Eleonora, quando viu que Suzana havia chegado, sentiu que, finalmente, o seu dia estava completo. Caminhou para ela com a freqüência cardíaca batendo recordes de rapidez “Meu Deus, que mulher bonita”. Os cabelos negros e longos reluziam sob a tênue luz do jardim. A blusa de seda marfim, simples e elegante, caía vaporosa sobre o torso poderoso e flexível, e a cor realçava a tez morena do pescoço longo de contornos, ao mesmo tempo, suaves e vigorosos. Usava uma calça preta de corte clássico, perfeitamente ajustado ao corpo delgado e às pernas longas que, apesar da presença da bengala denunciando sua momentânea fragilidade, exalava uma aura de força e da conhecida potência que deu a ela a maior impulsão do circuito mundial. Sem maiores adornos que um par de brincos de ouro e ônix e um colar também de ouro com uma efígie que Eleonora não conseguiu identificar, Suzana era só simplicidade e beleza, sem contar o onipresente magnetismo pessoal que escapava dela com a mesma naturalidade com a qual respirava.
Ficaram ambas paradas e caladas, uma de frente para a outra, por alguns segundos em muda contemplação. Por fim, Eleonora falou quase num sussurro:
– Que bom que você veio.
Meio atordoada pela descoberta que acabara de fazer, Suzana demorou um pouco para articular um comentário:
– Eu…É… – olhou para o presente em sua mão e o estendeu para Eleonora – É para você.
– Obrigada.
Em instantes as duas já estavam cercadas por metade da festa. Todos encantados por estarem perto de uma atleta famosa. Suzana foi arrastada para dentro da festa pela gentil curiosidade dos amigos e familiares de Eleonora que apenas observou o inofensivo seqüestro com um sorriso divertido e só então pôde reparar no pequeno pacote em sua mão.
“Um presente dela”. Ao retirar reverentemente o papel do embrulho, revelou-se uma caixinha de veludo preta, e, dentro dela, um colar de ouro finíssimo com um pingente esmeralda em formato de lágrima.
Eleonora olhou com ternura para a pequena jóia cuja sutil delicadeza denunciava uma enorme sensibilidade por parte de quem a escolhera. Em seguida, seu olhar procurou por Suzana e a encontrou tentando inutilmente recusar o enésimo salgadinho. Sorrindo de novo, desta vez com uma certa malícia, Eleonora partiu para uma missão de salvamento.
– Suzana, vamos ver agora aquilo que eu queria te mostrar.
Um primo de Eleonora, tenazmente postado ao lado da famosa atleta, redargüiu:
– Que é que você precisa mostrar para ela?
– Coisas de mulher. Venha, Suzana – Eleonora estendeu a mão e puxou Suzana para longe da tietagem explícita.
Ainda de mãos dadas, passaram pela sala onde algumas companheiras de equipe acenaram para as duas e entraram na calma do escritório do pai de Eleonora.
– Mais tranqüilo, não? – comentou Eleonora.
– Nem me fale.
– Suzana, eu queria agradecer o presente. É lindo. Eu adorei.
– Bem…Eu achei que combinava com você – justificou Suzana, um tanto embaraçada e fingindo um enorme interesse por uma coleção de direito civil na estante em frente.
Logo atrás dela, próxima o suficiente para tocar os cabelos negros apenas estendendo os braços, Eleonora perguntou baixinho:
– Por que você acha que combina comigo?
Sem se virar, Suzana respondeu pausadamente como que pesando cada palavra:
– Porque, como você, ele é singelo, mas lindo. Forte, mas delicado. E, além disso, a pedra tem a cor dos seus olhos.
Eleonora sentiu uma estranha combinação de sensações. Algo como o ventre enregelar ao mesmo tempo em que o rosto pegava fogo. Uma agitação violenta invadiu-lhe o íntimo e foi com a voz abafada pela emoção mal contida que ela falou:
– Você pensa…Quero dizer, você acha tudo isso de mim?
Suzana virou-se para Eleonora e não disse nada. Ficou olhando para a ela incapaz de elaborar o menor pensamento coerente. Não sabia lidar com o que estava acontecendo. Nunca dera muita importância a relacionamentos afetivos. O basquete sempre viera em primeiro lugar. Teve alguns namorados. Relacionou-se com uma colega de time, uma jogadora excepcional por quem sentira muito mais admiração do que propriamente atração, mesmo assim o namoro durou alguns meses… Mas, isso? Essa vontade indizível de tocar esta menina, de senti-la. Esse estremecimento incontrolável, essa excitação latejante só de imaginá-la em seus braços. Não. Isso nunca tinha acontecido.
Eleonora, no entanto, muito mais aberta ao inusitado, muito mais instintiva e emocional, não perdia um segundo desse delicioso encantamento, ponderando conjeturas. Simplesmente, deixava-se invadir pela energia forte e arrebatadora que pairava quase palpável entre as duas. Não percebia nada além da presença da mulher a sua frente e do seu desejo latente. Devagar, mas com doce determinação, foi erguendo a mão até tocar com extrema ternura uma mecha de cabelo escuro descansando sobre o ombro. Suzana não se moveu. Com a mesma terna resolução, tocou o queixo voluntarioso e deslizou a ponta dos dedos suavemente pelo contorno da face até o lóbulo da orelha para, em seguida, adotar um trajeto descendente em direção à penugem fina e abundante da nuca de Suzana que fechou os olhos enquanto ia sendo puxada pela pequena mão que a enlaçava pelo pescoço, completamente entregue.
De repente, alguém abriu a porta com estrondo. As duas se separaram como se tivessem levado um choque.
– Elê, você está aí? Mamãe mandou te procurar. Você tem convidados, menina!
Era o irmão caçula de Eleonora, com a costumeira indiscrição das crianças. Da mesma forma abrupta que entrou, retirou-se correndo agitado sem ter notado absolutamente nada de anormal.
Suzana passou a mão pelos cabelos e deu um longo suspiro.
– Acho melhor você dar atenção aos seus convidados.
Eleonora estava abrindo a boca para retrucar quando foi a vez da mãe dela entrar no escritório.
– Filha, sua madrinha acabou de chegar. Vá recebê-la e deixe de monopolizar a atenção de Suzana.
Dona Clarisse pegou Suzana pelo braço e saiu conduzindo-a, conversando animadamente.
– Vamos, querida. Você sabe que a Elê começou a jogar basquete por influência minha? Como você lida com o assédio constante das pessoas? Deve ser terrível. Você quer uma taça de vinho?
Suzana deixou-se conduzir sem uma palavra. Taça de vinho? Ela estava precisando mesmo era de uma boa dose de whisky. Duplo. Cowboy.
Eleonora demorou um pouco para desincumbir-se das obrigações de anfitriã. Enfim, conseguiu e saiu procurando Suzana pela festa, sem sucesso.
– Mãe, onde a senhora deixou a Suzana?
– Ah, filha, ela já foi. Pediu para eu me desculpar por ela por não ter se despedido de você. Mas, ela disse que o joelho a estava incomodando um pouco e que precisava descansar.
Para Eleonora, a festa tinha acabado.
– Suzana, o porteiro interfonou dizendo que o táxi já chegou. Foi você quem pediu? Onde você…- Camilla parou de falar quando viu a mala ao lado da cama.- O que significa isso?
– Eu estou indo para a capital, Camilla.
– Assim, sem mais nem menos. Sem me consultar. Eu sou sua terapeuta, Suzie!
– Eu sei. Foi uma decisão meio abrupta. Mas, foi você mesma quem disse que já estava na hora de uma nova avaliação da cirurgia pelo Doutor Mautner.
– Ah! Então, você vai para a capital para se consultar. Tudo bem! Mas você poderia muito bem ter marcado a consulta para o fim da semana para não prejudicar os treinos. Porque esta loucura repentina?
– O Professor Jorge pode perfeitamente me substituir por uns poucos dias.
-É, ele pode… Olha, Suzie. Eu vou fingir que não há nada de errado porque, no final das contas, você vai acabar me contando.
Suzana tentou abrir a boca para fazer uma observação. Camilla a impediu com um gesto irritado.
– Não! Não me aborreça com explicações… apenas… – respirou fundo – Volte. E, com boas novas, por favor – tentou sorrir.
– Eu vou voltar, Milla. Eu tenho um time para dirigir. Nunca fugi das minhas obrigações.
– Não, amiga. Você não foge das suas obrigações. Só dos seus sentimentos. Você não precisa me dizer nada para eu adivinhar que é isso, mais do que tudo, o que está te levando embora hoje.
Suzana não disse nada. Apenas se abaixou para pegar a mala, mas Camilla se antecipou e a pegou primeiro. Caminharam em silêncio até o elevador e assim permaneceram até a porta do táxi. Suzana quebrou o silêncio:
– Camilla, obrigada por tudo. Você é muito mais que uma amiga. Se você precisar… – Preciso sim!– cortou Camilla. – Preciso que você volte logo e enfrente o que está te inquietando tanto. Preciso que você saiba que eu estou aqui, que eu te amo e que você pode confiar em mim.
– Eu sei…Só me dê um tempo, por favor.
– Sempre.
As duas se abraçaram longamente. Suzana deu um beijo na testa de Camilla e entrou no táxi. Não olhou para trás quando o carro partiu.
Eleonora entrou ansiosa na quadra do ginásio. Mais do que qualquer coisa, ela queria ver Suzana. Havia passado todo o domingo olhando o pôster da jogadora atrás da porta do quarto. Sentira uma falta dolorosa e desconhecida da presença da bela morena. Não queria sair. Não queria conversar. Não queria nem mesmo comer. Somente queria ver aqueles olhos azuis e tocar novamente aqueles cabelos negros. Imaginava-se aninhada naqueles braços fortes. Foi preciso que Dona Clarisse ameaçasse arrancá-la à força do quarto se ela não descesse para almoçar. Eleonora beliscou qualquer coisa e voltou para o quarto. A única coisa que desejava era que o dia acabasse logo e a segunda-feira trouxesse Suzana de novo para os seus olhos.
Por hora, no entanto, Eleonora procurava, apreensiva, a conhecida silhueta alta, mas ela não se encontrava na quadra. Somente o Professor Jorge aguardava as atletas. Eleonora se aproximou dele.
– Boa noite, Professor Jorge. Onde está a treinadora?
– Boa noite, Eleonora. Ela ficará ausente alguns poucos dias. Precisou ir para a capital. Eu conduzirei os treinos até a sua volta.
Surpresa e desapontamento.
O auxiliar-técnico comunicou a mudança temporária às jogadoras e deu início ao treino. Sensível demais, magoada pela decepção, torturada por uma saudade que nunca havia experimentado, Eleonora treinou como um autômato. Nem um pingo da velha alegria, das peraltices ou do sorriso constante. De início, as colegas brincaram:
– Iiiih, o leãozinho está muito jururu, hoje.
-O que foi? Urucubaca de hiena?
A pequena armadora não rebateu, com o costumeiro bom humor, às provocações das colegas. Nem sequer respondeu. As jogadoras começaram a perguntar se ela estava doente. O Professor Jorge também. Aproveitando a deixa, Eleonora disse que não estava se sentindo mesmo muito bem. Foi dispensada do resto do treino e foi embora para casa internar-se novamente no quarto. Mas, desta vez, para prostrar-se de saudade.
De manhã, no pátio da universidade, Carlinha a encontrou abatida e desacorçoada.
– Pelo amor de Deus, Elê. Que cara é essa? Quem foi que morreu?
– Oi, Carlinha. Ninguém morreu. Eu só estou um pouco cansada. Você sabe, os treinos e tudo…
– Aham! Se eu não te conhecesse desde que nós duas usávamos fraldas, eu teria acreditado nesse seu blablablá. Vai…Conta aqui para a Carla velha de guerra o que é que “tá pegando”.
– Não é nada, Carla. Eu já disse – a loirinha falou quase com raiva e saiu pisando duro em direção ao pequeno bosque nos fundos do prédio da Educação Física. Sem dar a mínima para o ataque de mau humor da amiga, Carlinha foi atrás.
Eleonora entrou no bosque e se sentou no banco de madeira numa clareira entre as árvores. Pela primeira vez em sua vida, sentia o coração opresso, repentinamente consciente da distância que a separava de uma mulher como Suzana. Ela era uma garota interiorana comum e insignificante. Isso nunca a havia incomodado antes. Não até agora.
Sofria por imaginar-se aquém das expectativas de Suzana. Nem ao menos se lembrava de que a bela morena por pouco não cedera aos seus encantos pueris. Estava infeliz. Estava com saudade. Amava e sofria.
Carla sentou-se ao lado dela sem dizer uma palavra. Eleonora ficou olhando para o vazio, quieta e calada, até que uma lágrima escorreu pela sua face sem que ela conseguisse detê-la. Antes do primeiro soluço, Carla já abraçava a amiga deixando que ela chorasse livremente em seu ombro.