Capítulo 55
No dia seguinte, evitei a Clara o tempo inteiro. Ela me ligava, me procurava nos lugares que ela sabia que eu tinha que estar, mas eu conseguia dar um jeito de escapar. Minhas duas amigas e a Bruna tentavam a todo custo me convencer a conversar com ela, mas eu não conseguia. Estava com medo de me decepcionar mais uma vez e se acontecesse nem sei o que seria de mim.
Passei a semana da mesma forma, evitando a Clara a todo custo, não dormia mais no meu apartamento porque ela tinha as chaves. Cada dia era em um lugar diferente e nunca dizia as nossas amigas em comum. Sei que essa atitude que eu estava tomando era infantil, mas eu não conseguia parar para ouvir o que a Clara tinha para me dizer, era uma coisa mais forte do que eu. Provavelmente obra da Aurélia.
A fundação da ONG era no sábado. Na sexta-feira foi inevitável encontrar com a Clara na última reunião para acertamos os últimos detalhes com os colaboradores, com a organização da festa, com imprensa. Foi um dia desgastante principalmente pelo fato de olhar para a Clara o tempo inteiro e não poder falar com ela sobre nosso problema pessoal. Meu coração estava tão disparado que eu tinha a impressão que as outras pessoas estavam ouvindo. Eu transpirava demasiadamente e não conseguia me concentrar na reunião:
-Eduarda, preciso conversar com você. Por favor, fique depois que todos saírem – foi o que a Clara me disse olhando fixamente para mim assim que a última reunião do dia terminou por volta das 220min.
Esperei todas as pessoas saírem da sala, sentei novamente:
-É sobre a ONG?
-Você sabe que não.
-Então não há necessidade de estarmos aqui.
-Há sim, quero saber por que a minha mulher está dormindo fora de casa durante toda essa semana, não atende minhas ligações, não fala olhando em meus olhos como estou acostumada.
-Cadê a Regina? – ignorei sua pergunta
-Está lá em casa se recuperando. Como está a sua mão?
Levantei a mão como que apontando para o teto e mostrei para ela:
-Levei dois pontos em dois dedos, sinto dor, não consigo fazer várias coisas simples como tomar um banho direito e pilotar a minha moto, mas tudo bem. Estou levando.
-Essa sua ironia chega a ser ridícula, sabia?
-Estou respondendo a sua pergunta.
-Você pode voltar a falar comigo normalmente?
-A Regina vai morar com você? – ignorei mais uma vez sua pergunta.
-Você sabe que não.
-Eu achava que sabia, mas hoje não sei mais de nada.
-Como assim?
-Você tem certeza que não sabe? Deixe-me só lhe refrescar a memória: no sábado tivemos uma noite perfeita, na madrugada quando já era seu aniversário te pedi em casamento oficialmente, fizemos amor de forma maravilhosa, como sempre, acho que essa noite foi até mais do que nunca. No domingo o dia começou perfeito, só conseguimos sair de casa por volta das 13h com muito sacrifício e passamos uma tarde leve até o momento que sua mãezinha apareceu, te ofendeu – ocultei as ofensas que ela me fez – e não consegui me controlar partindo para a violência física, acho que foi meu único erro. E o pior foi que você foi socorrê-la e quem fez isso comigo foi a sua irmã e quem me levou a hospital foi a sua ex namorada que se tornou minha amiga.
-Se eu não socorresse a Regina, quem faria isso?
-Todos sabem a boa peça que ela é.
-Eduarda, eu não podia negar socorro a minha mãe, ela pode não prestar, mas é minha mãe.
-Você poderia ter se preocupado comigo um instante pelo menos?
-E quem disse que não me preocupei?
-Sua atitude. Só foi me ligar depois de muito tempo.
-Eu tive na casa de Dani para te buscar, mas você tinha sumido.
-Eu sei. Mas, o que você queria de mim? Num ato irracional bati em sua mãe porque ela estava te ofendendo na minha cara e você simplesmente vai ao seu socorro e só me liga horas depois.
-Eu queria que você entendesse que apesar de tudo ela continua sendo minha mãe, eu não a convidei para meu aniversário, nem sabia que ela lembrava da data, foi uma surpresa para mim. Sabia que outras pessoas iam ao seu socorro e ninguém faria isso pela Regina. Duda, deixa de ser tão cabeça dura, isso não vai te levar a nada. Como eu ia te ajudar e ver que minha mãe estava jorrando sangue pela boca? Eu não sabia a gravidade que aquilo estava, sei que você quando está com raiva arranja força não sei de onde e o estrago que você fez foi enorme, ela quebrou quatro dentes na parte superior e dois na inferior. Fez uma cirurgia para retirar a raiz e vai fazer o implante.
-E você vai pagar, é claro.
-O que você queria?
-Que ela ficasse banguela e me esquecesse, aliás, esquecesse novamente que tem filhos com o Sr. Augusto. Minha felicidade ia ser enorme.
-Vamos sair daqui, comer alguma coisa e conversar melhor.
-Não tenho mais nada para conversar, Clara. Você sabe que para casarmos tive que impor uma situação e ela não está sendo cumprida. A única pessoa que odeio está em seu apartamento e feliz da vida por ter conseguido isso.
-Eduarda, deixa de ser infantil e me escuta – ela estava visivelmente irritada. Já tinha se levantado e ia em minha direção. Caminhei para a porta.
-Nos vemos amanhã a noite.
Disse saindo da sala de reuniões, passei em casa para pegar uma roupa e liguei para meu amigo Dantas que passou toda a semana comigo vendo o ritmo de trabalho e tomando conhecimento do projeto. Para minha sorte ele morava sozinho também. Pedimos uma pizza e fui tomar meu banho, ao sair, comemos, conversamos bastante, até que consegui rir um pouco:
-O que você tem?
-Nada, por quê?
-A gente pode ter ficado muito tempo sem se ver, mas eu te conheço o suficiente para saber que algo te atormenta e tem que ser grave para lhe deixar distraída, melancólica, sorriso difícil e mau humor.
-Nossa, o mesmo Vitor de sempre.
-Só preciso prestar um pouco mais de atenção em você. Vamos logo, me conta o que tanto te atormenta.
-A historia é muito longa, nem sei por onde começar.
-É com a Clara, né?
Quando estudávamos, eu ainda não tinha noção que eu um dia teria relações homossexuais, muito menos me casaria com uma mulher. Tínhamos nos reencontrado em menos de quinze dias e não encontrei um momento propício para lhe contar a respeito.
-É sim, Vi – suspirei.
-Vamos, senta aqui e me conta a história.
Sentei-me ao seu lado no sofá e desandei a lhe contar tudo, desde o inicio até a conversa que tivemos ainda naquele dia. Precisava de uma opinião de uma pessoa que não conhecesse a Clara, precisava contar isso para alguém já que minhas confidentes – Rafa e Dani – eu não podia fazer isso, pois a Clara acabaria sabendo onde eu me encontrava e iria querer conversar mais uma vez comigo e isso eu não estava disposta a fazer, pelo menos até aquele momento, eu estava exausta desse problema.
Na realidade eu só queria ir para outro país fazer minha especialização, desenvolver meus projetos e outros novos também e ser feliz com minha mulher, nada além disso, mas tudo estava desandando quando menos esperava.
-Por que você é tão cabeça dura, amiga? – Ele me perguntou depois de escutar tudo no mais absoluto silêncio.
-Ela me fez essa pergunta hoje. – olhava para um lugar qualquer na sala.
-Está mais do que na cara que ela só ajudou a tal da Regina por solidariedade e não fez o mesmo por você porque você tinha amigos para fazer isso e a mãe dela não. Por mais que a Regina não preste, não deixa de ser sua sogra e estava precisando ser ajudada naquele momento e a sua mulher era a única pessoa que podia fazer isso.
-Eu sei, mas… Ahh, não sei mais de nada. Quando a Regina está por perto eu perco a cabeça e acabo fazendo besteira.
-Tá, eu te entendo, então vamos fazer o seguinte: como eu estou exausto porque o dia foi muito corrido, cansativo e amanhã temos uma longa noite, vamos dormir porque já são quase 4h. Quando acordarmos você liga para a Clara e marcam para conversar, o que acha?
-Acho que já é tarde demais – disse desanimada.
-Como assim?
-Já está tudo pronto para a minha viagem, meu vôo sai as 020min da madrugada de domingo, saio da festa diretamente para o aeroporto.
-Mas, você não ia só na segunda?
-Pois é! Liguei para a empresa aérea na segunda-feira e perguntei se tinha essa possibilidade, ficaram de retornar se houvesse alguma desistência no vôo de amanhã e assim fizeram na quarta-feira. Já está tudo pronto. As chaves do apartamento vou deixar com a minha amiga Rafaela, a minha moto com a Dani e toda a minha bagagem está pronta para ir a Portugal. Vou precisar que você me leve ao aeroporto – disse chorosa e desanimada.
-Claro que te levo, Dudinha.
-Me promete que não vai interferir em nada nesse meu problema com a Clara? Promete que não vai contar a ninguém dessa minha antecipação da viagem?
-Prometo! Apesar de torcer muito para que vocês duas fiquem juntas, sou seu amigo e conheço a Clara tem cerca de duas semanas mais ou menos.
-Fiel como sempre – esbocei um pequeno sorriso
-Amigo como sempre – devolveu o sorriso de forma amigável.
Fomos dormir logo em seguida, eu estava exausta, mas estava muito tensa por dois motivos: um era que a tão sonhada ONG estaria sendo fundada dali a poucas horas e outro era que eu estava praticamente jogando minha felicidade pelo ralo por causa da minha cabeça dura, mas se tivesse que ser assim, quem era eu para mudar? Acabei dormindo com esse pensamento pessimista que não tinha nada haver comigo.
Não consegui dormir muito por conta da minha ansiedade. Assim que levantei tomei meu banho e saí do apartamento do meu grande amigo. Resolvi ir a praia, precisava me despedir daquele lugar lindo, almocei moqueca de peixe ali perto mesmo e fui assistir o por do sol no Solar do Unhão. Meu celular ficou desligado o dia inteiro, precisava ficar sozinha com meus pensamentos.
Fui para casa, tomei um demorado banho, verifiquei se tudo estava arrumado para a viagem, escrevi uma carta para a mulher que amo:
“Clara,
Venho por meio desta, lhe pedir desculpas por tantos transtornos que lhe causei. Quero lhe agradecer também por ter se entregado a esse relacionamento que tinha tudo para dar certo e ao mesmo tempo dar errado, tenha certeza que se eu pudesse, repetiria tudo, desde o dia que nos conhecemos, lá na Ribeira, até o dia do seu aniversário que por causa da minha cabeça dura que esquentou, acabei estragando o dia que tinha tudo para ser perfeito.
Sabe, com o passar do tempo tive certeza que te amei desde o primeiro instante que pus os olhos em cima de você, mesmo sendo você a me abordar, mas te amei ali mesmo e vou continuar amando até o fim dos meus dias.
Dentro deste envelope tem também as chaves do seu apartamento. Estou lhe devolvendo porque não há mais necessidade de estar com elas já que estou de partida para Portugal e provavelmente quando você estiver lendo isso eu já estarei dentro do avião e a alguns milhares de quilômetros de distância. É isso mesmo, resolvi antecipar mais um pouco minha viagem.
Acho que é isso, me perdoa por ser tão covarde nesse momento, mas perdi minhas forças para lutar por nós duas, pois apesar dos nossos problemas não terem sido muitos, foram intensos e cansativos.
Até a minha volta – que não sei quando vai ser, Amo você e é para sempre.
Beijo
Du”.
Liguei para Vitor para avisar que eu já estava pronta e o esperando para irmos para a festa, ele me informou que estava a caminho e que chegaria em quinze minutos mais ou menos.
Minha moto eu já havia deixado com a Dani na semana eu estava impossibilitada de pilotar por causa dos pontos na mão. As chaves do meu apartamento, deixei que meu amigo Dantas entregasse a Rafa, pois eu não queria nenhum tipo de despedida, eu ia sofrer com o chororô da minha amiga. Realmente eu estava disposta a não me despedir de ninguém, com exceção dos meus pais e minha avó que estariam na festa de fundação da ONG.
Assim que Vitor chegou, colocamos tudo no porta malas do seu carro e seguimos rumo a festa que por sinal estava simplesmente linda. Da decoração a recepção. Passando pelo serviço de buffet e todo o cerimonial.
Já havia chegado vários convidados, imprensa e algumas celebridades que apoiavam a causa. No momento que adentrei no salão, foi automático que meus olhos procurassem a Clara e não demorou muito para que encontrasse. Ela estava mais linda do que nunca – se isso era possível – num vestido vermelho com um decote que dava vontade de mergulhar para descobrir seus mistérios. Claro que não chegava a ser vulgar, até porque essa não era uma característica da Clara.
Muitas pessoas iam ao meu encontro para os cumprimentos pelo trabalho que realizei junto com a Clara, agradecia a todos e ficávamos conversando por alguns instantes. Aproveitava para apresentar meu amigo para essas pessoas já como meu substituto, todos me perguntavam o motivo já que eu estava ingressando na área naquele momento:
-A ONG foi um projeto desafiante, vou buscar novos desafios porque não sobrevivo sem eles.
Limitava-me a responder dessa forma e davam-se por satisfeitos. Por volta das 22h a Clara deu início a cerimônia de inauguração e foi inevitável a minha emoção: eu estava muito sensível e foi passando um filme em minha mente com tudo o que eu tinha passado até ali desde o dia que comecei a idealizar o projeto.
Fui chamada ao palco e não consegui dizer quase nada, todos compreenderam, as palavras fugiram da minha boca, a Clara falou por mim por conta da minha emoção.
Assim que desci do palco procurei por Vitor, falei com minha avó e meus pais e fomos embora. Passei no apartamento da Clara, entreguei o envelope com a carta e as chaves ao porteiro, não subi pelas lembranças e pela Regina.
Quando estávamos no aeroporto, tive um misto de alegria com tristeza: estava super feliz por estar indo realizar um dos meus sonhos, mas estava sem a minha Clara que fazia parte dele e isso me deixou numa tristeza quase deprimente.
Meu vôo foi anunciado, despedi-me do meu amigo e fui para a área de embarque. Liguei o automático e só desliguei quando cheguei na terra lusitana após cerca de 13h de viagem porque tive que ir para São Paulo, trocar de avião e ir finalmente para Portugal. Foi nisso que deu trocar o dia da viagem: escala indesejável e aumento do tempo de voo.