Luz para florescer

Capítulo 27

– Ai, meu Deus, onde estão as alianças? – Carlinha perguntou pela enésima vez olhando aflita pela sala de estar transformada em concentração dos padrinhos.

– Estão bem aqui, amor – Gianne respondeu novamente, colocando a mão sobre o bolso do terno.

– Não se esqueça de que sou eu que vou entregar.

– Eu sei, meu bem. Venha. Vamos até ali conversar um pouco com o André – Gianne estendeu a mão para a esposa que a recebeu com um sorriso carinhoso. Gianne olhou para Carla vestida num belo vestido turquesa cinturado, com os cabelos presos num coque aristocrático e a pele de pêssego discreta e cuidadosamente maquiada, e agradeceu mentalmente aos céus por aquela bela mulher, ainda que meio maluquinha, ser a sua mulher.

Sentados no confortável jogo de sofás, Camilla e o marido, Robert e a namorada, Eve, conversavam sobre o sítio que Suzana e Eleonora compraram em Atibaia, região serrana de São Paulo – local onde eles estavam agora para celebrar a união daquelas duas extraordinárias e amadas mulheres naquela bela tarde de abril.

O organizador chamou os padrinhos para se postarem em seus lugares a fim de se iniciar a cerimônia.

Camilla e Mike, Robert e Eve, André, prestes a se tornar um homem sério e a noiva, Lara, Carla e Gianne. Apenas quatro casais que, no entanto, englobavam as pessoas mais importantes na trajetória da história longa e conturbada de Suzana e Eleonora.

Antes de saírem, Carlinha ainda puxou Gianne pelo braço.

– Gi, nós contratamos baby-sitter?

– Não, amor. As crianças ficaram com sua mãe.

– Eu concordei com isso?

– Bom, Carla, digamos que você estava com a cabeça em outra esfera por causa deste casamento, e…Você concordou, sim.

– Ai, Gianne, nós deveríamos ter contratado. Você sabe que a minha mãe é um pouco, não, muito…Você sabe…Extravagante.

Gianne sorriu divertido.

– Não se preocupe, meu anjo. Afinal de contas, você sobreviveu, não foi?

Saíram todos para o jardim.

No dia anterior, Suzana e Eleonora haviam repassado com o cerimonial que contrataram, os últimos detalhes da cerimônia e da festa que aconteceria em seguida. Não que houvesse grande coisa a resolver. O profissional que contrataram era muito eficiente e sensível em captar os gostos particulares de cada uma das suas contratantes, esforçando-se para agradá-las ao mesmo tempo em que criava um ambiente confortável e de bom gosto.

A cerimônia simples e breve se iniciaria às 17:00 do dia 27 de abril no jardim da linda casa de campo que Eleonora e Suzana compraram e decoraram para compartilharem uma vida juntas. Distante 52 km de São Paulo, o sítio era a perfeita confluência entre paz, beleza e praticidade, não obstante elas conservarem uma confortável residência em Pinheiros, caso precisassem permanecer na capital. O horário – ao final da tarde – fora um pedido de Eleonora que gostaria de aproveitar a luz perfeita e o tom único do céu rosa azulado das belíssimas tardes de outono.

Nesse momento, conversavam sentadas na varanda sobre as novas perspectivas profissionais de ambas. Eleonora havia aceitado a direção de uma equipe da capital paulista, equipe ainda pequena e jovem, mas com excelentes possibilidades. Ademais, era a sua chance de iniciar uma carreira como técnica, cargo no qual pretendia chegar à seleção nacional. Suzana avaliava três propostas concretas, duas em São Paulo, uma delas na capital, e outra em Belo Horizonte, esta sobejamente mais vantajosa em termos monetários do que as demais.

– Eu estou realmente empolgada com time, Suzie. Ainda não é uma equipe para disputar um título, pelo menos nos próximos campeonatos, mas o elenco é muito promissor e o projeto do clube muito interessante. Apesar disso, acredito que faremos uma boa figura mesmo este ano.

– Eu tenho certeza disso, amor, também porque você faz parte desse projeto – Suzana falou com carinho e indisfarçável orgulho enquanto afagava ternamente a mão da mulher que amava.

Eleonora sorriu-lhe com amor e completou:

– Além disso, eu vou precisar preencher todo o meu tempo livre com alguma atividade que me envolva por completo nos dias em que você estiver treinando em Belo Horizonte.

– E quem disse que vou para Belo Horizonte? – Suzana perguntou com uma expressão indecifrável.

Eleonora olhou para ela um tanto confusa.

– Não é da capital de Minas a melhor proposta para jogar nos próximos dois anos?

– Uma das propostas, Elê.

– Sim, mas é a melhor.

– Pode ser a mais vantajosa em se tratando de salário, mas não é a melhor.

– Não?

– Não…

Eleonora já estava com um sorriso preenchendo quase todo o rosto quando perguntou:

– E eu posso saber porque a proposta de Minas não é a melhor…ou pensando bem… Posso saber qual é a melhor?

– Você pode saber as duas coisas, minha jovem senhorita Cavalcanti.

– Sou toda ouvidos.

– Não é a melhor porque vai me manter longe de casa por tempo demais, o que por si só já seria motivo o bastante para não ter a minha preferência…Logo…Por isso…Ontem eu fechei com o time de São Paulo, capital. Esta, sim, a minha melhor opção. Porque a melhor? Ora…Porque eu vou ficar a poucos minutos de uma certa técnica de uma pequena, mas, diga-se de passagem, promissora equipe de basquetebol, de quem, por uma estranha compulsão, eu não consigo ficar longe nem por poucas horas que dirá por dias.

O rosto de Eleonora já era todo sorriso.

Eu me comprometi por telefone, mas segunda-feira eu assino o contra… – Suzana não terminou a frase, Eleonora pulou em seu colo e encheu-lhe a face de beijos sucessivos. Suzana riu deliciada. Eleonora parou a enxurrada de beijos, pousou os olhos verdes no rosto moreno e argumentou com cuidado.

– Mas, Suzie. Você vai ganhar muito menos.

– Eu já tenho dinheiro mais do que o suficiente, Eleonora. O que eu jamais terei o suficiente é a sua presença, meu amor.

Olhos verdes marotos apoiaram o comentário que veio a seguir:

– Suzana Alcott, você é uma romântica incorrigível.

– Na-não, isso é apenas egoísmo, minha querida.

– Sentimental…

– Não abuse da sorte, leãozinho.

– Plangente!

– Deus me livre! Agora é oficial. Você vai sofrer, sua pequena atrevida.

Suzana abraçou Eleonora com os braços longos segurando-a sobre o colo enquanto desferia pequenas mordidas no pescoço da loirinha que ria a se acabar entre gritinhos de susto e prazer.

Os poucos convidados já estavam sentados nas cadeiras sobre o gramado de frente a um singelo altar coberto por uma toalha branca de renda e decorado com lírios, a flor preferida de Eleonora. Entre eles estavam os pais de Eleonora, incluindo um tranqüilo Dr. Marcos cuja facilidade em aceitar a homossexualidade da filha ainda no tempo da faculdade, quando a sempre franca Eleonora expôs à família a sua preferência por mulheres, surpreendeu a todos; a tia de Suzana, discreta e pouco falante, mas visivelmente amorosa com a sobrinha; Regina, Aline, Oscar e a esposa, algumas colegas do basquete mais próximas e alguns outros poucos amigos, a maioria amigos de Eleonora. Além dos padrinhos.

Quem celebraria a união seria um padre, amigo e confessor de Eleonora, cujas idéias sobre amor e comprometimento extrapolavam a ortodoxia católica e avançavam para o entendimento de que o amor é um só sob várias formas. Todas belas, todas dignas de respeito, todas com direito a viver plenamente sua cumplicidade e intimidade.

A música começou. Os padrinhos entraram ao som de Air on the G spring de Bach entoado por um trio para oboé, viola e piano postado ao lado do altar. Seguiu-se um breve momento de expectativa. De repente, o Andante do *Trio Sonata em Si menor de Haendel invadiu a tarde. Vindo de mãos dadas, sem acompanhantes, pajens ou damas-de-honra, Eleonora e Suzana apareceram no jardim. Os presentes abafaram um suspiro de encantamento.

Estavam belíssimas.

Ambas usavam roupas em estilo oriental. Batas longas ajustadas ao corpo sobre calças compridas.

A roupa de Suzana era em tom azul. As bordas das mangas e a barra das calças traziam bordados dourados ricamente confeccionados em desenhos complexos e belos. Os longos cabelos escuros estavam presos numa trança frouxa, mas entremeados aos fios negros, fios dourados surgiam de forma quase displicente como se não estivessem presos a nada, mas fossem algo como uma aura de ouro por entre a cabeleira de seda. Suzana parecia ainda mais uma deusa.

O traje de Eleonora era em tom de pêssego e ligeiramente rosado nas extremidades. As mangas da bata, ao contrário das de Suzana, eram vaporosas, em seda finíssima e igualmente bordadas em ouro. Os cabelos louros estavam soltos, mas cuidadosamente penteados. No pescoço, uma echarpe esvoaçava ao vento outonal. Eleonora parecia uma ninfa, diáfana e quase irreal.

Entraram.

Olhares de carinho e afeto vinham de ambos os lados do trajeto, mas Eleonora e Suzana não viam nada. Horas depois nem ao menos seriam capazes de repetir algumas das palavras tocantes e inspiradas de Padre Luís quão perdidas estavam em si mesmas…Quão inebriadas de uma felicidade delirante cuja face da realidade estava presa nos olhos uma da outra.

Demoraram-se nesse deslumbramento até que os convivas vieram cumprimentá-las. Parentes e amigos as abraçaram, um por um. Logo depois, seguiram todos para a festa organizada ali mesmo no jardim, em comemoração à união de duas pessoas tão especiais.

Camilla, Eleonora e Carlinha conversavam animadamente ao lado da piscina e a fisioterapeuta soltava gargalhadas sonoras em resposta aos comentários espirituosos da melhor amiga de Eleonora. Suzana se aproximou.

– Oi, meninas. Vocês me emprestam a minha esposa por um minuto?

– Só por um minuto, Suzana – Carlinha brincou. – Você vai ter o resto da vida para agüentar essa espoleta todos os dias de sua existência. Como uma boa alma caridosa, devo adverti-la sobre esta horrível sina. Ei! – Carla fez uma cara de assustada. – Agora é tarde demais! Você realmente não pensou nisso quando resolveu se casar com essa baixinha invocada, não foi mesmo, Suzana?

Levou uns tapas de Eleonora.

Suzana falou, sorrindo:

– Só por um instante, Carlinha, eu prometo.

Suzana pegou Eleonora pela mão e saiu conduzindo-a para dentro da casa.

– O que foi, amor? – Eleonora perguntou.

– Paciência, cara-pálida.

Entraram no quarto de ambas e Suzana a conduziu para a sacada.

– Eu só queria um momento a sós com você esta noite, Eleonora, porque eu tenho algo a dizer e…você me conhece, eu não conseguiria na frente de todo mundo.

Suzana pigarreou. Eleonora permaneceu em silêncio calmo e amoroso. Suzana começou a falar de olhos baixos, mas clara e suavemente.

– Hoje…Não é só o dia mais feliz da minha existência…Todos os campeonatos, todos os prêmios e vitórias empalidecem diante do tamanho da alegria que eu senti quando eu tomei a sua mão no jardim.

Suzana respirou longamente.

– Quando eu digo isso, quero dizer, quando eu falo ou escuto coisas do tipo: “Para o resto de nossas vidas”, “Por toda sua existência”, uma parte racional da minha mente diz que nada é eterno, que são tão poucos os casamentos que perduram até o fim da vida…que você pode não me amar para sempre e eu sinto um medo incômodo no meio dessa felicidade.

– Suzana…

– Não, espera! O que eu quero dizer é que não me importa que seja eterno, embora eu queira que seja com toda a força da minha alma, porque eu sei que vou te amar para sempre. Porque cada segundo perto de você é uma eternidade de carícias para o meu coração. Porque mesmo que um dia o deslumbramento acabe, ou o desejo de ficarmos juntas arrefeça, aquela menina serelepe e meiga, aquela mulher temperamental, mas plena de sublime delicadeza preencherá as minhas lembranças e tornará a inundar o meu peito do mais precioso sentimento que eu já tive o privilégio de sentir…Eleonora Cavalcanti, você é e sempre será o mais precioso presente que esta existência me concedeu. Você entende?

Lágrimas silenciosas corriam pela face de Eleonora que respondeu simplesmente:

– Sim, eu entendo.

Abraçaram-se longamente.

Suzana enxugou as lágrimas do rosto de Eleonora com os dedos. Depois a pegou pela mão.

– Agora, eu preciso compartilhá-la com os nossos amigos – Suzana falou com suavidade.

Eleonora concordou com a cabeça.

– Agruras do bom comportamento social – Suzana completou, fazendo cara de menininha contrariada e arrancando risos de sua mulher.

Eleonora e Suzana caminhavam de mãos dadas em direção aos convidados que as aguardavam no jardim.

– Sabe, Suzana… – Eleonora chamou à saída da porta de acesso ao jardim.

– Hum.

– Não é somente o fato de você ser uma mulher linda e sensível. Não é só o fato de você ser tão surpreendente e continuar a arquitetar mais e mais formas de eu te amar mais do que já amo…

Suzana estancou.

– Sabe…- Eleonora continuou. – Toda essa conversa sobre eternidade me fez lembrar daqueles apaixonados que tatuam o nome do ser amado no próprio corpo como uma lembrança indelével do seu amor e que, no entanto, comumente retiram ou cobrem quando o “amor eterno” acaba.

Suzana a olhou intrigada.

– Bem…Isso me deixou preocupada.

Suzana levantou uma das sobrancelhas mais intrigada ainda.

– Porque me fez pensar no que pode fazer a pessoa em quem o nome amado está tatuado na alma. Foi então que eu percebi que estava realmente encrencada.

Suzana abriu um sorriso maior que o sol poente lá fora.

– Eleonora, você é totalmente única – Suzana comentou entre risos antes de pegá-la e beijá-la com ímpeto.

– Hei, You! – Robert gritou. – Vocês não podem deixar isso para mais tarde?

No jardim, os pais de Eleonora conversavam com a namorada de Robert sentados nas cadeiras confortáveis espalhadas pelo gramado. Ao lado da piscina, Mike juntou-se a Camilla para rir com gosto de mais um dos chistes de Carlinha. Alguns amigos dançavam no tablado montado um pouco mais adiante. A tarde caía.

Suzana e Eleonora caminhavam de mãos dadas em direção aos amigos e familiares que lhes vieram abençoar a felicidade do encontro.

O vento tépido do outono espalhava a fragrância das flores pelo espaço e o sol vermelho se deitava atrás da serra certo de que já cobrira a terra de luz suficiente para que os brotos tenros tivessem força para desabrochar para um novo tempo, amanhã e sempre.

Já havia lhes coberto de luz. De toda a luz para florescer.

FIM



Notas:



O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2022 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.