Capítulo 23

Na terça-feira estávamos em mais uma discussão sobre a ONG e a Claudia – a secretária de Clara – interfonou para avisar que o Sr Augusto desejava vê-la, ela autorizou a entrada e assim que ele entrou foi abraçando e beijando minha namorada. Fez o mesmo comigo e fiz menção em sair da sala para deixá-los mais à vontade:

-Hei, Duda! Não precisa se retirar, você já é da família, esqueceu?

-Muito obrigada Sr Augusto, mas realmente preciso adiantar algumas coisas com a Cláudia.

Ele olhou para Clara com a cara de quem estava perguntando se era verdade, ela acenou com a cabeça e saí logo em seguida. Algum tempo depois, eu estava entretida na conversa com a Claudia sobre o projeto e vi os dois se despedindo e o Sr Augusto vindo em minha direção para fazer o mesmo:

-Na quinta-feira haverá uma festa do lançamento de um livro de um grande amigo meu e que a Clara gosta muito também. Soube que você se interessa pelo assunto e já confirmei sua presença com ele – disse abrindo seu largo sorriso.

Não sabia o que fazer, olhei para Clara e ela sorriu balançando os ombros como se dissesse “resolva-se”. Sorri de volta.

-Tudo bem, nós vamos.

Terminei o que tinha que fazer com a Claudia e logo em seguida entrei na sala da Clara:

-Que história é essa confirmar minha presença em um evento?

Sem ao menos levantar os olhos dos papeis que estava lendo respondeu:

-Ele é assim mesmo, faz para intimidar as pessoas para não receber não como resposta. Foi justamente isso o que ele veio fazer aqui, nos intimar a acompanhá-lo.

-Poxa Clara, e você nem para me salvar dessa.

-Salvar por quê?

-Por que detesto esse tipo de festa que só tem gente chique e tem mais intenção em ficar olhando com que carro os outros chegam, que roupa, quais joias estão usando do que para o lançamento de um livro  que é a verdadeira intenção da festa.

-Deixa de besteira, Duda.

-Besteira? Claro que é besteira para você, não é? Afinal de contas você nasceu e cresceu em ambientes como esse. Já está acostumada em ser observada o tempo todo.

Só aí a Clara parou o que estava fazendo e me olhou, tirou os óculos de grau da face respirando fundo:

-Realmente cresci nesses ambientes, mas    você mais do que qualquer outra pessoa sabe que pouco me importo com isso.

-Sei sim, mas você também sabe mais do que ninguém que eu detesto isso. Detesto esse povo cheio de frescuras, cheio de “não me toque”.

-Vamos fazer o seguinte: nós vamos sim, mas   não vamos demorar, certo? O César é quase meu irmão mais velho, não posso fazer essa desfeita com ele.

Respirei fundo, sentei no sofá que tinha no canto da sala e respondi vencida:

-Fazer o que, não é?

***

A quinta-feira chegou muito mais rápido do que deveria, eu estava impaciente, tudo me irritava, por muito pouco não briguei com a Clara por discordar com um trecho do texto que explicava os objetivos da ONG, coisa que acontecia com frequência porque estávamos tentando melhorar ainda mais o projeto. Mas, naquele dia minha irritação tomou proporções que nem eu acreditava e discutimos, mas nada demais.  Nada que um copo com água e um respirar fundo não colocasse minha cabeça no lugar e fosse resolver meu problema.

Saímos um pouco mais cedo do que de costume, fomos para a casa de Clara para nos arrumarmos. Apesar da sua enorme insistência, não havia santo que me fizesse usar um vestido; fui de calça social mesmo, minha namorada estava com um lindo vestido vermelho que por pouco, muito pouco, não tirei ali no quarto e não iríamos a lugar nenhum.

A festa de lançamento do livro foi em um hotel na orla de Salvador e aconteceu tudo o que eu previa: pessoas observando as outras o tempo inteiro; carro, sapato, roupas, joias, relógio… uma infinidade de coisas que julgavam importante e que para uma pessoa como eu que nunca tive nada disso, que sempre valorizei meus amigos, minhas poucas conquistas até ali, minha família que mesmo tão distante eu não conseguia deixar de amar eram, literalmente, supérfluos.

Logo avistamos o Sr Augusto acompanhado da Estela e fomos ao seu encontro, nos cumprimentamos e fui apresentada as pessoas que estavam ao redor. A conversa fluía normalmente na medida do possível, pelo pouco que observei, quase todos se conheciam. Cerca de trinta minutos depois apareceu o tal César – o escritor que estava lançando o livro, um romance – cumprimentando todos os seus convidados, falou conosco, ficou conversando um pouco e foi chamado por outro grupo de amigos para dar a sua atenção.

Nós já estávamos ali a cerca de duas horas, o lançamento foi feito oficialmente, os autógrafos foram distribuídos e já nos encontrávamos em outra roda que só tinha mulheres – não posso negar que todas eram lindas – conversando sobre assuntos que eu considerava um tédio. Sussurrei no ouvido de Clara que eu estava indo ao banheiro e balançou a cabeça num gesto afirmativo voltando à entediante conversa que aquele momento era sobre as últimas viagens. Tudo bem que não era um assunto chato, mas o que eu poderia fazer se eu não tinha o que comentar? A última vez que saí de Salvador eu estava indo à casa de minha avó a cerca de 130km da minha cidade natal. Meus estudos, meu trabalho e a falta de grana – principalmente – não deixavam ir para muito longe.

Ao sair do banheiro, fui dar uma volta, precisava me livrar, pelo menos temporariamente, daquelas pessoas, precisava de ar, o vento bater no meu rosto para revigorar minhas energias.

Num lugar um pouco afastado da badalação, no jardim do hotel, encontrei um desses bancos de madeira que dá a impressão que é bem antigo e resolvi sentar; não só sentar, mas estiquei minhas pernas e as cruzei, abri meus braços sobre o encosto e inclinei minha cabeça para trás fechando os olhos. Fiquei ali não sei por quanto tempo, pensando em nada – literalmente – e respirando fundo diversas vezes. Senti meu celular vibrar no bolso, verifiquei o visor:

-Fala Rafa.

-Oi amiga, como é que você está?

-Sentada, e você? – sorri.

-Tinha esquecido o quanto que você é idiota.

-Também te amo.

-Que voz é essa?

-Nada demais Rafa: só estou em uma festa entediante, com pessoas chatas e metidas. Agora consegui fugir um pouco e estou num jardim tentando arranjar mais paciência não sei de onde para voltar lá pra dentro.

-Uau! Que sorte, hein amiga? – riu as gargalhadas.

-Sorte foi você que teve que a Bruna viajou e você não precisou vir para cá e fica aí rindo   da desgraça alheia – sorri de volta.

-E cadê a Clara?

-Está lá dentro com as amigas chatas. Se não fosse por ela eu já tinha ido embora, aliás, na realidade, se não fosse por ela eu nem estaria aqui.

-Sabe o que é isso? – nem esperou responder – Amor!

-Estou começando a acreditar em você.

-Tem quanto tempo que você está aí fora?

-Sei lá… deve ter uns trinta ou quarenta minutos.

-E ela ainda não foi te buscar?

-Não, na realidade ela nem sabe onde estou.

-Mas, sabe o número do seu celular, né?

-Isso é verdade. Mas, não estou a fim de falar sobre isso porque desde a terça-feira que estou irritada com essa festa, a gente por pouco não brigou duas vezes e hoje estou com os nervos a flor da pele.

Mudamos imediatamente de assunto e minha amiga me falou de um jogo de handebol que estava marcado para o próximo sábado no Clube dos Oficiais às 16h, confirmei minha presença e falamos mais algumas banalidades. Encerramos a ligação uns minutos depois, voltei a abrir meus braços no encosto do banco de madeira e inclinei minha cabeça para trás fechando os olhos em seguida.

Eu estava sentindo falta da minha calça jeans, meu tênis, as gororobas que adoro comer, minha Coca-Cola, meus amigos, as besteiras hilárias que sempre conversamos. Eu estava sentindo falta do meu mundo que definitivamente não era aquele que aquela festa me deixou. Fiquei mais uns quinze minutos e levantei para procurar a Clara, encontrei-a junto com o pai conversando animadamente com a tal Renata que nós encontramos no dia que fomos sozinhas à Casa Rosada. Aproximei-me da minha namorada, segurei em sua cintura:

-Boa noite, Renata!

Clara olhou para mim surpresa, como se nem lembrasse que eu disse que tinha ido ao banheiro e demorei muito mais do que o previsto, mas, mesmo assim, logo fez um carinho em minha mão que estava em volta da sua cintura:

-Boa noite, Eduarda! Não sabia que frequentava festas como essa – disse ironicamente e me olhando de cima a baixo.

-Realmente não frequento, só estou aqui por insistência da minha namorada. Não gosto de estar em ambientes que as pessoas ficam te analisando o tempo inteiro, mas por ela faço qualquer sacrifício.

-Quer dizer então que as pessoas dessa festa ficam analisando umas às outras?

-Claro que sim, você fez isso comigo assim que cheguei e lhe cumprimentei.

-E você não faz o mesmo?

-Não. Tenho mais o que fazer.

-Hei, garotas. Vamos com calma, certo? – Sr Augusto interferiu.

A Clara me puxou pela mão para um canto do salão:

-O que deu em você?

-Nada, só não ia ouvir desaforo calada.

-E precisava ofender a Renata?

-Eu sou realista e nunca deixarei de ser assim – respirei fundo – olha, sei que essa conversa não vai terminar bem e não estou a fim de brigar com você, vou embora, toma – tirei as chaves do carro dela do bolso e entreguei.

-Espera, eu vou com você, só vou falar com meu pai e a Renata.

-Não precisa, eu pego um taxi.

Respirei fundo, dei meia volta e fui em direção a saída. Entrei no primeiro taxi que vi em minha frente. Quando cheguei em casa fui direto para o chuveiro, precisava e muito de um banho, precisava voltar a ser a Duda de horas atrás antes de entrar naquela festa, precisava relaxar porque eu estava realmente irreconhecível, irritada ao extremo e cansada, muito cansada de muita coisa.

Cansada de viver em um mundo que não é o meu, cansada em sempre ceder aos desejos da Clara. Enxuguei meu corpo e como estava sem fome alguma, me joguei direto na cama, peguei meu celular para ativar o despertador e vi que tinha quatro chamadas não atendidas da Clara, olhei para a tecla send, suspirei e retornei. Chamou uma, duas, no terceiro toque ela atendeu:

-Oi Du.

-Oi.

-Como você está?

-Cansada. – deixei transparecer o ambíguo sentido da palavra.

-Tentei te ligar mais cedo.

-Eu estava no banho.

-Por que você está assim comigo e nem quis dormir aqui?

-Clara, por favor, a gente conversa sobre isso amanhã, pode ser? Eu estou exausta e preciso acordar cedo.

-Eu não queria que você ficasse assim comigo. – disse docemente.

A forma que Clara falou comigo se fosse no dia anterior poderia me ter feito amolecer, mas incrivelmente o efeito foi o inverso do esperado tanto por mim quanto por ela, respirei fundo e procurei falar da maneira mais tranquila possível:

-Clara, por favor, mais uma vez, se a gente conversar agora sobre isso a gente vai acabar brigando porque estou de cabeça quente e sinceramente não é o que eu quero. Prometo que amanhã resolvemos isso e você decide a hora, certo?

-Ô, fazer o que, não é? Amanhã nós conversamos então. Boa noite, beijo.

-Beijo, boa noite.



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