mas nunca circulou nada em relação à crianças. Aquela garota mesmo que nos ofereceu, já tinha idade. Em um inquérito, Target afirmará que a escolha é da garota.
— De qualquer forma, é ilícito. Tudo bem que a pena por prostituição e aliciamento é bem menor do que sequestro de menores, todavia, ela está amparada por pessoas influentes.
— E Hayek? Ele estava lá e nem se importou conosco.
— Está acostumado a ver pessoas influentes visitando o estabelecimento de Target. O caso é que o homem que estava no colo dele era maduro, nem de longe era imberbe, evidenciando que o desejo dele não são crianças. Possivelmente, é só um frequentador, mas aquele quarto com cadeado… – Elizabeth supôs.
— É. E nem poderemos voltar. – Margareth, acrescentou.
— O fato é que não importa quantas crianças tem lá dentro. A polícia já fez batidas e nunca encontraram nada. Temos que saber como ela as coloca lá e as tira, além de ligá-la à morte do padre Javier.
— O padre deve ter descoberto o esquema e ela, certamente, é avisada quando tem batidas policiais no seu estabelecimento.
Margareth conjecturou, sabendo o que aquilo significava. Pessoas de influência não queriam que o local fechasse.
— Alguém da própria polícia, talvez…
Evernood não queria desagradar Margareth nem deixá-la constrangida, todavia não queria que a detetive fosse pega de surpresa, caso descobrisse que a corporação pela qual lutara para se estabelecer, fosse corrupta.
— Senhoritas…
Edwin entrou na hora exata, para que o constrangimento e o incômodo das suspeitas fossem dissipados.
— Sim, Edwin. Pode falar.
Ele levava uma bandeja com chá e xícaras.
— Talvez possa ajudá-las. — Falou enquanto pousava a bandeja e servia o chá. – Observei a movimentação da área de serviço deles, enquanto estavam lá dentro.
— Como observou a área de serviço deles? Pelo que sei, é um pátio interno. — Margareth perguntou.
— Edwin tem um parentesco distante com gatos…
Elizabeth respondeu, rindo. Pegou a xícara das mãos do mordomo, tomando um pouco do chá.
— Você escala prédios? Agora consigo entender como tem sempre informações mais precisas do que nós. Telhados são ótimos observatórios.
Margareth concluiu satisfeita, dando um gole na bebida quente que ele dera para ela.
— Eles têm uma passagem, que me pareceu ser para uma área externa ao estabelecimento.
Elizabeth se aprumou, pousando a xícara sobre a mesinha de centro, prestando atenção no relato do mordomo.
— Continue…
Falou para que ele não demorasse muito a dar as informações.
— Parece-me uma saída e entrada do prédio, bem discreta… Talvez um túnel.
— Um túnel, Edwin?
— Não consegui identificar muito bem, senhorita Evernood. Por isso acredito ser um túnel que leve para fora, pois ao redor da “casa de entretenimentos” da senhorita Target, há inúmeras construções. Não vi como uma porta na murada de fundos dela pudesse levar a alguma rua, ou mesmo, saída para outro prédio.
Evernood se levantou, andando pela sala a esmo, pensativa.
— Me traga do escritório a planta daquela região, Edwin.
— É para já, senhorita.
Ele saiu.
— Como tem a planta daquela região?
Margareth perguntou surpresa. Elizabeth a encarou irônica.
— Não tenho só daquela região. Tenho de toda a cidade. – Fez um trejeito soberbo. – Digamos que tenho muitos amigos pelas repartições da cidade.
Margareth bufou, revirando os olhos. Tornava-se mais evidente o motivo de Greendwish acobertá-la para que trabalhasse junto a Evernood. Contudo, a situação e a proximidade das duas transformava cada dia em uma luta interna para ela. Não houve tempo para que remoesse sobre o beijo que trocaram no bordel. Empurrou para o fundo da mente qualquer sensação ou sentimento, por não haver tempo para pensar em si. Todavia, sabia que, em algum momento, aquela lembrança a atacaria como um animal feroz.
***
Já faziam três dias de tocaia e a paciência começava a resvalar pelos nervos da detetive de polícia. Viram diversas crianças serem transportadas para dentro e para fora daquele duto, que ligava o prostíbulo à área baixa da margem do rio. Concordava com Evernood em querer pegar o verdadeiro responsável pela morte do padre, mas será que conseguiriam somente observando aquele lugar?
Elas tinham certeza que Javier se interpusera no negócio de alguém poderoso, porém, Margareth não achava que a pessoa se exporia ali. Afinal, todos os envolvidos com a venda do veneno e o tráfico de crianças calaram-se com medo. Nenhum deles revelara o verdadeiro mandante ou comprador.
— Quanto tempo vamos ficar aqui sem nada fazer?
— O que for preciso… para pegar o verdadeiro assassino.
Evernood respondeu resoluta.
— Entendo a sua obstinação, entretanto, não acredito que o mandante venha pessoalmente. Pegamos o vendedor do veneno, a família que viu, e o intermediário. Só nos deram pistas, mas se recusam a falar quem é. Temos que tentar outra estratégia.
— Ele virá. – Evernood afirmou incisiva. – Acha que o assunto está esfriando e que a polícia esmoreceu. Isso dará a ele confiança.
Margareth saiu da proteção das rochas, andando pela orla com as mãos nos quadris. A luz do entardecer, começava a dar espaço para a escuridão da noite. Evernood voltou-se para ela.
— Não desista, Meg. Você sabe que estou certa. Viu com seus olhos quem entrou por essa passagem, esses dias…
— Como sabe que não é um destes?
— São peixes pequenos, mesmo que tenham alguma influência. Não têm capacidade e engajamento para articular algo assim. Junte tudo que sabemos desde o início, desde que o padre foi morto! Sabe que tenho razão.
Margareth se voltou para a amiga, encarando-a, disposta a dar mais um dia e, de repente, foi de encontro a Elizabeth, empurrando-a contra as rochas.
Assustada, porém entendendo a situação, Evernood virou seu olhar para a passagem. Estava prensada pelo corpo de Margareth, contra o monte de pedras que dava guarida à elas
— Pegamos ele! Cretino desgraçado! – Elizabeth rosnou.
Margareth foi até uma sacola pousada em uma das rochas, abriu-a revelando um grande equipamento. Ligou-o. Não sabia muito bem como lidar com ele.
— Está me ouvindo?
Falou numa espécie de bocal. Barulhos e chiados soram vindos dele.
— O que está fazendo, Meg?
Evernood resmungou para a detetive de polícia. Ao mesmo tempo que Elizabeth se escondia, reparou que o som daquele aparelho chamara a atenção do suspeito. Ele havia se virado, olhando a margem do rio, além das rochas. Pouco depois, retornou, entrando através da passagem.
— Estou aqui.
Uma voz respondeu ao chamado pelo equipamento.
— Pegamos o suspeito. Ele entrou. Veja bem quem escolherá para fazer a incursão. Não será fácil, comissário. É um homem importante.
— Quer me ensinar a fazer meu trabalho, Blindwar? Não entrem. Nos esperem. Estamos a caminho.
Margareth encarou Evernood.
— Ouviu o comissário. Não vamos entrar, Beth. Se quer que ele seja condenado, temos que aguardar e fazer pelas vias oficiais.
— Que geringonça é essa?
Elizabeth perguntou irritada. Por ela, pulava no pescoço daquele cretino traidor e acabava com a vida dele, ali mesmo. Entretanto, sabia que Margareth estava certa.
— Greendwish pediu para o prefeito comprar para o nosso departamento. É um rádio de comunicação móvel.
— Um rádio de comunicação móvel? Essa coisa é maior que minha caixa de correio!
— Foi usada na guerra com sucesso. – Blindwar resmungou. – É a última palavra em comunicação.
— Não me peça para carregar esse peso para todo lugar que formos. Só concordei antes, porque vi que lhe agradava e não sabia do que se tratava. – Elizabeth grunhiu irritada.
— Não gosta de tecnologia, Beth?
— Amo quando ela me facilita. Essa coisa… – apontou o equipamento – me deu dor nas costas.
***
O tempo estava passando e nada de Greendwish chegar com seus policiais. A paciência de Evernood chegou ao fim.
— Fique aqui. Vou entrar e ver o que esse canalha está fazendo.
— De jeito nenhum!… Se entrar, eu vou junto.
Evernood a fitou confusa.
– Ora, também estou irritada com a demora do departamento. – Margareth explicou. – Se não prendermos esse homem hoje, me demito da polícia.
Blindwar retirou a sua arma do bolso do sobretudo e as duas se esgueiraram pelas rochas para chegarem à abertura do túnel, que nada mais era do que uma saída do esgoto da cidade. Greendwish finalmente chegou, conseguindo ver que as duas entraram sem o esperarem com a força policial.
— Merda! – Ele resmungou. – Evernood já contaminou Margareth.
— Senhor?
Um policial que estava a seu lado, perguntou sem entender.
— Nada, policial! Já tem gente “dos nossos” na frente do puteiro?
O comissário perguntou sem medir as palavras. O nervosismo e a cólera já o tomara por completo, deixando que as palavras chulas saíssem por sua boca, sem freios.
— Sim, senhor. O policial Reynold está de prontidão com alguns policiais.
— Chame Dashwood.
— Sim, senhor.
Dashwood se aproximou e pela expressão no rosto do chefe, previu que a noite seria difícil.
— Senhor… Alguma orientação a mais?
— O que acha? Blindwar se enfiou por esse esgoto com Evernood.
Se o comissário reparasse melhor em seu subordinado, veria que o detetive tentava a custo disfarçar o riso.
— Nós demoramos a chegar, senhor. Certamente Blindwar viu algum movimento e não quis deixar o suspeito escapar.
O detetive desculpou a colega de trabalho. Quando foram avisados, demoraram tanto a organizar a batida policial, que ele mesmo achava que o sujeito já havia ido embora.
— Então, da próxima vez organize tudo rápido! – Esbravejou. – Ficará com esse encargo, daqui para frente.
O riso que teimava em sair dos lábios do detetive morreu ao escutar a determinação de seu chefe.
— Ordene aos policiais que prendam qualquer um que entrar ou sair por esse duto e, pegue a sua arma. Vamos atrás delas.
***
As galerias de esgoto eram escuras e fedorentas. Gotículas caíam do teto de pedras, cortando o silêncio quando atingiam o veio de água que corria pelo chão.
— Vamos por aqui.
Evernood apontou um desvio na galeria.
— Por que acha que é por aí?
— Porque não tem água, as pedras das paredes são mais novas e…
— … tem uma luminosidade maior. – Margareth completou o raciocínio da amiga. — Este túnel não faz parte da galeria de esgoto. Foi construído depois.
— Fale baixo. Tem muito eco e não sabemos se tem capangas vigiando.
Calaram-se e continuaram percorrendo o túnel até que chegaram a uma abertura de onde emanava uma luz amarelada. Recostaram-se, cada uma em um dos lados da saída, observando o que havia após a abertura.
— Este é o pátio interno de que Edwin falou. — Evernood sussurrou.
Havia cordas estendidas com lençóis e roupas secando. Duas mulheres conversavam próximas a uma porta, enquanto fumavam. Um homem estava sentado em um barril de cerveja, amolando uma faca.
— Vamos esperar que as mulheres entrem. – Evernood determinou.
— E o homem?
— Esse não sairá de lá. Parece estar de vigia. Temos que arrumar um jeito de chamar a atenção e atraí-lo para cá.
Poucos minutos depois, as mulheres entraram. As duas detetives recuaram para que a luz não as revelasse e Margareth pegou uma pedra no chão. Começou a roçá-la contra a parede, gerando um som desagradável aos ouvidos. O homem levantou-se, aproximando da passagem com cuidado. Tentava mirar dentro daquele espaço escuro. Novamente escutou o som, e decidiu entrar com a faca em punho.
Tudo escureceu para o rapaz.
Elas correram em direção à porta dos fundos do prostíbulo.
— Você o atingiu com força. Ele pode ter morrido.
Margareth ralhou com a detetive particular, ainda aos sussurros.
— Não morreu, não. – Evernood respondeu. – Ele tinha a cabeça dura. Senti que amassou a coronha de minha pistola. Vou pedir ressarcimento para a delegacia.
Gracejou, sabendo ser impossível a coronha ter amassado.
Aquela porta dava para uma cozinha bagunçada. Caixas de bebida espalhadas por toda parte, faziam a proteção delas, escondendo-as dos olhos de mulheres que preparavam alimentos no fogão e na bancada. Blindwar fez um gesto para que Elizabeth visse além da murada de caixas. Era outra porta que parecia levá-las para o interior do prostíbulo.
Agacharam-se para não serem vistas e engatinharam até ultrapassarem a porta. O corredor era mal iluminado como aquele em que estiveram na outra noite, porém este, diferentemente, as portas dos aposentos estavam abertas. Escutaram vozes vindas de um deles. Aproximaram-se para escutar.
— Será que não entende que não posso vir aqui, Target!
O homem esbravejou, recebendo uma gargalhada de mulher em resposta.
— O que há, monsenhor? Já não aprecia mais a minha mercadoria?
— Pare de brincadeira! A família Scott sumiu. O boticário e o interceptador foram presos. Não posso ser visto aqui, ou mesmo com você, senão poderão me ligar ao assassinato de Javier.
Evernood e Blindwar se entreolharam. Precisavam escutar mais coisas. Não podiam facilitar.
— Ah, então está pensando só em você! Se eu cair, pode ter certeza de que o levarei junto. Você chamou aquela detetive particular para entrar no caso e ela veio aqui há três dias.
— Errei na minha estratégia, eu sei. Achei que se a colocasse no caso, a polícia dificultaria para ela e eles se distrairiam.
— Eu vi a distração que causou na polícia… Evernood veio com uma policial e estavam bem atentas pelo que percebi. O caso é que tenho mais três meninas e um menino sendo alimentados, sem que você arrume compradores para elas. Não posso tê-los presos aqui dentro. Arrume algum de seus amigos pervertidos para tirá-las daqui. Não fui eu que quis matar o padre, gerando essa confusão toda!
— Ele descobriu o nosso esquema. Queria que o deixássemos vivo?
— O padre era problema seu, monsenhor Benoit. Deveria ter sumido com ele, como falei.
— Contratar um assassino para matá-lo a céu aberto? Era esse seu plano. Aí sim a polícia cairia de garras nesse caso. Seria uma comoção para a comunidade da igreja em que ele atuava.
Evernood e Blindwar já haviam escutado tudo que necessitavam para prender o clérigo e a cafetina. Mas como o fariam sem que os capangas do bordel interferissem?
Como se Margareth escutasse os pensamentos de Elizabeth, sussurrou:
— Vamos sair. Temos o que precisamos. Deporemos contra ele. À essa hora Greendwish já deve ter cercado o prédio.
A contragosto, Evernood acenou afirmativamente para a amiga, mas antes de se retirarem, foram rendidas por dois homens.
— Larguem as armas!
Um dos homens falou. Encostaram armas nas costelas das duas. Não tiveram alternativa. Elevaram as mãos se rendendo. As pistolas foram retiradas de suas mãos e as empurraram para dentro do cômodo. A cafetina e o monsenhor assustaram-se, momentaneamente.
— Elas estavam à espreita.
A cafetina se recompôs e riu.
— Aí está nossa solução, Benoit. Dessa vez, deixe que eu cuido disso. Não será a céu aberto. Tenha certeza de que os corpos delas não serão encontrados.
— Larguem as armas agora!
Uma voz conhecida chegou aos ouvidos das duas detetives. Os dois capangas reagiram, apontando as armas para o detetive Dashwood e o comissário Greendwish. Blindwar e Evernood, imediatamente, atuaram para que os homens não atirassem. Os golpes que aplicaram nos captores foram tão incisivos que jamais os policiais puderam imaginar tal ação por parte de duas mulheres. Os capangas foram desarmados.
Na confusão, a senhora Target e o monsenhor partiram em direção à uma porta oposta, no canto da sala. Quando abriram…
— Vão a algum lugar?
Uma pistola surgiu apontada para o rosto deles, fazendo-os recuar sob a mira da arma.
— Edwin, já falei o quanto lhe aprecio?
Elizabeth comentou, expirando todo o ar dos pulmões e relaxando.
— Algumas vezes, senhorita.
O mordomo respondeu impassível.
****
Evernood estava recolhida há uma semana. Depois de tudo desvendado, ela fez seu luto pela morte do amigo. Naquela manhã, resolveu ir à igreja, como fazia uma vez por semana, desde que voltara há pouco mais de três anos para a cidade. Quando conheceu o clérigo, apreciou muito a linha filosófica dele. O padre não era do tipo que julgasse alguém, diferentemente dos outros padres que conhecera.
Estava há alguns minutos reparando cada nuance do Cristo crucificado no retábulo atrás do altar, quando sentiu alguém se sentar a seu lado. Mesmo em sua distração, não precisou muito para reconhecer o perfume de quem era.
— Ele tentava me convencer de que Deus é onipresente e há um motivo para que pessoas de boa índole morram de forma dramática.
— E nunca conseguiu.
Margareth retrucou, sabendo que a amiga estava melancólica.
— Conseguiu sim. Ele tinha uma boa retórica. – Evernood sorriu ao responder.
— Então aceita que há um Deus e que nada sai fora do controle dele?
— Não sei sua opinião sobre Deus, Meg, mas não acredito que Ele dite a morte dos seres humanos. Eu, por exemplo, acredito que a morte é inevitável e que Ele deu aos homens o poder de conduzir as próprias vidas. Pode até saber o que fazemos, mas os responsáveis somos nós.
Margareth pensou sobre o que ela havia dito e imediatamente pensou em seu amor pela amiga.
— Acredita que Ele nos condenaria por amar alguém indevido?
— O que chama de amor indevido?
— Bem, amar alguém que não se deveria amar…
— E quem condena? “Ele”? – Apontou para o altar. – Acredito que condenaria se fosse um amor doentio, como por exemplo, se impor sexualmente sobre alguém vulnerável. Desejar sexualmente uma criança não é amor. É indícios de desejo pela submissão e controle de outro ser.
— Mas Hayek deseja homens.
— Sim, mas são pessoas que tem a capacidade de se defender, amar e aceitar esse amor. O pecado de Hayek é para com a própria família, pois ele não ama a mulher e é casado unicamente para mostrar que é um “cidadão de bem”. Não o condenaria se não enganasse outros, usufruindo de prazeres pagos, enquanto mostra para seus pares ser um bom marido.
— Então acredita que se ele assumisse os desejos que tem por outro homem, não seria pecado?
— Não falo de desejo. O desejo pode ser a consequência natural do amor. Quando é dessa forma, não creio que Deus – apontou para o alto – se importe. Afinal, não é o que as religiões, em sua essência, pregam?
Margareth silenciou, pensativa. Evernood observava a amiga introspectiva.
— Sabe, Meg, durante muito tempo me condenei por muitas coisas, até que fui atrás de outras culturas, outras formas de pensar, pelo mundo todo. Javier era um sacerdote instruído. Lia sobre tudo que lhe caísse nas mãos e analisava a tudo. Nunca me condenou pela minha forma de agir e pensar. Apenas me dizia que haveria consequências sociais sobre o que pensava e que eu teria que ter cuidado dentro da sociedade que vivia. Nunca me falou que Deus me condenaria por isso.
Margareth assentiu, ainda silenciosa.
Evernood encheu seu coração de esperanças. Olhou para o retábulo, encarando a face daquele que fora exposto a uma morte por seus próprios pares.
— Vamos, Meg. Almoça comigo?
Margareth animou-se.
— Vamos. Quer almoçar em um restaurante de comida italiana que conheço? É um pouco distante aqui do centro, mas a comida é ótima.
Evernood se levantou para sair, falando:
— O que estamos esperando? Conheço a culinária italiana, pois visitei Toscana, mas não sabia que tinha um restaurante aqui com essa especialidade.
— Visitou Toscana? Eu fui a Veneza, três verões atrás…
Saíram da igreja entusiasmadas. Estavam em sintonia, outra vez.
Fim.
Nota:
1 – Gotcha é uma expressão informal utilizada principalmente no inglês falado e surgiu da contração de I have got you. Veja:
I have got you→I got you →got you →got ya→gotcha
O primeiro significado pode ser traduzido para o português como entendi, e é utilizado para se falar que compreendeu alguma coisa, que está tudo claramente assimilado. Também é possível utilizar a expressão após uma brincadeira ou pegadinha com alguém próximo, significando te peguei em português, ou mesmo, “me pegou”.
2 – Chimar: Zunir, emitir som de reprovação.
Um pouco atrasada por aqui, mas amando esses casos policiais. E esse romance a conta gotas? Essa escritora está deixando todos em agonia, não apenas as personagens. Cuidado Carol, está tomando muita responsabilidade para si. Quando resolver parar de torturar a todos terá que arrebentar! Kkkk, brincadeira, pois sabemos que isso não será um problema para ti.
Beijo
Cheguei pra abalar!!
Carollll,minha filha, sensacional!! Que duplas fantástica, de completam!! Evernood fica pianinho quando Meg de reta…e nem começou a porra da relação..bom, diretamente não, mas adoro esses flertes!!! Meg com suas dúvidas…foi bom a parte do antro pq elas de beijaram e Ever aproveitou bem pra dar uns amassos e tome de beijo xonado!
Adoro as estórias mesmo pq n é focado no romance, esse é consequência da estória e n o contrário!!
Tava longe, mas estou como a terra, transição , transformação ou como queira chamar por como as coisas estão!! Kkkk
Reforma íntima moral, espiritual, mental e por aí vai!! Punk mesmo!!
Espero q esteja tudo bem por aí, deixo logo um feliz Natal e que seu pai esteja melhor cada dia!!
Abraço de luz!!
Carol assim o bj pode melhorar. Rssssss
Caramba as duas são uma ótima dupla antcrime, cara amooooo histórias policiais, acho que já falei né? Então…
Super amei, esperando o próximo episódio. ??
Até tu Marcela? kkkkk Tá querendo logo lesco-lesco entre elas também? rsrs
Então, queria duas personagens fortes. Nada de uma ser fodona e a outra não. Elas tem que ser parceiras e resolverem tudo juntas. rsrs
Agora o próximo demora um pouquinho… eu acho. rs Como disse, são casos, episódios mesmo, então, escrever demora um pouquinho mais, pois tenho que condensar as ideias para cada caso caber numa única parte. Vamos ver se consigo terminar o próximo por esses dias. rs
Um beijo grande.
O dia passou se arrastando, tamanha era a minha vontade de ler este capítulo. Foi osso, mas valeu a pena a espera. Rs…
Cada vez melhor, Mestra!
Beijos!
Ô, minha amiga, maga das letras! Não sabe como fico feliz de saber que está gostando. Brigadão, Maga!
Um beijo grandão pra ti!
Muito show
Obrigada, Carla!
Que bom que está gostando!
Um beijo grande para você!
Maravilhoso! É só o que posso dizer.
Concordo em tudo com a amiga aí. Já tá na hora delas se pegarem. hahahahahaha
bj
Nossa! rsrs Vocês são apressadinhas. kkkkkkkkk
Não se preocupe, elas vão se entender. Não vou deixar as duas na seca. kkkkkkkk
Valeu, Meg!
Beijão!
Há…
Mto bom…
Mas, tá mais q na hr dessas 2 se pegarem né.
k k k
Adorei Carol…
Oi, Nádia!
kkkk Vocês adoram um lesco-lesco, né? kkkk
Então, vamos com calma, pois imagina essas moçoilas, viverem naquela época e ainda por cima quebrando tabus? rs Vai rolar. Pode deixar que elas vão se entender! rsrsrsr
Obrigada, Nádia!
Um beijão pra ti!