Cerca de seis dias antes da data prevista para nosso menino nascer, recebi uma ligação do diretor da faculdade que fiz minha graduação em Salvador, ele disse que queria conversar comigo no dia seguinte, mas não adiantou o assunto. Eu não queria deixar a Clara sozinha, liguei para a minha mãe, ela aceitou prontamente a função.
No horário e local marcados, encontrei com o meu ex diretor, conversamos muito sobre a época que estudei lá, minhas notas, a ONG e ele propôs que eu fizesse parte do seu grupo de mestres:
– Muito obrigada pelo convite, realmente me sinto honrada, mas vou fugir dos meus objetivos, nunca quis lecionar.
– Você tem certeza que nem quer um tempo para pensar, Eduarda? Você fez mestrado e o principal objetivo do curso é esse.
– Tenho. Não quero tempo para pensar porque essa é a minha resposta definitiva. Sou pesquisadora e palestrante, não professora.
– Então aceitaria ministrar algumas palestras sobre expansão marítima portuguesa e sua influência no Brasil para os graduandos e pós graduandos em história?
– Isso sim eu aceito – sorri.
Começamos a acertar algumas coisas como possíveis dias que seriam as palestras, valores que eu receberia entre várias outras coisas quando meu celular tocou e antes mesmo de verificar, me desculpei:
– Desculpe-me, não costumo deixar meu celular ligado quando estou em reunião, mas tenho um assunto importante a resolver – disse isso já atendendo a ligação – Oi mãe, aconteceu alguma coisa? – meu coração foi à boca assim que vi o número do celular de minha mãe.
– Filha, a Clara está sentindo muitas dores.
– Deixa eu falar com ela.
– Oi, amor – ela disse num fio de voz.
– Amor, o que você tem? – estava muito preocupada.
– Estou sentindo muita dor. Acho que já são as contrações porque sempre que volta fica mais forte.
– Tem quanto tempo que está com essas dores?
– Começou uns quinze minutos depois que você saiu.
– Tá, passa o celular para minha mãe de novo e fica tranquila que vou resolver isso. Beijo, amor.
– Queria que você estivesse aqui também.
– Daqui a alguns minutos estarei com você, não precisa se preocupar.
– Tudo bem, vou esperar, beijo.
– Oi filha!
– Mãe, no quarto do João, em cima da poltrona, tem duas bolsas que tem várias coisas dele e na outra tem da Clara. Pega as duas, chama um taxi que daqui a pouco te ligo porque vou ligar para a Rafa para saber em qual hospital ela está agora.
– Certo, farei isso.
– Te ligo já, beijo.
Encerrei a ligação, procurei o número da minha amiga no aparelho celular, disquei, ela demorou um pouco a atender.
– Fala pessoa chata.
– Amiga, parece que o João quer nascer alguns dias antes do previsto. A Clara está sentindo dores que parecem ser contrações – disparei.
– Calma! Deixa-me falar com ela.
– Eu não estou em casa, minha mãe que me ligou agora e eu falei com ela.
Minha amiga pediu para que a Clara fosse para o hospital que ela estava naquele momento. Liguei para minha mãe, o taxi já estava chegando e me esperavam para avisar para onde iriam:
– Dr. Fernando, desculpe-me, mas tenho que ir agora. Meu filho está nascendo.
– Tudo bem, Eduarda. Parabéns e te ligo na próxima semana para nos reunirmos novamente para que possamos acertar os detalhes que ainda faltam – disse com cara de poucos amigos.
– Ok, estarei a espera – Disse isso já com a porta da sala aberta.
Fui direto para o hospital, mas para meu desespero peguei um congestionamento que deixou o trânsito mais lento do que o normal. Consegui chegar quase uma hora depois que falei com a Rafa, peguei meu celular e liguei para ela:
– Rafa, acabei de chegar ao hospital, o trânsito de Salvador está uma bosta, minha mãe já chegou com a Clara?
– Já sim, Duda. Estamos indo para a sala de cirurgia, se você correr um pouco consegue nos alcançar. Deixei o celular ligado só porque sabia que você estava chegando.
– Me dá cinco minutos.
Na recepção procurei informações sobre a ala materna, corri o máximo que pude e consegui encontrá-las:
– Amor – a voz da Clara estava falha, seus olhos semi cerrados.
Segurei sua mão:
– Rafa, porque ela está assim?
– O João está muito grande para ser um parto normal, a Clara estava sentindo muitas dores e tivemos que sedá-la – fez uma pausa como se estivesse me analisando – você está muito agitada, não vai entrar conosco.
Resolvi não insistir, pois sabia que poderia acabar atrapalhando. A minha esposa apertou um pouco minha mão, beijei-lhe a testa:
– Não demora, amor. Vou ficar aqui fora te esperando – ela sorriu e balançou a cabeça quase que imperceptivelmente – te amo – depositei um suave beijo em seus lábios. Levaram minha Clara para a sala de cirurgia.
Alguns minutos depois, senti meu celular vibrar em meu bolso, atendi sem ver quem era:
– Alô.
– Viadinho, o que você tem?
– Continua com a mesma mania de sentir quando não estou bem? – tentei brincar.
– Você sabe que isso nunca vai parar.
– O João está nascendo.
– Jura? Então é por isso que está tão angustiada, coração apertadinho? Caralho, você vai ser pai, ops, mãe… ahh sei lá.
Riu as gargalhadas, eu estava nervosa, mas acompanhei e quando conseguimos nos acalmar ela me perguntou o nome do hospital que estávamos:
– Sei que você está precisando da grandona aqui, chego em alguns minutos, beijo.
Encerremos a ligação, minha mãe estava super tranquila:
– Mãe, vou descer para comprar alguma coisa para comer, já volto. Qualquer coisa liga no meu celular.
– Pode deixar.
Por mais que o médico que nos acompanhou em Lisboa e a Rafa dissessem que era para ficarmos tranquilas, que o João e a Clara estavam ótimos e que tudo ia correr muito bem, eu estava angustiada. Vocês sabem meu sexto sentido que já me avisou sobre encrencas que possivelmente eu estaria passando. Pois é, ele estava trabalhando mais uma vez.
Fiquei perambulando nas proximidades do hospital, a Dani me ligou quando chegou e ficou me fazendo companhia, conversamos um pouco, ela tentava me distrair a todo custo.
– Caralho, você pode ficar calma?
Estávamos em uma pracinha nas redondezas do hospital, sentadas em um banquinho. Minhas pernas esticadas para frente, mas eu balançava insistente e inconscientemente. Parei o que estava fazendo:
– Não consigo.
– Eu sei, mas vai adiantar alguma coisa?
– Não – respirei fundo – vamos voltar no hospital, quero saber se já têm alguma notícia.
Assim que chegamos, encontramos minha mãe que ficou conversando com a Dani e eu fui ver se conseguia alguma notícia, mas sem sucesso. Fui pegar um café – coisa que eu odeio, mas naquele momento eu achava que precisava para ver se me acalmava. Quando eu estava retornando com aquele copo super quente em minha mão, vi que a Rafa falava com as duas, me aproximei lentamente, olharam para mim, fiquei desconfiada.
– Duda, senta aí.
– O que aconteceu?
– Você pode sentar?
– Não.
Ela respirou fundo, sua fisionomia denunciava que alguma coisa ruim aconteceu. Completei:
– Cadê a Clara?
– Está no quarto descansando.
– E o meu filho?
– Desculpa amiga, eu fiz de tudo, o parto foi muito complicado, a Clara perdeu muito sangue. Demoramos muito para conseguir controlar a hemorragia. O João não conseguia respirar sozinho, enquanto fazíamos os procedimentos necessários para ajudá-lo na respiração, ele teve uma parada respiratória, tentamos reanimá-lo, mas ele não resistiu.
No mesmo momento eu tive que procurar um lugar para sentar, a Rafa continuou falando várias coisas, mas eu não escutava. Olhei para as três que estavam em minha frente, todas com as fisionomias de preocupação:
– A Clara já sabe? – perguntei num fio de voz.
– Já. Ela acordou quando tentávamos reanimar o João, viu toda a correria, ficou muito agitada e por isso que tivemos que sedá-la novamente, senão abriria os pontos. Mas ela viu tudo.
– Eu quero ver a minha mulher – disse já me levantando, entreguei o café que nem toquei para a Dani.
– Duda, ela está dormindo, não pode receber visitas agora – Rafa tentou me conter.
Fui em direção a ela.
– Rafaela, qual a parte do “Eu quero ver a minha mulher” você não entendeu? Eu vou vê-la você querendo ou não. Quero estar ao seu lado quando ela acordar.
Minha amiga olhou para a Dani e para a minha mãe, balançou a cabeça num gesto afirmativo:
– Tudo bem, me acompanhe.
Passamos pelo corredor gelado que levava até o quarto que a minha Clara estava, Rafa abriu a porta, minha esposa estava lá, dormindo tranquilamente:
– Fique a vontade – sussurrou minha amiga e saiu fechando a porta.
Caminhei até a cama, beijei a testa da Clara e sentei ao seu lado, na altura da sua cintura. Acariciei eu rosto, fiz todo o contorno, sabia do quanto que ela estava sofrendo com a perda do nosso filho. Ali eu decidi que por mais que eu estivesse sofrendo também, não ia deixar transparecer para a minha esposa, precisava ajudá-la a passar por isso e não ia conseguir se ela me visse daquela forma, chorando tanto.
Perdi a noção do tempo que fiquei ali lembrando de tudo o que preparamos, tudo o que planejamos para nosso filho. O sorriso da Clara quando eu concordei com a gravidez. Curtimos tudo ao máximo, eu não reclamava nem quando ela tinha aqueles desejos loucos – eu ia e voltava com a cara mais feliz do mundo – quando ela saia correndo para o banheiro quando enjoava – eu ia atrás para ajudá-la com os cabelos, lavar seu rosto, a deitar na cama para se recuperar do baque. Sorri com essas lembranças.
Percebi que a Clara começava a se movimentar um pouco na cama, abriu os olhos, sorri para ela:
– Oi – depositei um suave beijo nos lábios.
– Desculpa – disse num fio de voz.
– Pelo o que? – me fiz de desentendida.
– Nosso filho…
Não deixei que ela terminasse, coloquei meu dedo em seus lábios:
– Você não teve culpa de nada, mas depois conversamos sobre isso, descansa agora.
Depositei mais um suave beijo em seus lábios, meus olhos começaram a lacrimejar. A Clara levantou a mão direita e enxugou o caminho que a lágrima solitária fazia, sorriu timidamente:
– Promete que vamos tentar de novo daqui a alguns meses? – ela não desviava o olhar.
– Claro amor, quando você quiser – sorri.
Ficamos alguns minutos naquele contato, não falávamos nada, nossa dor era dita através do nosso olhar:
– Du, pega um pouco de água para mim?
Afastei-me um pouco dela, peguei sua água, a ajudei a levantar um pouco por causa dos pontos, ela bebeu e me entregou o copo:
– Me diz como foi lá com o reitor.
Ele queria que eu integrasse o grupo de mestres da Faculdade lecionando sobre as expansões marítimas portuguesas na época do descobrimento. Tudo bem que é um assunto que eu adoro, estudei muito, mas eu disse a ele que estaria saindo do meu propósito, aí ele propôs que eu ministrasse umas palestras num congresso que a faculdade vai organizar para graduando e pós graduandos na área. Aceitei, mas não
conversamos mais detalhes porque minha mãe me ligou e eu vim correndo para cá. Ele ficou de me ligar na próxima semana.
– Desculpa por ter atrapalhado.
– Você não atrapalhou nada, amor. Vocês são mais importantes para mim do que qualquer outra coisa ou pessoa.
– É, mas ele não está aqui conosco.
– Hei – sentei novamente ao seu lado e segurei sua mão – deixa disso. Ele não está aqui, mas você está e isso é o que importa. Apesar de não termos conhecido nosso filho, nós já o amávamos, mas por circunstâncias da vida, ele não conseguiu sobreviver. Nós não vamos desistir de aumentar nossa família – fiz um carinho em seu rosto.
Continuamos conversando até que apareceu uma enfermeira e aplicou uma medicação no soro da Clara, pouco depois minha esposa dormia serenamente, minha mãe entrou no quarto:
– Como ela está, filha?
– Está bem, mas sentindo-se culpada pelo que aconteceu.
– Mas, a culpa não foi dela.
– Eu sei e estou tentando convencê-la disso – disse com os olhos cheios de lágrimas novamente – fica um pouco com ela, mãe? Preciso de um pouco de ar.
– Claro, Duda! Pode ir tranquila.
Saí do quarto calma e lentamente:
– Aonde você vai, Duda?
Olhei para trás e vi a Rafa junto com a Dani indo em minha direção:
– Vou dar uma volta.
– Você não está bem para dar uma volta – Rafa pronunciou-se
– Eu estou ótima.
Não conseguia mais segurar as lágrimas, sentei na primeira cadeira que vi pela frente e desabei. Desandei a chorar, tentava, mas não controlava as lágrimas, minhas amigas deixaram que eu colocasse toda a minha angústia para fora. Depois de muito tempo, passei a mão no rosto e levantei indo em direção ao banheiro, as duas pareciam minhas seguranças.
Lavei meu rosto e desci até a lanchonete, comprei água, bebi todo o conteúdo da garrafa de uma só vez e fui em direção a saída sem pronunciar nenhuma palavra:
– Aonde você vai, Duda?
Virei, respirei fundo:
– Vou em casa tomar um banho e volto para passar a noite com a Clara.
– Não há necessidade…
Não deixei minha amiga completar:
– Eu venho passar a noite com minha mulher – a fuzilei com os olhos.
Ninguém disse mais nada, saí e quando entrei no carro, desandei a chorar novamente, depois de alguns minutos ouvi leves batidas no vidro do carro, olhei e era a Dani. Destravei, ela entrou:
– Vem pra cá, eu te levo em casa.
Não tentei relutar, sai do carro e fui para o banco do carona. Sentei, liguei o som, voltei a chorar e lembrar desde o momento que recebemos o resultado positivo da gravidez da Clara até aquela manhã que eu a deixei em casa. Quando dei por mim estávamos na garagem de casa.
Assim que entramos fui para o quarto, mas quando passei pelo que seria o do João, parei na porta e fiquei olhando para dentro dele, suspirei:
– Vai tomar seu banho, irmãzinha – Dani disse suavemente acariciando meus cabelos.
Depois de quase uma hora chorando debaixo do chuveiro, saí um pouco melhor e já arrumada para ir para o hospital, encontrei a Dani na cozinha:
– Encontrei algumas coisas na geladeira e esquentei para a gente porque estou morrendo de fome – sorriu.
Não consegui não sorrir da tentativa da Dani em me fazer me sentir um pouco melhor, não resisti e a abracei.
Ficamos vários minutos naquele contato, me afastei dando um estalado beijo em seu rosto:
– Te amo, grandona.