Marie findou o exame com uma expressão inquieta. Seu olhar encontrou o de Voltruf e, por fim, Dimal, cuja irritação pela presença de Yahira no cômodo era quase palpável. Dalise estava jogada em uma das duas camas do local, dormindo o sono dos justos. Aisen tremia de febre e dor na outra cama.

Antes da chegada das três mulheres, o palatin cuidava dela, usando panos úmidos para abaixar a febre. Ele foi muito respeitoso com Marie. Assim que a avistou na soleira da porta, fez uma reverência profunda, visto que ela era rainha consorte do Reino de Flyn e também uma princesa do Reino de Midiane, sem mencionar o fato de ser uma ordenada.

— E então? — Voltruf perguntou.

Marie retornou o olhar para ela, curiosa. Volt raramente expressava preocupação e apreço por alguém.

“Talvez possa ajudá-la, mas preciso do auxílio da minha tia”, sussurrou a resposta na mente dela e arqueou uma sobrancelha ao perceber uma nota de alegria irradiar através do laço mágico que compartilhavam.

— Tem certeza?

Marie confirmou com um inclinar de cabeça, reparando no desconforto de Yahira e Dimal. Certamente, estavam estranhando a ausência de suas respostas verbais. Coube a Voltruf explicar o que se passava com meia dúzia de palavras.

— Ah, agora faz sentido — Yahira murmurou, como se realmente pudesse entender a profundidade do laço entre as duas. Tentou se aproximar da cama da ex-mulher, porém interrompeu o movimento ao notar a expressão quase assassina de Dimal. O que a fez recordar o jeito como ele cuidou de Aisen em seu reencontro às margens do abismo, meses atrás. Como naquela noite, ela sentiu uma pontada de ciúme revolver suas entranhas. — Acha mesmo que pode ajudá-la? Pelo que entendi, nem mesmo Amani foi capaz disso.

— O poder de Amani é inegável, mas também há limites para o que ela é capaz de fazer. Você bem sabe disso — Voltruf encarou-a com seus penetrantes olhos violetas, que não deixavam espaço para questionamentos. E completou, orgulhosa: — Marie, por outro lado, é brilhante.

Quando ela e a mestra retornaram ao corredor, Yahira não as seguiu. Em vez disso, ela sentou no chão, ao lado da cama de Aisen e encarou Dimal com ar de desafio, até que o palatin emitiu um som parecido com um rosnado e deitou ao lado da irmã, espremendo-se no catre estreito.

Vai me contar qual o problema daqueles dois? Ou melhor, como aquela mulher arranjou algo tão sinistro para enterrar no coração?” — Marie perguntou para Voltruf.

— Melhor nem saber.

Recebeu um olhar condescendente e disse:

— Tudo bem. Depois de vermos como Melina está. Prometo.

A mestra riu em silêncio e enganchou o braço no dela, verdadeiramente feliz pelo sentimento carinhoso que ela emanava sempre que o assunto se voltava para sua tia.

***

Apenas a rainha florinae e Mardus, por estarem sentados ao seu lado, ouviram a afirmação de Lenór que foi feita em um tom de voz quase sussurrado. O rei tomou o cuidado de se manter em silêncio e esperar maiores explicações, visto que, até onde sabia, a mãe da amiga morreu no parto.

Virnan, por outro lado, preferiu dar seguimento ao assunto que realmente importava naquele momento:

— Eu não encontro a Rainha da Morte há três milênios, mas imagino que Amani ainda seja tão imponente e sábia quanto naquela época.

— Amani? A deusa das Terras de Aman? — gaguejou Taniel, descrente. Desde que sentou àquela mesa, sua cabeça dava voltas com as coisas que lhe eram reveladas.

— A rainha das Terras de Aman. Terras que assim foram nomeadas por causa dela, uma mulher que não tem nada de divino e cuja longevidade e poder são oriundas do seu sangue Enaen. — Virnan corrigiu. E antes que alguém fizesse outra pergunta, explicou: — Amani caminha por este mundo desde antes dele se dividir em três. Ela não costuma se envolver nas contendas dos humanos, mas com o incentivo correto, poderá nos ajudar. Isso, se realmente estiver vindo para cá.

— Ela está — Lenór garantiu, certa de que a conversa que teve com Amani foi tão real quanto estar sentada à mesa com aquelas pessoas.

— Isso é…

— Inacreditável — o príncipe Ricksen completou a frase inacabada de Lorde Aulos.

Complacente, Virnan disse:

— Senhores, eu nasci entre um povo de farta magia e fortes crenças. Caminho sobre este mundo há mais tempo que todos os anos de vocês somados; ainda assim, muitas coisas também me assustam e surpreendem sobre as leis e forças que o regem. E mesmo o meu conhecimento é escasso. A sua descrença e o desconforto de tentar assimilar tantas verdades e informações é perfeitamente compreensível. Sugiro que não gastem suas forças tentando entender essas coisas, apenas aceitem e dediquem-se aos assuntos com os quais podem lidar.

Ela uniu as mãos sobre a mesa, atraindo os olhares de alguns. Eram mãos pequenas e delicadas, porém, exibiam as cicatrizes de quem conhecia a guerra intimamente.

— Do pouco que sei da política deste reino e de Zaidar, é raro que estejam reunidos sob o mesmo teto sem que haja picuinhas e acusações. Aproveitem este momento para alinhavar um bom acordo de paz, pois, estou certa que depois do que houve ontem, nenhum de vocês vai querer guerrear por algum tempo. Como deixei claro quando iniciamos esta reunião, da minha parte e de minhas companheiras, apenas o abismo e as criaturas que o habitam nos interessam. É nosso dever proteger o mundo inteiro e não temos intenções de interferir em seus reinos, exceto, se houver um pedido formal para tal. Se assim for, como rainha de Flyn, precisarei me reunir com meus conselheiros para deliberações a respeito.

Fez uma pequena pausa para respirar e acrescentou:

— Independente disso, lembrem-se, também, que as adoráveis mulheres que me acompanham, além de minhas amigas e esposa, também são membros da Ordem. Como tal, podem auxiliá-los nas discussões de forma diplomática e serena. É o desejo de vocês que Flyn ou a Ordem seja mediador de um acordo de paz?

O olhar do príncipe zaidarniano encontrou o do rei cardasino e, quase como se tivessem ensaiado, eles disseram ao mesmo tempo:

— Sim.

Os generais e lordes na sala mantiveram o silêncio, embora ainda houvesse rixas e desejos de retaliação, ninguém estava disposto a se manifestar e dar início a uma nova carnificina.

— Ficaria grato se a Ordem pudesse nos auxiliar — Mardus complementou, ciente de que se o pedido fosse feito para Flyn, poderia haver mais resistência e discussões entre os lordes. Não que a Ordem fosse menos indigesta para os homens à mesa, contudo, era uma entidade milenar que alinhavou inúmeros acordos de paz ao longo da sua existência. E apesar da desconfiança e repúdio do seu povo em relação aos magos, seu poder diplomático não poderia ser negado, tampouco, rejeitado.

— Concordo — disse Riksen.

Virnan ficou de pé e colocou a mão sobre o ombro da mulher loira, que estava sentada ao seu lado.

— Fico feliz que queiram uma solução pacífica. A grã-mestra Melina continua se recuperando, então Mestra Tamar deverá ser a mediadora de vocês. Ela possui um extenso conhecimento sobre a história, geografia e as leis do seu continente. No entanto, como usou muita magia no auxílio aos feridos da batalha, encontra-se descansando neste momento. Enquanto isso, Mestra Fantin poderá dar início às discussões e estabelecer um cronograma adequado para suas deliberações. De acordo?

— Parece ótimo — Ricksen falou, avaliando a mulher de belos olhos azuis, que mal conseguia esconder um vinco de irritação entre as sobrancelhas loiras. Via-se com clareza que ela não gostava de estar na posição de mediadora.

— Farei o meu melhor — disse Fantin. — Mas, de antemão, aviso que não sou tão diplomática quanto Tamar. Então, tentem não me irritar.

Com um sorriso irônico, Virnan deu um tapinha camarada no ombro da amiga e se afastou. Foi até a janela, reparando na noite que já estendia seu manto sobre o deserto. A lua não se erguia no horizonte, contudo, podia sentir em seus ossos que ela imperava no mundo além do abismo e que, por lá, sua cor era vermelha.

Um grito horripilante interrompeu a pergunta que Mardus planejou fazer.

— Deuses! Isso é o que acho que é?

— Parece que a noite vai ser longa — Fantin estalou a língua.

— O suficiente para vestir vermelho — Virnan concluiu com um sorriso maldoso e Fantin encolheu-se na cadeira. A frase fazia referência à quantidade de sangue em suas vestes após uma batalha.

— Tome cuidado — disse a mestra loira, antes dela se despedir com um aceno de mão e deixar o salão.

— Para onde ela vai? — perguntou Everin.

— Para o abismo — Fantin explicou. — Aqueles desgraçados estão voltando, dá para sentir o cheiro ruim daqui. Vocês fizeram um bom serviço com a batalha da noite passada. A floresta deve estar impregnada de dor e cheiro de morte. Um convite “adorável” para aquelas coisas malditas.

Depois disso, a conversa se encaminhou para o acordo de paz e, pouco tempo depois, o salão esvaziou. Todos ansiavam por um pouco de descanso e, principalmente, uma noite de paz. Permaneceram no salão apenas Lenór, Mardus e o príncipe zaidarniano. Quando a porta se fechou atrás do último lorde a sair, Lenór perguntou para o rei:

— Qual é a de vocês dois?

— Como assim? — Mardus tentou se fazer de desentendido e recebeu um olhar enviesado.

— Estou cansada e com dores, além da cabeça cheia de preocupações. Me poupe dos seus joguinhos. E quanto a você… — ela se virou para o príncipe. — Até um carrasco demonstra mais sentimentos por suas vítimas do que você pela morte do seu pai.

O rei sorriu de lado.

— Queria mesmo saber como você faz isso. Mentiras não lhe escapam, nunca. — Ele enfiou a mão nos cabelos encaracolados e depois apontou para Ricksen, dizendo: — Lenór, conheça Aticus Dan, o fora da lei que me resgatou das garras do Rei Dakar.

Ela tomou um tempo para absorver a informação e, por fim, exigiu:

— Discorra.

— É uma história longa demais para o momento e você disse que está cansada…

— Mardus — ela o interrompeu e o príncipe resolveu assumir a narrativa:

— Meu pai e eu discordávamos fortemente de como Zaidar era governado. No entanto, eu não poderia agir diretamente contra ele. Aticus Dan surgiu como uma piada na mesa de uma taverna. Afim de contrariar um soldado, que expressou sua admiração pelos horrores que meu pai infligia ao nosso povo, eu inventei uma história sobre um homem que estaria roubando o sono do soberano ao libertar escravos, roubar seus impostos e incitar rebeldes. Acontece que a história foi além daquela mesa e taverna. Ela se espalhou pelo povo e, de repente, Aticus era um herói que conquistava mais e mais seguidores a cada dia. Vi nisso uma oportunidade de tentar mudar o destino do meu reino e assumi a identidade do Aticus.

— Era só enfiar uma adaga no peito dele e problema resolvido — Lenór foi simplória. Ela observou o rosto dele. Tinha a tez morena, com olhos grandes e amendoados. Os cabelos eram distribuídos várias tranças e a barba rala o fazia parecer mais jovem do que realmente era.

— Fácil falar, difícil executar. Veja bem, Comandante, não concordar com os atos do meu pai, não quer dizer que eu não o amava. A morte dele foi trágica e, acredite, está doendo em mim. Porém, depois de tudo que ele fez para Zaidar e Cardasin, me sinto aliviado pelo seu fim.

Ele fez uma pausa breve para recuperar o ar.

— Sim, eu fiz planos para assumir o trono e usaria Aticus Dan para isso. Contudo, meu pai cercou-se de cuidados e mesmo seus filhos não conseguiam acesso livre a ele. Quando soube da sua investida contra Mardus, ele já estava na capital do nosso reino. Foi muito difícil resgatá-lo e fornecer uma rota segura para o seu retorno à Cardasin. Ainda mais, com os planos do meu pai de me fazer o novo soberano deste reino. Nós…

Lenór fez uma careta e o interrompeu:

— Eu já entendi. Isso basta, por enquanto. Vocês são amigos ou aliados, os dois ou… — ela arqueou uma sobrancelha para o modo como o amigo olhava para o príncipe, quase hipnotizado — melhor não saber.

Ela se colocou de pé e apoiou as mãos na mesa.

— Você tem minha gratidão por ajudar o meu amigo, mas não pense que isso é sinônimo de liberdade para fazer o que bem entender aqui. Mardus é o rei, mas eu estou no comando do Castelo do Abismo e no instante em que eu imaginar que você possa ser um perigo para todos que o habitam, Zaidar vai ter um homem a menos na linha de sucessão do trono.

Mardus riu de lado e o zaidarniano limitou-se a balançar a cabeça em acordo. Por fim, Lenór se endireitou e disse:

— Longe de querer atrapalhar as negociações de paz, preciso informá-lo que, entre as fileiras do seu exército, existe um homem chamado Edelorn. Se ele não tiver morrido na batalha, irei desafiá-lo para um duelo em nome do meu sangue e clã.

— Por quê? 

— Porque ele matou meu irmão e sangue clama por sangue.

— Eu compreendo e lamento por não poder obter sua vingança. Edelorn era um dos guardas que vigiavam Mardus e Dalise. Ele morreu tentando impedir a fuga. Mas se isso serve de consolo, foi de uma maneira bastante dolorosa.

Lenór encarou Mardus, que confirmou a informação com um meneio de cabeça. Não consolava, no entanto, aliviava o peso em seus ombros e arrancava um pouco do ódio em seu coração. Todavia, lamentou não ter podido vingar o irmão.

***

Ainda era madrugada quando Vanieli acordou. Ela sentia o cansaço do desgaste mágico pesando sobre seus músculos, como se tivesse corrido dezenas de quilômetros sem parar. Moveu-se na cama, acostumando-se com a luz bruxuleante que vinha da lareira e envolvia o aposento em um brilho amarelado.

Estava sozinha no leito e sentiu medo pela ausência de Lenor, até que percebeu que, em vez de repousar ao seu lado, ela se encontrava sentada à mesa. Pensativa, Lenór encarava a noite além da janela e retornou o olhar para o interior do quarto ao perceber a movimentação de Vanieli quando ela deixou a cama, dominada por uma necessidade assombrosa de tocá-la. Um sorriso calmo e carinhoso desmanchou o semblante sério da Azuti.

— Você tá bem! — disse Vanieli com um misto de alívio e alegria, então sentou no colo da esposa e abraçou-a. — Estou tão feliz! Muito feliz!

Os braços musculosos de Lenór a envolveram com força, oferecendo um alento ao seu coração. Havia tanto calor, carinho e segurança entre aqueles braços, que ela chegou a se perguntar como pôde viver sem esse cuidado por tanto tempo.

— Graças a você — Lenór afirmou com a voz ainda mais rouca que o natural e fez uma carícia no rosto dela, que sorriu, quase tímida.

— Eu não fiz nada. Só tentei não atrapalhar Mestra Tamar.

A comandante queria falar sobre as centenas de vidas que Vanieli salvou na floresta, sobre como ela foi corajosa e o quanto se sentia orgulhosa dela. Mas, em vez disso, rendeu-se ao silêncio e ao brilho carinhoso dos seus olhos dourados. A beijou suavemente, afundando nos sentimentos que tinha por aquela mulher linda e extraordinária. Seu corpo inteiro vibrava de carinho e paixão, como se nunca tivesse experimentado esses sentimentos.

Vanieli se afastou para lhe oferecer um sorriso cálido e depois repousar a cabeça em seu ombro, aspirando o perfume da pele morena. Ficaram assim por tanto tempo, que as chamas na lareira diminuíram e o frio da brisa noturna, que entrava pela janela aberta, se espalhou pelo cômodo.

E como se fosse o sussurro do vento, Vanieli confessou:

— Eu tive muito, muito medo. Era sufocante, aterrorizante, como se ele fosse parte de mim… — interrompeu-se quando sentiu um beijinho carinhoso na mão que Lenór levou até os lábios. — Os cenários que imaginei, nem de longe se aproximam da realidade. Mas o medo que senti, foi avassalador. Não era pelo meu povo e reino; também não foi por mim. Eu temi perder você de novo. Eu… eu não suportaria sentir aquela dor novamente, porque não posso imaginar viver em um mundo em que você não esteja.

Lenór aumentou a pressão dos braços em volta dela, imersa em puro carinho. Se Vanieli pudesse ver seus olhos, teria notado as lágrimas se acumulando neles e deixando-os brilhantes.

— Eu me sinto assim, também — falou baixinho, apertando-a contra si. — O que sinto por você é tão forte e intenso que, às vezes, dói. Eu não sei como explicar… — suspirou forte. — Vanieli, eu amei Najili com todo o meu coração. Ainda a amo! Mas, esse amor não se compara ao que sinto por você. Contigo, tudo é tão simples e complexo. É salgado, amargo e doce… Meu coração bate descompassado toda vez que te vejo sorrir. É meio bobo, eu sei, mas é assim que me sinto ao seu lado. Como se você fosse o meu sol.

Ela sentiu Vanieli estremecer levemente, afundando o rosto entre seus cabelos soltos. O hálito quente tocou seu pescoço, antes dos lábios dela roçarem sua orelha e pronunciar a frase pela qual ansiava desde que entendeu seus sentimentos por ela. Vanieli escapuliu do abraço e se afastou o suficiente para olhá-la nos olhos, apaixonada. Ela repetiu calma, suave, feliz:

— Eu também te amo.

Aquelas três palavrinhas pairaram no ar, enquanto seus olhares se mantinham conectados. Os olhos de Lenór marejaram novamente e uma lágrima se aventurou a escapar de um deles. Vanieli interrompeu sua queda com a ponta do dedo e sorriu, aquele sorriso genuinamente largo e encantador, que fazia a Azuti quase esquecer de respirar, tamanha sua beleza.

Vanieli já havia demonstrado o que sentia de várias formas, mas nunca usou essas palavras. Lenór imaginou que, talvez, tivesse medo delas e do peso que teriam.

Seu relacionamento evoluiu de tal maneira, que um “eu te amo” chegava a ser desnecessário. Elas se entendiam em tantos níveis, que o sentimento estava implícito em cada gesto, olhar e sorriso. E quando faziam amor… Ah, o mundo se tornava apenas um borrão. Por alguns minutos, às vezes horas, Vanieli era o centro do seu universo e tudo o que Lenór desejava era fazê-la se sentir feliz e amada.

Mesmo assim, ouvi-la dar som e forma ao que sentia, inundou-a de uma felicidade gritante. Um sorriso meio bobo, transformou as feições de Lenór, que juntou o rosto dela entre as mãos. Admirou a delicadeza dos traços, a tez escura, os lábios voluptuosos e macios como uma fruta madura, os olhos hipnotizantes que vertiam tanto carinho, que a comandante desejou poder mergulhar e afundar neles.

Suas bocas se buscaram. Primeiro, num beijo delicado, que logo se tornou intenso e voraz como o sentimento que ardia em seu peito com a força de mil sóis.

— Eu te amo — Vanieli repetiu entre os lábios da mulher, imersa na alegria de dar voz ao que sentia. Lenór encostou a testa na dela, um sorriso gigante e apaixonado nos lábios úmidos e inchados pelo beijo.

— Eu te amo tanto, que tenho medo desse momento ser apenas um sonho — o coração batia descompassado no peito. Ela queria gritar, chorar e dançar, depois beijá-la e fazer tudo outra vez.

Delicada, Vanieli tracejou o rosto dela com as pontas dos dedos, depois beijou as cicatrizes sobre o nariz e a sobrancelha. Marcas que a faziam parecer feroz e escondiam o quão doce e atenciosa ela podia ser. As mesmas marcas pelas quais Lenór costumava deslizar os dedos quando se encontrava pensativa. Vanieli descobriu que adorava vê-la fazer isso e tantas outras e pequenas coisas, que nunca fez questão de reparar nas pessoas. Mas, em Lenór, ela via, gostava e queria participar.

Ela amava tudo naquela mulher; seu sorriso torto e irônico, o olhar que podia ir do suave e carinhoso para o malvado em um instante, a maneira como ela a fazia se sentir sempre protegida e cuidada… Havia tanto para amar em Lenór, até mesmo o que poderia ser encarado como defeito. E sempre que pensava nisso, Vanieli tinha vontade de rir, pois recordava o pânico que a tomou quando ouviu a proposta de casamento do rei.

— Se for sonho, por favor, não me acorde.

— Digo o mesmo — Vanieli riu baixinho, envolta no calor dos olhos dela, que queimava sua pele tanto quanto as mãos que acarinham suas costas lentamente. Lenór acompanhou seu riso, tão feliz que as palavras lhe escaparam.

Elas voltaram a se encaixar no abraço da outra, como duas metades que se completavam com perfeição. De olhos cerrados, Lenór foi inundada pela certeza de que a paz verdadeira não reinava sobre fronteiras e acordos, e sim, entre os braços da pessoa amada.

— Você vai perguntar?

— O quê? — ela abriu os olhos para fitar a esposa, que havia se afastou para encará-la. A fraca luminosidade que vinha da lareira, transformou-a em um ser etéreo, cuja beleza tentadora instigou o calor que se espalhou pelo corpo da comandante. Vanieli era maravilhosa.

— A pergunta que prometeu me fazer após a batalha — explicou Vanieli, ainda com aquele sorriso meio bobo e provocativo nos lábios.

Lenór deslizou as mãos pelos ombros dela, o olhar carregado de carinho e uma felicidade que não podia ser contida. Enganchou os dedos na alça da camisola de Vanieli, fazendo-a deslizar pelo ombro e desnudar parcialmente o seio.

— Eu acho que não consigo pensar direito agora para fazer essa pergunta do jeito certo — mentiu para provocá-la e arrastou a outra alça para o lado. O tecido escorregou até a cintura, revelando completamente os seios médios e empinados de Vanieli.

Atenta ao desejo que contornava os olhos escuros dela e começava se espalhar pelo próprio corpo, a Kamarie murmurou:

— Por quê? — sua pele arrepiou, quando um dedo deslizou por sua clavícula e depois deu lugar aos lábios de Lenór.

— Porque estou tão feliz que tudo em que consigo pensar, neste momento, é em fazer amor com a mulher que amo e que me ama também.

A voz rouca e o tom devasso, fizeram Vanieli arfar e o arrepio se espalhou por todo o corpo, quase nublando seus pensamentos ao alcançar o ventre, onde se transformou em uma pequena contração. Buscou a boca dela com a sua, mergulhando nela como se o mundo além daquele quarto e momento, não existisse. Arrastou as mãos morenas e firmes até seus seios, suspirando quando elas os envolveram completamente. Inclinou a cabeça para trás, oferecendo o pescoço para Lenór; os lábios molhados percorreram a pele negra até alcançarem seu queixo e cobrirem os seus, afetuosos.

A comandante ficou de pé, levando-a consigo. Vanieli assustou-se com o rompante, depois riu gostosamente quando ela a colocou sobre a mesa e encaixou-se entre suas pernas. Elas se fitaram com uma mescla de paixão e encantamento, os sorrisos teimando em não se desfazer.

— Faça amor comigo, Comandante Azuti. Mas, também, faça a pergunta que me prometeu — arranhou as costas dela, suave. — Ou, serei eu a perguntar.

Ainda risonha, ajudou-a a se livrar das roupas e fez o mesmo com a sua túnica de dormir. Apoiou as mãos na mesa, o corpo parcialmente inclinado para trás. Passeou os olhos pelas tatuagens de Lenór, os músculos que se destacavam no abdômen e a nova cicatriz que o atravessava.

Engoliu em seco, ansiosa por se afogar nos prazeres daquele corpo. Àquela altura, a vontade de ser possuída por ela, começava a tomar o controle do seu raciocínio.

Deuses, como pude demorar tanto para perceber que ela é o meu mundo?, perguntou-se, ancorada no lago negro em seus olhos, que a devorava ao mesmo tempo que idolatrava. Apressada, envolveu a cintura de Lenór com as pernas e a trouxe para perto, arfando quando seu sexo roçou na penugem que cobria o ventre dela. Exigiu:

— Pergunte.

As mãos de Lenór escorregaram sobre a pele sedosa, devagar e tão suave, que Vanieli arrepiou inteira. Quis se desfazer sob o contato, a respiração falhou, o coração iniciou uma corrida. Lenór alcançou um dos seios dela e tomou um instante para admirá-lo, completamente encaixado na sua mão. As pernas de Vanieli aumentaram a pressão na cintura dela, que abocanhou o mamilo com um suspiro profundo e satisfeito, quando um gemido escalou a garganta da Kamarie e se deixou ouvir. Ela fez o mesmo com o outro seio, antes de tomar os lábios dela, outra vez. Suas línguas bailaram com urgência, trocando carinho e desejo, assim como as mãos que percorriam seus corpos em desespero.

— Por favor, pergunte — Vanieli pediu no meio do beijo, os dentes prendendo seu lábio inferior. Passou a língua por ele e depois chupou-o, provocante.

Lenór soltou um gemido lento e profundo, a temperatura em seu ventre aumentando consideravelmente.

— Quer casar comigo? — finalmente, atendeu o pedido dela.

— Sim! — Vanieli respondeu feliz, deixando o olhar devasso de lado para se mostrar terna e apaixonada. — Aqui! Agora!

Lenór sorriu, tão lindamente apaixonada, que a Kamarie prendeu a respiração de encantamento.

— Vamos casar agora — continuou ela, juntando o rosto da Azuti entre as mãos. — Este será o nosso ritual de união. Não quero outra cerimônia, só você e eu confessando o que sentimos e nos amando. Não preciso de um sacerdote, nem de uma festa ridícula. Tudo o que quero é estar ao seu lado por tanto e quanto tempo você me quiser consigo, Lenór.

— Para sempre. É esse o tempo que desejo tê-la ao meu lado.

Vanieli a beijou de novo e enroscou-se no corpo dela. Lenór afundou o rosto em seus cabelos fartos, ocultando as lágrimas que retornaram. Por alguns instantes, Vanieli a sustentou em silêncio, também emocionada, então afastou-a e escorregou de cima da mesa. Beijou-a, carinhosa.

Lenór Azuti era a sua vida, o seu coração e, por tudo que era mais sagrado, prometeu a si mesma que faria dela a mulher mais feliz do mundo.

O fogo da lareira se extinguiu e, em seu lugar, restou um punhado de brasas cuja luz mal alcançava metade do caminho até elas. Ainda assim, Lenór enxergou o reflexo do fogo nos olhos dourados da Kamarie enquanto os lábios dela exploravam a pele dos seus ombros e as mãos apalpavam suas formas, reacendendo o desejo que a emoção afastou. Prendeu a respiração quando a mão dela se insinuou entre as suas pernas.

Ela amava quando Vanieli assumia o controle, derrubando suas próprias barreiras e entregando-se ao desejo pleno desde a primeira vez que se renderam a paixão.

— Lenór, eu quero fazer amor com você todas as noites da nossa vida juntas — ela murmurou, acariciando um ponto sensível. A Azuti arfou, os olhos fitos nos dela, que estavam tão brilhantes quanto ouro ao sol. — Quero te ouvir gemer meu nome quando alcançar o prazer e depois me enroscar no seu corpo e dormir com o embalo da sua respiração.

Vanieli foi descendo pelo corpo dela, alternando beijos e declarações:

— Quero ouvir seu riso debochado e suas provocações sempre que eu me mostrar boba e inocente. Quero continuar aprendendo magia e artes de luta para me tornar mais forte e te proteger, assim como você faz comigo. Quero me tornar seu abrigo e sua força, assim como você é para mim — beijou a nova cicatriz na barriga de Lenór e ficou de joelhos, a respiração quente tocando a penugem do ventre dela. — Quero ser sua esposa, Lenór. Sem medo de te amar e estar ao seu lado em Cardasin ou qualquer outra parte do mundo. Você me aceita?

Com o coração agitado de emoção, Lenór reuniu forças para dizer em meio a um sorriso largo e cheio de ternura:

— Sim!

Com o olhar ainda mais brilhante e emocionado, Vanieli retribuiu o sorriso e, por fim, beijou o sexo molhado dela. Lenór sentiu o corpo inteiro tremer de satisfação, desejo e amor. Enfiou uma das mãos nos cachos negros dela, a outra mão apoiada na mesa.

A língua dela brincava com o seu prazer. Hora fazendo promessas urgentes, hora atormentando-a lentamente. Uma deliciosa tortura, que ambas desfrutavam, compartilhando sons e palavras devassas, misturadas a declarações de amor. Havia uma fome berrante e inebriante de pertencimento e entrega.

A Kamarie amava cada gemido que alcançava seus ouvidos, cada “eu te amo” sussurrado que Lenór deixava escapar misturado a pedidos apressados e afagos desesperados em seus cabelos. Sobretudo, ela amava ser o motivo daquele destempero, de fazê-la desmanchar a seriedade para olhá-la daquela forma lasciva, como se nada no mundo fosse mais importante do que o momento de prazer e entrega que estavam compartilhando.

E quando Lenór jogou o corpo para trás, mordendo o lábio com força, explodindo em um orgasmo longo e trêmulo, Vanieli ficou de pé e encaixou sua boca na dela, num beijo tão carinhoso, que carregava um universo de sentimentos.

Enquanto as ondas prazerosas percorriam seu corpo, arrebatando seus pensamentos e atiçando todos os sentidos, Lenór encostou a testa na dela.

— E pensar que você quase fugiu do quarto na nossa noite de núpcias — provocou-a, um sorriso preguiçoso na boca.

— Você nunca vai me deixar esquecer isso, não é? — Vanieli também riu, beijando o ombro dela.

— Pode apostar que não.

— Bom, se eu pudesse voltar no tempo, diria para a minha versão mais jovem, que estava sendo uma idiota e que não há nada mais gostoso e excitante no mundo, do que ser amada por Lenór Azuti. Em todos os sentidos.

Lenór se afastou para encará-la. A felicidade fazia festa no seu peito e ela guiou a mão de Vanieli até ele. A Kamarie sentiu, na ponta dos dedos, os seus batimentos fortes e apressados. Sorriu.

— Eu não faria nada diferente, Vanieli. O caminho árduo que percorremos até aqui, os momentos intensos compartilhados, moldaram nossos sentimentos. Eu me apaixonei no momento em que você disse sim à proposta do Mardus. E continuei me apaixonando todos os dias, só demorou para admitir isso.

Feliz, Vanieli deixou-se ser conduzida para a cama. Quando suas costas foram de encontro ao colchão, elas trocaram um beijo carinhoso. E enquanto Lenór reavivava as chamas da lareira, colocando mais lenha nela, fez uma rápida oração em agradecimento. Pois, aquele amor não poderia ser outra coisa senão um presente divino.

Uma hora depois, o sol despontava no horizonte e os primeiros raios invadiam o quarto. Vanieli ainda sentia as ondas de prazer percorrendo seu corpo, quando ouviu Lenór dizer:

— Eu não acreditava em destino, mas agora sei que você e eu somos o destino uma da outra.

— Isso é bem romântico — ela sorriu, fazendo um carinho no queixo de Lenór.

— Não é mesmo? — brincou com um dos cachos negros do cabelo dela. — Mas não se trata apenas de romantismo.

Vanieli apoiou-se no cotovelo para fitá-la melhor.

— Onde quer chegar?

— Quando estava inconsciente, lá na floresta, eu tive um sonho… — e contou sobre seu encontro com Amani e tudo que sentiu e descobriu sobre as vidas que viveu antes daquela.

— Se eu não soubesse o quanto sonhos podem ser reais, — recordou de quando conheceu Tamar e, também, da maneira como viu Lenór no abismo em seus sonhos — acharia essa história inacreditável.

— Concordo. Às vezes, até penso que foi uma ilusão causada pelos ferimentos, mas aquilo aconteceu. Eu estive com ela, com a minha… — respirou fundo — minha mãe. Tenho tanta certeza de que ela está vindo para cá, neste momento, quanto tenho de que preciso de ar para viver.

Vanieli limitou-se a balançar a cabeça, confusa. No entanto, quem era ela para negar as coisas fantásticas daquele mundo?

— É meio assustador imaginar que a minha “sogra” é uma deusa — brincou.

— Boba! Ela não é uma deusa, é uma rainha — tocou o queixo dela. — Você parece estar levando essa história com muita tranquilidade.

— Depois de tudo que vivemos no último ano, nada mais consegue me surpreender — encolheu os ombros.

— E se… — limpou a garganta — E se eu te dissesse que quando segurei a mão dela, eu vi nós duas? Não agora, nem com essa aparência e nomes, mas em outras vidas. Eu já te encontrei e amei antes. Uma guerreira de lindos cabelos vermelhos, audaciosa e feroz. Um nobre de pela negra retinta, com um riso debochado e um enorme coração. Uma adolescente magricela, de pele e cabelos claros, à beira da morte em uma floresta densa e escura… Todas essas pessoas eram você e tinham seus olhos, a mesma cor dourada, o mesmo jeito de me olhar… Eu não sei explicar, mas era você.

Vanieli aproximou o rosto do dela, ainda tentando absorver aquela história. Mesmo assim, encantada com a possibilidade de ser real.

— Se isso for mesmo verdade, Lenór, fico feliz. É apenas a confirmação daquilo que o meu coração já sabia, você é a mulher da minha vida.



Notas:

Quase lá!

Obrigada por ainda estarem aqui.

Beijos!




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