Luz para florescer

Capítulo 25

Suzana mexeu-se inquieta na poltrona do avião. Já folheara, desinteressada, todas as revistas de bordo. Tentara, sem sucesso, assistir a um filme. Escutara um pouco de música por uns trinta segundos, mas nem mesmo Billy Holliday conseguira diminuir a sua ansiedade. Não sentia fome nem sede. Na verdade, nem sabia se ainda possuía algum órgão no oco que se tornara o seu ventre. Só o coração parecia denunciar sua presença pulsando aflito de saudade. Faltavam muitas horas para o esperado encontro e malgrado a vontade de conseguir dormir para que o tempo passasse mais rápido na dimensão alternativa da inconsciência, Suzana sabia que não conseguiria.

Decidiu pedir um scoth sem gelo na esperança de relaxar um pouco. Ficou olhando o horizonte pela janela do avião enquanto bebericava seu whisky e pensava em cabelos cor de trigo balançando ao vento.

Eleonora chegou ao aeroporto umas duas horas antes do horário de chegada do vôo de Suzana. Andou pelo aeroporto inteiro olhando impaciente as lojas de suvenires, roupas e pedras preciosas. Na última meia hora, parecia uma estátua parada na frente do painel que assinalava as chegadas internacionais.

O vôo finalmente chegou.

Havia ainda a passagem pela imigração, a espera pelas bagagens e a fila da alfândega, mas Eleonora já estava em frente ao desembarque. Algum tempo depois, os primeiros passageiros começaram a sair. Mais alguns minutos e a inconfundível cabeleira negra despontou atrás de outros viajantes passando pela porta automática. Eleonora sentiu o coração parar como se tivesse levado um susto para depois disparar sem controle.

Suzana passeou os olhos azuis pela pequena multidão que se aglomerava à frente da porta do desembarque até se deparar com um rosto claro e suave fitando-a com ansiedade e amor. A jogadora direcionou o carrinho de bagagem para ela tentando se desvencilhar dos demais passageiros que teimavam em cumprimentar os entes queridos logo à saída formando um engarrafamento de pessoas, malas e carrinhos que a fez praguejar baixinho. Finalmente, conseguiu. Suzana focou a sua pequena amada.

Eleonora estava imóvel com um meio sorriso leve no rosto e os olhos verdes líquidos de lágrimas que se deixavam perceber, mas que não precisavam cair para se mostrarem importantes. Vestia uma camiseta branca e uma calça de sarja cor de telha em cujos bolsos enfiara as mãos como se não soubesse o que fazer com elas. O conjunto simples demarcava-lhe a cintura delgada, realçava os braços torneados, revelava o pescoço macio ladeado por um colar de ouro fino com um pingente esmeralda de tantas lembranças. Os cabelos estavam ligeiramente mais curtos e mechas rebeldes caíam sobre a testa de um jeito quase infantil. “Como ela é linda”, Suzana pensou, embevecida.

Eleonora observou a mulher da sua vida se aproximar sentindo-se incapaz de se mover simplesmente porque não conseguia divisar a extensão das suas emoções e muito menos como lidar com elas. Sentia alegria e aflição, euforia e fraqueza, excitação e alívio. Suzana caminhava mansamente em sua direção, mais bonita do que ela jamais se lembrava. Vestia um terno elegante, perfeitamente talhado em seu corpo esguio, cujo casaco descansava no carrinho, junto ao sobretudo pesado, que denunciava a temperatura em queda no hemisfério norte. Dobrara a camisa de seda e desabotoara o colarinho para se adequar ao calor de São Paulo. No rosto, um Ray Ban tradicional escondia os olhos sedutores, mas realçava a boca cheia e os contornos clássicos do rosto.

Suzana saiu detrás do carrinho e parou de frente para Eleonora.

Ficaram se olhando como se para constatar a exatidão dos traços e a confluência destes com a lembrança milimétrica dos seus corações.

Código perfeito.

Abraçaram-se a meio caminho uma da outra com força, abandono e saudade. Um abraço sem tempo, quântico. Sem espaço, infinito. Sem outras presenças, único. A não ser…os fãs.

Uma mãozinha indiscreta bateu na cintura de Suzana. A jogadora tornou os olhos para o lado e para baixo. Uma garotinha de cerca de dez anos olhava para ela com olhinhos súplices. Gaguejou, timidamente, estendendo uma agenda coloridíssima:

– Me-me dá um autógrafo?

Suzana olhou para Eleonora que sorriu compreensiva. Suzana voltou-se para a criança e respondeu:

– Claro.

Não demoraram a surgir mais uma dezena de agendas, camisetas e revistas de todos os lados. Eleonora sentou-se num banco em frente. Suzana, sufocada por inúmeros pequenos corpos e outros nem tanto, procurava ser agradável com todos, enquanto pensava, desesperadamente, em como se livrar daquele batalhão de admiradores. Procurou Eleonora por um instante e a encontrou sentada, olhando o tumulto com um sorriso divertido no rosto. Eleonora mandou-lhe um tchauzinho bem-humorado. Suzana devolveu o cumprimento com uma cara de “salve-me”. Eleonora ergueu os ombros numa mensagem muda, mas perfeitamente compreensível de: “o que eu posso fazer?”. Quase gargalhou com a cara de desespero que Suzana fez.

– Ela vai sobreviver – Eleonora falou baixinho para si, sabendo de antemão que, apesar da cara aparentemente desesperada, Suzana apreciava aquilo. “Vou dar mais um tempinho, depois eu a resgato”, pensou Eleonora que já não sentia mais um pingo de ansiedade. Suzana estava ali. Ela voltara para os seus braços, para a sua vida. Era o que importava.

De repente, Suzana se viu tocada levemente no ombro por uma mão longa, de unhas bem-feitas, e adornada por anéis aparentemente caríssimos. Olhou para quem lhe chamara a atenção e se deparou com uma ruiva espetacular quase tão alta quanto ela mesma.

– Posso ganhar… – começou, maliciosamente, a bela mulher com um leve sotaque francês e um olhar que mediu Suzana dos pés à cabeça. -…um autógrafo também? – Terminou com um sorriso que descortinava uma viva admiração e muitas promessas.

Suzana ia responder quando um pequeno furacão loiro interceptou o diálogo, parando exatamente entre ela e a ruiva.

– A Srta Alcott não pode mais ficar. Ela já está atrasada para um compromisso importantíssimo.

Sobrancelhas negras arquearam-se ironicamente.

– Estou?

Olhos verdes faiscantes olharam para ela.

– Está, sim! – Eleonora falou com um sorriso cheio de perigosa doçura e sem mais delongas, saiu caminhando na frente.

Suzana fitou a ruiva e balançou a cabeça num gesto claro de “então, estou”.

– Com licença – a jogadora pediu, gentilmente, às pessoas à sua volta e se dirigiu à saída onde Eleonora já a esperava de braços cruzados e cenho nada amistoso.

Seguiram para o estacionamento.

Pararam de frente ao bagageiro do carro de Eleonora que o abriu abruptamente. Suzana, com a ajuda de uma Eleonora muda como uma porta, acondicionou, pacientemente, a pouca bagagem que trouxera. O restante das roupas e das peças de mobiliário que decidira manter, ela os enviara antes. Consigo carregava somente o indispensável.

– Pensei que você não se importasse com o fato de eu dar atenção aos fãs – Suzana comentou sem mais resistir à tentação de provocar a loirinha.

– E não me importo – Eleonora respondeu ainda de cara fechada.

– Mas você me impediu de dar um autógrafo àquela senhora, agora a pouco.

Eleonora apenas bufou e entrou no carro. Suzana entrou em seguida. Repentinamente, a jovem loira virou-se para ela, com os cabelos loiros caindo desalinhados sobre a testa e, as faces ruborizadas de indignação e disparou:

– Aquela…senhora – falou devagar. – Não teria necessidade do seu autógrafo.

– Como assim, não teria – Suzana perguntou com olhos azuis repletos de uma inocência deslavada.

– Se aquela…senhora…olhasse mais uma vez daquele jeito para você, o único autógrafo do qual ela precisaria estaria numa receita médica.

Suzana gargalhou alto. Pegou o rosto corado com ambas as mãos e olhou, ternamente, para a sua amada com um sorriso ainda pairando nos lábios cheios.

– Meu amor. Meu doce, ciumento, temperamental e mil vezes delicioso amor. Você é capaz de me fazer feliz em um minuto muito mais do que qualquer outra pessoa em toda a minha vida.

Beijou a loirinha com ardor.

Eleonora não pensou duas vezes para abrir caminho à deliciosa exploração da boca de Suzana. Ao contrário, puxou-a para mais perto ao agarrar avidamente a cabeleira negra e sedosa. A pulsação tomou o ritmo de um corcel em disparada.

Suzana se esqueceu do lugar onde estava. Esqueceu-se mesmo do tempo. Tudo o que realmente importava estava ao alcance das batidas do seu coração.

Eleonora teve que recuperar a razão, em algum lugar da consciência, e empurrar Suzana, pesarosa, mas com firmeza.

– Suzie, nós estamos no estacionamento do aeroporto.

– E o que tem?

A voz rouca expirando suavemente junto à pele sensível do pescoço quase fez Eleonora esquecer-se do bom senso.

– Suzana – disse, afastando a morena com dificuldade. – Nós teremos muita sorte se ninguém ainda nos fotografou, depois daquela pequena multidão à sua volta, a poucos minutos atrás.

Suzana olhou em volta.

– E, há menos que você queira seu nobilíssimo nome envolvido em um escândalo e exposto amanhã pela manhã em todas as bancas de revista, daqui a Timbuctu, é melhor irmos para casa.

Suzana ainda perscrutou as imediações, conscienciosamente. Após constatar a falta de qualquer alma a menos de cinquenta metros delas, voltou-se para Eleonora sorrindo.

– Esta foi a melhor ideia que eu ouvi hoje.

– Qual? Evitar ataques ao seu imaculado título de lady? – Eleonora conseguiu brincar mesmo com o estômago visitando o ártico diante daquele sorriso incrível.

– Não…Ir para casa.

Eleonora devolveu o sorriso com amor e cumplicidade.

– Então, vamos.

Suzana pôs a mão possessivamente sobre o joelho de Eleonora e conjeturou se o dia poderia ser mais perfeito.

Podia.



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