Poucos passos separavam Vanieli e seus companheiros da saída do túnel. Assim que a alcançou, alguém a atirou de volta para o interior da caverna. Do chão, ela assistiu uma cortina de fogo cruzar o local onde estivera, enquanto um grito estranho e dolorido arranhava seus ouvidos.
Ela arfou, aceitando a ajuda de Elius e Dalise para ficar de pé com a pessoa que a empurrou. Os reflexos das chamas na entrada iluminaram o rosto pálido de Lenór.
— Deuses! — falou a Kamarie, jogando os braços em torno do pescoço da esposa. — Você está bem?
— O suficiente — Lenór garantiu, após um forte exalar. Ela havia despertado nas costas de um soldado, enquanto fugiam através do túnel estreito e quase sufocante. O resto do caminho fez com suas próprias pernas, porém se negou a ir além da entrada sem a esposa e companhia. — Mas não temos tempo para isso. Precisamos ir para o Castelo.
— Jamais me oporia a isso. Criaturas do abismo nos atacaram, logo após o confronto com Lorde Vans. Os aprisionei na água, mas isso não irá durar. Já sinto a magia se desfazendo.
— A situação lá fora também não é agradável.
Lenór colocou meio corpo para fora da caverna. O fogo que ardia em volta permitiu que Vanieli visse algumas gotas de sangue escorrerem pelas roupas dela, ainda encharcadas pelas águas do lago. A Kamarie sentiu um aperto de preocupação no peito.
— Venham. Acho que é seguro.
Ela segurou a mão de Vanieli e deixaram o abrigo. As chamas geradas pela magia da grã-mestra devastaram aquele pedaço de floresta, restando apenas o chão enegrecido e quente, com meia dúzia de árvores carbonizadas, ainda de pé.
— Pelos deuses! — Elius sussurrou.
— Havia criaturas aqui, quando deixamos o túnel. Ordenei que os soldados continuassem a correr em direção ao Castelo. Foi quando Melina, o rei e outros surgiram como uma benção dos deuses.
O grupo alcançou a floresta, onde as árvores se mantinham intactas. Alguns soldados os aguardavam, sob a liderança de Lorde Taniel. Eles indicaram o caminho a seguir e tomaram a dianteira. Não muito distante dali, a luta se desenrolava e os sons que ela gerava eram tão assombrosos quanto os rastros que deixava. Clarões de magia eram vistos a todo instante.
— Vocês estão bem? — Taniel perguntou. — Vamos! O Castelo está próximo e a maioria dos homens já deve ter ultrapassado a barreira de fogo.
De fato, a luminosidade gerada pelas chamas do círculo de magia que Melina criou, era muito intensa ali. Tanto que podiam enxergar tudo a sua volta como se fosse dia.
— E os outros? — Dalise perguntou. — O rei é minha responsabilidade.
— O rei ordenou que eu os levasse para a segurança enquanto ele, a grã-mestra e companhia distraem aqueles malditos demônios. Acredite em mim, também não gosto disso, mas ele é o rei e me garantiu que estaria logo atrás de nós.
Uma forte onda de magia arrebentou árvores e algo passou voando à frente do grupo, que só percebeu do que se tratava quando atingiu o enorme tronco de uma árvore secular. O corpo de Melina deslizou até atingir o chão e Vanieli correu em seu socorro.
A Kamarie gritou o nome dela e, se não fosse pela agilidade de Dalise, que a atirou ao chão, Vanieli teria sido atropelada por uma pedra tão grande quanto um cavalo. A rocha atingiu outra árvore com tamanha força, que ela se partiu e tombou, dividindo o grupo.
— Malditos demônios! — esbravejou Taniel. — Estão todos bem?
Ele gritou do outro lado do tronco.
— Sim! E vocês? — Lenór perguntou.
— Também — garantiu o lorde.
— Ótimo. Continuem, vamos dar a volta e logo nos juntamos a vocês.
— Tem certeza, comandante? — Elius perguntou, fazendo esforço para escalar o tronco e mostrando sua cabeça um pouco acima deste.
— Não se preocupe, Elius. O rei já se aproxima e não vamos ficar a espera do inimigo — ela apontou para a aproximação de Mardus, Dimal e, para sua surpresa, Yahira.
O capitão hesitou em seguir a ordem por um momento, mas logo retornou para o chão e incentivou lorde Taniel e o resto dos soldados a continuarem o caminho.
— Cuidem-se! — ele gritou antes de partir.
Mardus e os outros vinham em carreira desabalada e pareciam ter saído de uma floresta de espinhos, tamanha a quantidade de cortes em seus corpos.
— Deuses! Que alegria vê-las bem! — disse o rei. — Precisamos ser rápidos. Consegui criar uma ilusão para distraí-los, mas não vai demorar para perceberem meu truque e compreenderem que estão lutando contra pessoas de fumaça e uma gatinha estranha.
Ele parecia exausto e realmente estava. Mesmo quando morava em Barafor, não usava sua magia com frequência. Ser forçado a agir em um confronto estava desgastando-o rapidamente.
— Menos conversa e mais pressa! — Dalise aceitou o auxílio do irmão para ficar de pé com Vanieli e, juntos, ajudaram Melina. — Não quero estar aqui quando as coisas que fizeram isso aparecerem.
— Concordo — Vanieli passou a mão na cabeça, com a sensação de que um fio invisível havia se partido dentro dela. — A magia nas águas da caverna acabou de se desfazer e logo teremos mais dessas monstruosidades à nossa procura. Melina, você está bem?
Ela se aproximou da grã-mestra, que era sustentada de pé por Yahira. Ofegante e gemendo de dor, a grã-mestra afirmou:
— Ficaremos seguros fora do círculo. Elas não poderão nos seguir além da barreira — sangue escorreu pelos lábios dela, que apontou fracamente para a árvore caída. Parecia desorientada e a forma entrecortada como respirava, revelava que a pancada que sofreu deixou danos significativos ao seu corpo. — Essas coisas são Sombras, demônios como os que enfrentamos em Flyn.
— Achei que tínhamos destruído todas naquela maldita guerra — Dalise quase gritou, enervada. Afinal, o trauma que aquele conflito lhe deixou era profundo.
— E assim foi feito — Melina forçou o ar para dentro dos pulmões. — Essas coisas saíram do abismo e são mais fortes do que as que Cavaleiro criou. Tomem cuidado.
A Kamarie mordiscou o lábio, notando o ferimento um pouco acima do coração dela. Marcas profundas revelavam que cinco garras longas e pontiagudas se fincaram ali. Uma mancha enegrecida tomava conta da pele alva de Melina, com uma rapidez assustadora. Estava claro que o ferimento a envenenou. Melina tossiu sangue e Mardus pronunciou o nome dela com aflição, usando o pouco que sabia sobre magia curativa para tratá-la. Entretanto, não obteve resultado.
Ele estava próximo quando a criatura contra a qual ela lutava a atacou, porém, houve uma forte explosão de magia em seguida e não viu o golpe que a machucou daquela forma. A grã-mestra ameaçou cair e Yahira aumentou a pressão da mão que a sustentava de pé.
— Vamos logo! — disse Lenór, quando Dimal colocou Melina, desfalecida, nos braços.
***
Alheia ao que se passava na floresta, Voltruf se perdia na névoa do abismo. Ela flutuou nas sombras, misturando-se a uma infinidade de mãos, rostos e vozes. Era tão perturbador que ela chegou a acreditar que havia se perdido completamente na escuridão.
Em certa altura, caminhou por lugares assombrados e sangrentos, lutou contra demônios, conversou com pessoas estranhas e ficou confusa ao ponto de esquecer o motivo de estar ali. Então, veio a tristeza, uma solidão arrasadora e um medo que não findava.
Contudo, também havia um fiapo de um sentimento carinhoso, uma presença forte e suave ao mesmo tempo. Esse fio inexplicável lhe trazia calma e a guiou até uma rocha, a qual escalou com grande esforço e, quando saiu da névoa, todas as memórias retornaram com a força de uma enxurrada. Porém, escorregou e caiu novamente, sendo engolida pela névoa.
Sua queda foi interrompida quando mãos firmes a seguraram. Voltruf foi inundada por uma sensação ímpar de reconhecimento. Aquele contato era tão intenso, que parecia estar tocando a si mesma, milhares de vezes. Ergueu a face para o alto e, em meio à penumbra, encontrou os olhos castanhos e brilhantes da sua mestra.
— Te peguei! — ela disse, aumentando a força das mãos em volta dos seus punhos.
— Marie — Voltruf pronunciou o nome dela com alegria. Sentiu algo vibrar em seu interior, a força brutal e delicada do laço mágico que as unia.
A mestra a puxou para junto de si e Voltruf percebeu que ela não estava sozinha. Uma mulher de longas asas vermelhas e olhos violetas como os seus, a sustentava no ar. Lyla mostrou um sorriso debochado, dizendo:
— Que tal uma carona para longe deste inferno? — ela piscou, distendendo as asas e impulsionando-as para o alto e cada vez mais longe da névoa.
***
Não tardou para visualizarem a imensa cortina de fogo criada por Melina. No entanto, a altura das chamas não fazia jus as descrições e rapidamente ficou claro para todos que isso tinha a ver com os ferimentos dela. Quanto mais fraca Melina ficava, menor a barreira se tornava. Vanieli olhou para ela nos braços de Dimal e sensações ruins a assaltaram nesse momento.
Não mais que uma centena de metros os separava da segurança.
— Não parem! — gritou o rei.
Do outro lado da barreira, centenas de soldados se aglomeravam na expectativa do retorno deles. Os homens gritavam, incentivando-os, mas o barulho que faziam não era capaz de sobrepujar os gritos e rugidos das criaturas que os perseguiram.
Mardus lamentou quando a sua magia se desfez, poucos minutos após se colocarem em movimento. A distância colocada entre o grupo e os inimigos foi rapidamente reduzida e, agora, as criaturas os caçavam, como feras em busca de alimento.
— Rápido!
À frente do grupo, Dimal apertou a grã-mestra contra o peito. Eles pareciam ter se tornado o alvo principal das criaturas. Por vezes, golpes mágicos foram lançados na sua direção. Coube a Lenór e Yahira interceptarem eles. O que ocorreu de formas desastrosas, culminando em fortes pancadas em árvores e pousos doloridos sobre folhas e galhos secos.
Dalise, Mardus e Vanieli retribuíam os ataques mágicos, contudo, pouco dano causavam. Além disso, naquela altura seus corpos cobravam o preço pelo uso excessivo da magia.
— Estamos quase lá! — Dimal falou para uma Melina quase inconsciente. — Aguente um pouco mais.
Foi nesse momento que três criaturas os alcançaram. Diferentemente das outras, elas deram a volta até o grupo, ocultas pelas árvores. Dimal sustentou Melina com uma das mãos, a outra alcançou a espada e desferindo um golpe no inimigo mais próximo. A lâmina atingiu o braço dele e encontrou tanta resistência quanto se tivesse batido em uma rocha. O palatin recuou, encarando o sorriso cruel do adversário.
Além da cortina de fogo, Lorde Arino ordenou aos arqueiros:
— Atirem!
A maioria das flechas não ultrapassou a barreira e virou cinzas. Entretanto, as que alcançaram o outro lado, incendiaram-se e, ao atingirem o alvo, causaram danos reais. A criatura que Dimal enfrentava foi alvejada três vezes e emitiu um grito gutural.
Uma das criaturas reagiu ao ataque socando a barreira e teve o braço incendiado por ela. O palatin recuou alguns passos e os soldados continuaram a alvejar os monstros, que logo usaram a própria magia para se defenderem e tornar ineficaz os ataques humanos.
Ao se verem cercados, o grupo se aproximou.
— Fiquem aí! — Mardus fez sua voz chegar até os soldados que se preparavam para cruzar a barreira e lutar. — Fiquem em segurança!
Na tentativa de recriar a mesma magia de proteção que conjurou no campo de batalha, a Kamarie não percebeu a criatura que saltitava pelos galhos das árvores e jogou-se sobre ela. Yahira segurou a sua couraça, puxando-a para trás. Entretanto, o inimigo estava, literalmente, caindo sobre as duas. Sem hesitar, Lenór tomou a frente da esposa e Vanieli sufocou um grito de medo, mas algo extraordinário aconteceu.
A criatura, literalmente, parou no ar, as garras a poucos centímetros do pescoço de Lenór. Instantes depois, ela se partiu ao meio, como se a mais afiada das lâminas tivesse rasgado seu corpo, que não tardou a virar poeira. O vento soprou-a para longe e a comandante engoliu em seco, encarando a mulher que o matou: sua antiga mestra.
Lenór ficou tão perturbada e, ao mesmo tempo, aliviada com a visão dela, que sequer notou quando a criatura mais próxima a Dimal e Melina avançou em direção aos dois, mas não chegou a alcançá-los, pois foi esmagada quando Voltruf caiu dos céus na forma felina e usou sua magia para criar um grande bloco de gelo. Marie estava montada nas costas dela.
Quando outra criatura investiu contra as duas, Lyla pousou sobre os ombros desta e enfiou a espada feita das suas próprias penas no pescoço dela.
— Graças aos deuses vocês chegaram! — Mardus soltou o ar dos pulmões, que havia prendido quando percebeu a criatura caindo sobre Vanieli. Após conjurar o círculo, Melina o deixou ciente de que isso convocaria suas companheiras e, talvez, ele tivesse de lidar com outra crise diplomática em um futuro próximo.
— Desculpem o atraso — Virnan falou. Ela tinha uma das mãos erguidas, enquanto a outra segurava uma adaga com uma joia encrustada no cabo. Duas mulheres a acompanhavam. A primeira, possuía os olhos azuis e cabelos loiros, enquanto a outra era exatamente como Vanieli se lembrava dos seus sonhos, cabelos castanhos e um rosto gentil.
Voltruf bateu uma das patas no chão e a terra tremeu, empurrando as outras criaturas para longe.
— Virnan, a lua é vermelha no abismo — Lyla contou, fazendo a outra trincar os dentes.
Graças aos sentidos aguçados, a rainha florinae percebia algo estranho no ar daquela floresta e no cheiro que as Sombras exalavam, revelando que não se originaram naquele pedaço de mundo. Porém, se beneficiavam da magia reforçada no mundo além do abismo.
— Tamar e Marie cuidem de Melina e dos outros — Virnan ordenou, erguendo um escudo de ar quando golpes mágicos cruzaram o terreno na direção do grupo. Ela podia ouvir os passos pesados de mais Sombras se aproximando, olhou para a mulher ao seu lado e bastou dizer o nome dela para passar o recado: — Fantin.
— Inferno! E eu que achei que esta seria mais uma noite agradável acompanhando Tamar na biblioteca! — reclamou a outra. — Vamos acabar logo com isso, Melina está sofrendo.
Enquanto falava, várias Sombras saíram da floresta e o poder que elas emanavam revelava que Melina e aquelas pessoas ainda estarem vivas era quase um milagre. Voltruf tornou a bater uma das patas no chão e, dessa vez, estacas de gelo e pedra se projetaram dele, criando dificuldade para as Sombras se locomover.
— Faça-as maiores, Nária! — Virnan gritou para ela, que não tardou para obedecer, preenchida pela farta magia que a proximidade com Marie fornecia. Voltruf fez grandes blocos de terra e rocha se erguerem, abalando as árvores em volta e fazendo com que algumas caíssem.
Enquanto isso, Lenór segurou a mão de Vanieli.
— Vamos. Essa luta não é mais nossa.
— Podemos ajudar, Lenór.
— Faremos isso não atrapalhando.
As Sombras fizeram um ataque conjunto e a barreira de ar que Virnan sustentava caiu. A explosão mágica atirou o grupo em direção à barreira e o casal e companhia caiu do outro lado, sobre um grupo de soldados.
Lorde Arino ajudou a filha e a nora a sentarem. Vanieli sentiu uma pontada nas costelas e deu-se por vencida. Ela virou a cabeça para o lado e percebeu que Virnan e Fantin foram protegidas por Lyla, que batia suas enormes asas vermelhas a dez metros do solo, segurando-as pelas couraças.
Dimal protegeu Melina com o próprio corpo, que teria ido de encontro a uma carroça carregada com barris de óleo, se não fosse pela agilidade do tigre Voltruf. Marie usou sua magia para se proteger e a Tamar, erguendo um enorme bloco de pedra à frente delas. As duas mulheres permaneciam dentro da barreira.
— Eu odeio Sombras — rosnou Fantin, quando Lyla a soltou com Virnan. — Vamos logo retalhar essas coisas!
E assim foi feito.
Entregue ao torpor dos ferimentos, Lenór segurou a mão de Vanieli e, juntas, elas assistiram a destruição que aquelas quatro mulheres eram capazes de causar. Árvores e Sombras foram despedaçadas por lâminas invisíveis. A terra abriu e fechou para esmagar criaturas. Chicotes de água rasgaram pele e ossos, afogaram e até congelaram os inimigos. Na forma felina, Voltruf estraçalhou criaturas e Lyla usou as penas de suas asas como lâminas afiadas.
E quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte desértico além do abismo, não havia mais inimigos para combater, tampouco palavras nas bocas das dezenas de homens e mulheres que testemunharam a contenda.