Capítulo 37

Obedeci e quando saí dei de cara com a Dani:

-Se perdeu, foi? – sorri.

-Para de resmungar e vem aqui me dar um abraço – abriu os braços.

Fiquei curtindo aquele abraço tão acolhedor.

Estava precisando do abraço da minha irmã, sabem? Sei que essa história de irmã é um pouco louca, mas é a mais pura verdade. Se eu já acreditava no espiritismo, depois que conheci a Dani, aí que percebi que era essa a religião que eu deveria seguir. Comecei a encontrar um pouco de lógica em tudo o que já aconteceu e que estava acontecendo em minha vida e já que ela estava ali depois de ter enviando um SMS daquele que enviou no dia anterior, aí tinha coisa e eu precisava descobrir o mais rápido possível. Meu sexto sentido estava ainda mais em alerta do que antes:

-Vamos à lanchonete, estou faminta – Dani disse afastando-se um pouco de mim.

-Podem ir, eu fico aqui no quarto com seu pai, amor – Clara disse carinhosamente.

Beijei-a levemente nos lábios e saí abraçada a Dani, assim que sentamos, ela fez o pedido:

-O que você perdeu aqui?

-Estava com saudade de vocês.

-Não tenta de enrolar, Dani. Você mais do que ninguém sabe que não conseguimos   mentir uma para a outra.

-Lembra o SMS que enviei para você ontem?

-Sim.

-Meu guia disse que era para eu vir para cá, você vai precisar de apoio.

Respirei fundo.

-Eu sinto que não é com meu pai.

-E não é mesmo, é com a Regina – estranhei, pois não havia mencionado esse nome a ela – mas, essa é a única coisa que sei, ele não quis me revelar nada porque sabia que eu ia acabar falando contigo.

Esfreguei minhas mãos no rosto.

-Pelo menos você e a Clara estarão aqui, acho que vai ser menos difícil – tentei sorrir.

Continuamos nossa conversa. A Dani me disse que não sabia ao certo quando que isso aconteceria, mas não deveria demorar muito. Tinham também alguns conhecidos nossos no Centro que estavam orando por mim desde que comecei a freqüentar o local e o seu guia estava conosco. De uma coisa ela tinha certeza, seria uma tarefa difícil, mas que se pelo menos nós duas estivéssemos unidas, seria menos complicado.

Essa união que nós temos há séculos era um ponto a nosso favor. A energia que nós tínhamos, era muito boa para pessoas como a Regina querer nos separar e tentar acabar com isso, mas de outra coisa a Dani tinha certeza: a mulher do meu pai não estava sozinha nisso tudo, tinha um espírito obsessor influenciando-a:

-Então a culpa não é dela, tem alguma coisa por trás?

-A culpa é dela sim, o obsessor é só uma influência a mais.

-Como uma pessoa pode ser tão má?

-Duda, eu preciso te contar uma história e me ouça até o final, evitei ao máximo lhe falar isso, mas agora não tenho mais como fugir – Concordei com um gesto de cabeça – Bom, sabe na época que nós prometemos virmos sempre ao plano terrestre juntas, sempre para nos ajudar? – concordei mais uma vez – Pois então, nessa mesma época aconteceram coisas que explica tudo o que você está vivendo agora: eu, você, a Clara, a Regina e esse tal obsessor que na realidade atende pelo nome de “Aurélia”. Está conseguindo acompanhar?

-Apesar de ser uma história muito confusa, pode continuar.

-Então: Você atendia pelo nome de Alfredo, era um excelente médico, muito conhecido e solicitado pelos moradores da cidade e regiões vizinhas, teve oito filhos lindos com sua esposa que hoje é a Clara e um deles é aquele que eu disse que tinha Síndrome de Down. Era o seu filhinho caçula, toda aquela história aconteceu nessa época, eu era sua irmã e vivíamos em uma harmonia surpreendente. Não éramos ricos, mas dava para todos sobreviverem muito bem, nunca faltou nada para nós e para seus filhos. Tinha uma casa modesta, mas muito confortável. Vocês tinham uma felicidade admirada e invejada. A parte da inveja vinha de uma feiticeira que hoje veio como Regina e fez um feitiço para você que deu certo por um tempo não muito longo, mas o suficiente para estragar a vida de vocês. Você começou a trair sua esposa com essa feiticeira e depois que acontecia as vias de fato, ficava deveras arrependido, não conseguia entender o motivo que fazia isso já que amava tanto sua esposa e sua família. Você começou a maltratar seus filhos e sua esposa que mesmo assim não deixava de ficar ao seu lado. Descobriu seu erro e tentou a todo custo lhe ajudar, mas você passou a ser um homem grosso, amargo e mesmo inconsciente ajudava a feiticeira em seus “trabalhos” já que era um médico.

-Meu Deus!

-Calma que ainda não terminei: A feiticeira ficou grávida e o filho era seu, mas você não quis assumir, disse a ela que não ia largar a sua família para ficar com ela de forma alguma. A mulher resolveu dizer que ia fazer um aborto para tentar lhe comover já que você sempre foi apaixonado por seus filhos, mas não conseguiu. Realmente você não nutria nenhum tipo de sentimento por ela e muito menos pela criança. Ela quase morreu quando isso aconteceu e quando  se recuperou fez um feitiço para matar sua esposa, mas por engano você acabou bebendo e morreu. Ela teve a coragem de ir ao enterro, mas quando descobriu que ao invés de sua esposa e sim você estava dentro do caixão, entrou em desespero, chegou até a rasgar as próprias roupas.

-E meus filhos e minha esposa, como ficaram?

-Ela conseguiu criar todos os filhos e todos se formaram, com exceção do caçula, mas quem terminou de criar foi o mais velho. Sua esposa morreu alguns anos depois, passaram algumas dificuldades, mas  seus três filhos mais velhos já começaram a trabalhar para ajudar na alimentação e outras despesas. No dia da morte de sua esposa, que hoje é a Clara, você veio encontrá-la.

-E o que essa Aurélia tem haver nessa história toda?

-Ela era amiga da feiticeira. Na realidade ela era uma boa menina que quando conheceu a tal feiticeira ficou encantada com as coisas que ela apresentava para a Aurélia. Ela tinha princípios, mas o que a feiticeira falava para ela ia contra tudo o que sabia, tudo o que seus pais haviam ensinado e ela achou que todos estavam errados e só a feiticeira era a certa, mas até aí ela não sabia o que a mulher que lhe ensinou tantas coisas “boas” matava pessoas por encomenda. Até o dia que ela começou a observar a amiga e percebeu que ela era muito procurada e que logo depois disso ela sumia por dias, semanas, no meio da floresta até que pressionou e a amiga disse toda a verdade e a fez prometer que não ia contar a ninguém e que ia ajudá-la.

-E o que ela tem haver comigo?

-Ela era apaixonada por você, mas depois de algum tempo a Aurélia percebeu que você não tinha olhos para outra pessoa senão sua esposa, se conformou e a feiticeira queria que ela matasse a sua esposa com um desses feitiços. Foi aí que ela viu em seus olhos e pouco depois nos da sua esposa o quanto vocês se amavam e não teve coragem para interromper esse amor. Mas quando a feiticeira estava em leito de  morte, a fez prometer que sempre a ajudaria no que fosse necessário para ter você e/ou para interromper o seu amor pela Clara.

-E depois disso, a Aurélia nunca reencarnou?

-Não, nunca! A Regina sempre se arrepende ao morrer, se arrepende de todo o mal e sempre tem uma nova chance, mas quando chega ao plano terrestre é encontrada pela Aurélia e volta a praticar a maldade. Se a Aurélia nunca se arrepende, como pode reencarnar para evoluir?

-E você? Como ficou nessa história toda?

-Eu literalmente enlouqueci após a sua morte e nas outras encarnações e Aurélia faz com que eu sempre tenha o mesmo fim: enlouqueça. Isso porque nós temos essa ligação e estamos sempre nos ajudando.

-E porque ela ainda não tentou te enlouquecer?

-E quem disse que não tentou?

-Como assim?

-Alguns meses antes de nós nos conhecermos eu estava em casa com a Clara e a Paula e de repente não senti mais nada, quando dei por mim eu estava trancada em meu quarto com tudo quebrado dentro de casa e com minha tia e um amigo do Centro fazendo orações. Depois eles me explicaram que Aurélia incorporou em mim e fez tudo aquilo, disse barbaridades para a Clara e que nós duas nunca conseguimos impedi-la de nada e não ia ser agora. O Junior – o amigo do Centro – me explicou que era sempre isso que ela fazia comigo nas outras encarnações, incorporava em mim e me fazia passar como louca, eu acabava trancafiada em casa ou em algum sanatório até a morte.

-Não sabia que nossa ligação era assim tão forte.

-É mais forte do que você imagina, Duda, eu sei de tudo o que aconteceu com você desde sua infância que você odeia que seja mencionada. Dudinha… – ela me chamou suavemente – eu sei de tudo. Tudo mesmo. Desde suas brigas com sua mãe, seu pai, seus amigos… Tudo mesmo. A pior delas, quando sua mãe descobriu sobre sua sexualidade, mas coisas que ela te disse… O meu maior desespero foi quando você estava na varanda no andar superior da casa e olhou para baixo chorando copiosamente após essa briga, meu guia estava lá junto com vários outros e tiraram da sua cabeça o que você queria fazer.

-Ninguém nunca soube dessa briga e nem do que eu pensei em fazer – disse num fio de voz.

Estava com os olhos lacrimejando olhando para o nada. Eu tinha conseguido esquecer esse fatídico dia, mas a Dani me fez lembrar de forma inesperada. Aquilo foi horrível, se não foi o pior dia da minha vida, deve ter chegado muito perto.

-Duda, nesse dia eu estava em casa mais uma vez com a Clara, mas era minha irmã que estava junto. Ouvi tudo o que eles falavam, senti tudo o que você sentiu ao escutar aquilo e sei que você não conseguia falar nada, o máximo que você fez foi mandar os dois irem à merda, mas depois de escutar tudo silenciosamente e sem deixar uma lágrima sequer cair. Sei que você foi para essa parte superior da casa, onde ficam os quartos e ficou ali por muito tempo. Ali você conseguiu colocar tudo para fora, chorou feito uma criança desprotegida. Sei que se pudesse, sairia daquela casa na mesma hora, mas ainda não trabalhava para tomar essa atitude. Nessa noite eu não dormi, como você também quase não pregou os olhos. Eu fiquei encolhida na cama o tempo inteiro porque aquilo que eu estava sentindo era algo irreal para mim, nunca havia sentido nada parecido, era uma dor sufocante e sei que era assim que você estava.

Eu olhava para Daniela incrédula, ela tinha acabado de descrever o que senti no dia que queria morrer. Juro que o  que passou  na minha cabeça quando  cheguei  na varanda era me matar,  mas não consegui graças aos guias que estavam comigo e na realidade não sei se eu realmente teria coragem para tal porque foi uma ideia rápida que passou pela minha cabeça. Na mesma hora que pensei nisso, sentei ali no chão com os joelhos encostados em meu peito e chorei a noite quase toda feito uma criança. Aquilo estava doendo muito, aquela sensação de abandono era irreal.

-Dudinha… Eu quero que você saiba que sei de tudo o que você já passou desde o dia do seu nascimento, eu sei de coisas que você fez questão de esquecer. Mas, agora estou aqui e não vou deixar mais ninguém lhe machucar. Você já sofreu demais para uma encarnação – sorriu, chegou próximo ao  meu corpo, acariciou meu cabelo – tenho que usar meu tamanho para meter medo em alguém, não acha?

Sorri de volta. Ela percebeu minha tristeza e tentou me alegrar a todo custo, coisa complicada de se fazer já que eu lembrava coisas que eu nunca imaginava voltar a lembrar.

Resolvemos voltar para o quarto, já tínhamos ficado longas horas lá fora conversando:

-Achei que tivesse esquecido de mim.

-Eu nunca vou esquecer-me de você, meu amor.

Abracei-a e beijei-lhe levemente os lábios. Durante a conversa, a Dani me disse que eu e a Clara tínhamos nos prometido que sempre estaríamos juntas em todas as encarnações também e esse era um dos motivos que mesmo elas duas terem namorado e tiveram uma separação não muito boa. Continuam a amizade. Longos anos de convivência:

-Dani, onde você vai dormir?

-No mesmo hotel que vocês estão, é claro – sorriu.

-Xii, estou fudida com vocês duas lá.

-Deixa de implicância, Clarinha… A Duda é só minha irmãzinha – sorriu as gargalhadas e acabei acompanhando-a.

-Amor, seu pai acordou, mas por causa da medicação, acabou dormindo em menos de cinco minutos.

-Que notícia maravilhosa! O médico veio examiná-lo?

-Veio sim e disse que ainda não tinha como dar nenhuma informação mais clara porque ele acordou e dormiu rapidamente. Estão esperando ele acordar mais uma vez.

Continuamos a conversa e quando anoiteceu fomos para o hotel, tomamos nosso banho e encontramos com a Dani na recepção que já nos aguardava para jantarmos.

Comemos, conversamos animadamente, mas vez ou outra eu lembrava a conversa que tive com a Daniela mais cedo e ficava receosa pelo que estava por vir e um pouco triste por lembrar tantas coisas assim ao mesmo tempo.

-O que você tem, Du?

-Nada amor, acho que é cansaço mesmo.

-Sei… Vou fingir que acredito.

Olhei para Dani e esta me lançou um olhar cúmplice pelo o que nos aguardava, meu sexto sentido estava me deixando inquieta. Voltamos para o hotel, o quarto de Daniela ficava ao lado do nosso. Achei que ela ia querer prolongar mais um pouco, mas ela deu a desculpa da viagem para dormir mais cedo. Assim que entrei no quarto, fui tomar meu banho e quando saí a Clara fez o mesmo.

Estava deitada na cama tentando assistir alguma coisa na TV que eu não estava prestando o mínimo de atenção. Estava mesmo era pensando na minha vida até ali, como foi difícil para me formar no ensino médio, depois na faculdade, conseguir engrenar meu projeto da ONG. Consegui coisas que jamais imaginaria na época que passei por tantas dificuldades. Eu não tive infância, minha mãe não me deixava brincar com ninguém, não me levava para a casa das minhas amiguinhas e não as deixava ir lá para casa. Sempre brincava sozinha, acho que era por isso que nunca levei ninguém em meu apartamento além da Rafa e depois a Bruna e a Clara.

Na realidade aprendi a viver na solidão. Fui conhecer a felicidade depois que comecei a morar sozinha, conheci pessoas novas, pessoas que me apresentavam a vida e dali consegui tirar meu proveito. Consegui distinguir bom e ruim, bem e mal. A partir daquele dia que nasceu a Duda de hoje, meu caráter, minha índole eu que descobri, desenvolvi, aperfeiçoei através do mundo que me foi apresentado, ali comecei a ser feliz.

-O que você tem?

A Clara estava saindo do banho vestida no roupão e secando o cabelo, fiquei admirando sua beleza que tanto me encantava:

-Eduarda, eu lhe fiz uma pergunta.

-Não tenho nada demais, amor… Vem cá.

Estendi minha mão e ela segurou, a fiz deitar comigo e a abracei por trás em forma de concha. Pouco tempo depois lágrimas começaram a cair dos meus olhos e a Clara virou para saber o que estava acontecendo, segurou meu rosto:

-Hei amor, fala comigo. Me diz o que aconteceu. O que a Daniela lhe falou para você ficar assim? – seu olhar era angustiante.

-Nada demais amor – pausa – só acabei lembrando coisas que esqueci propositalmente e que a Dani sentiu na época e acabou me contando hoje.

-Quais tipos de coisas?

-Hoje não, Clara! Por favor, não vou conseguir. Prometo que assim que estiver pronta para falar, te conto tudo, tá? – ela balançou a cabeça num gesto afirmativo, beijei-a – agora me abraça.

Encostei minha cabeça em seu ombro enroscando meu corpo no dela e a Clara ficou acariciando meu cabelo e minhas costas até que adormeci.



Notas:



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