Capítulo 2
Sentada no banco no centro do vestiário, Eleonora estava terminando de calçar o tênis enquanto pensava no teste que enfrentaria a seguir. Não estava nervosa, somente ansiosa para começar logo. A adrenalina já produzia seus efeitos e uma excitação crescente principiava a esfriar-lhe o estômago. Uma sensação que, longe de ser-lhe desagradável, emprestava-lhe uma estranha euforia.
Devidamente vestida e com a mochila nas costas, Eleonora caminhou para o ginásio. Não precisou nem chegar à porta para ouvir o burburinho anormal que vinha lá de dentro. “Será que a seleção de novas jogadoras era tão popular assim?” Quando entrou ela se deparou com um aglomerado de pessoas em torno de alguém que não conseguiu visualizar. Jogadoras, outros alunos e até uma boa quantidade de professores participavam da afluência inquieta. Eleonora reparou ainda máquinas fotográficas, cadernos, agendas e canetas nas mãos da maioria dos presentes e os comentários excitados acompanhados de olhares curiosos, confirmaram, definitivamente, a presença de algo extraordinário. Sem saber direito o que fazer, Eleonora ficou parada na entrada da quadra, imóvel e um tanto aturdida.
Subitamente, no meio da confusão, mais alta que a maioria das pessoas a sua volta, emergiu uma brilhante cabeleira negra. A figura se virou para o local onde Eleonora se encontrava e ela se deparou com o mais incrível par de olhos azuis que já tivera a sorte de contemplar. Enquanto o seu cérebro imediatamente elaborava uma mensagem de reconhecimento, parte de sua razão negava-se a acreditar no que os olhos viam, tamanho o espanto daquela aparição. Completamente embasbacada, Eleonora só conseguiu murmurar:
– Suzana Alcott.
Desde que começara a jogar basquete, ainda criança, Eleonora colecionava tudo o que dizia respeito à Suzana Alcott: fotos, reportagens, entrevistas, fitas de vídeo. Na porta do seu quarto, Eleonora ainda tinha um enorme pôster de Suzana arremessando a cesta que dera o campeonato mundial ao Brasil. Ela era o que mais se aproximava de um ídolo, de uma fonte de inspiração. Mais do que uma jogadora de técnica excepcional, Suzana sempre lhe parecera ter o porte inato de uma deusa. E agora, aquela deidade materializava-se à sua frente em meio a um séqüito de admiradores ultra-entusiasmados.
– Agora já chega – a voz grave, ligeiramente rouca e naturalmente autoritária fez a pequena multidão se calar como por encanto. – Desculpem-me, mas eu tenho um teste para conduzir e já estamos atrasados. Professor Jorge, providencie a retirada das pessoas que não participarão do teste e feche a porta do ginásio, por favor.
– Vocês ouviram a treinadora. Quem não for participar do teste de seleção, por favor, para fora do ginásio – disse o professor Jorge, auxiliar-técnico.
– Treinadora? – murmurou Eleonora com o coração disparado.
Não sem alguma dificuldade, o auxiliar-técnico, com a ajuda de alguns professores presentes, foi retirando os estranhos ao processo seletivo. Ginásio quase vazio, Suzana sentou-se com evidente alívio em uma cadeira de rodas que, Eleonora percebeu, tinha uma extensão especialmente colocada de modo a aparar confortavelmente e quase na horizontal, a perna direita. “É claro, a cirurgia”, lembrou-se Eleonora que continuou observando Suzana, indisfarçadamente. Ela vestia o agasalho da Universidade Santa Cruz, azul com detalhes em laranja, tênis branco e segurava uma prancheta que, agora sentada, descansava sobre o colo. Os cabelos longos e negros caíam soltos sobre os ombros, contudo, Suzana os prendeu em seguida num rabo-de-cavalo evidenciando um rosto de linhas marcantes: queixo anguloso, maçãs salientes, nariz reto e elegante, boca cheia, larga e bem feita, sobrancelhas negras arqueadas, simétricas e voluntariosas sobre olhos de um azul realmente celestial. A televisão e as fotos nas revistas não lhe faziam justiça. Susana era a mulher mais bonita que Eleonora já havia visto.
Não demorou muito e o auxiliar-técnico postado ao lado de Suzana chamou as atletas para se aproximarem. As meninas foram se achegando timidamente, quase todas exibindo a mesma cara atarantada de quem não acreditava no que estava acontecendo.
– Vou pedir para que vocês se sentem a minha frente, por favor, já que, como podem notar, eu ainda não posso ficar de pé durante muito tempo e quero dar algumas explicações antes de começarmos – falou Suzana Alcott, com a mesma voz de contralto, baixa e agradável.
As atletas sentaram-se em raro silêncio, quase com cerimônia, em frente daquela que era praticamente uma lenda viva do basquetebol.
– Muito bem. Meu nome é Suzana Alcott.
“Como se ninguém soubesse”, Eleonora pensou.
Suzana continuou:
– Eu estou aqui para substituir temporariamente o Professor Leônidas que, infelizmente, encontra-se com problemas familiares. Eu estou, no momento, com a minha mobilidade dificultada e contarei com a ajuda inestimável do Prof. Jorge e, espero, com a colaboração de vocês para obtermos a tão almejada classificação para a Liga Nacional. Por hora, vamos selecionar algumas jogadoras para integrarem o time principal. Para isso, colocarei candidatas e veteranas jogando juntas um coletivo monitorado, no qual poderei observar as qualidades de cada uma e sua possibilidade de contribuir para a equipe. O Professor Jorge comandará o aquecimento e logo começaremos. Obrigada.
Suzana deixou-se cair pesadamente sobre a cama do quarto de hóspedes da amiga Camilla, que ainda não havia chegado, e repassou o dia.
Havia chegado à cidade pouco depois das nove da manhã. Alguns minutos mais tarde, o carro com motorista que a Universidade gentilmente lhe mandara buscar na capital, parou na frente do prédio de Camilla que já a aguardava com um sorriso de fazer o iluminado Buda parecer menos luminoso.
– Suzie! – exclamou a amiga acenando efusivamente com uma das mãos – Espere aí – completou, desaparecendo atrás da portaria.
Segundos depois, ela apareceu com uma cadeira de rodas vermelhas de assento preto, com o lado direito equipado com uma adaptação, para manter a perna levemente suspensa na horizontal.
– Ah, não, Milla! Eu posso perfeitamente andar – reclamou Suzana.
– Pode, mas não deve. E, perfeitamente… uma ova! Não vá me dizer que não dói qualquer maior esforço. E, tem mais, a terapeuta aqui sou eu. Sente-se aqui já, Dona Suzana, e não discuta.
Suzana seguiu sentada e emburrada até o aconchegante apartamento da melhor amiga. Logo depois, Camilla lhe entregou uma pasta com informações concisas sobre o time – jogadoras, resultados, escaltes da última temporada, algumas anotações extras que o Professor Leônidas julgou pertinentes e uma lista com os nomes das candidatas a uma vaga no time. Tudo estava acontecendo tão rápido que Suzana não tivera ainda oportunidade de avaliar sistematicamente a sua atual situação. Pudera, Camilla era como um rolo compressor e, como se não bastasse, ainda havia afirmado descaradamente:
– Suzie, com você só funciona desse modo: rápido o bastante para não deixar você pensar. Senão, estamos todos perdidos.
À noite, aquele alvoroço inicial. Fotos e autógrafos para inúmeros rostos sorridentes. Contudo, finalmente, conseguira realizar a seleção e de quebra avaliar o nível e as características do time.
– Não foi mal – falou Suzana para si, enquanto colocava o travesseiro debaixo da cabeça e pegava as suas anotações. Havia escolhido uma pivô, inexperiente, com algumas deficiências técnicas, mas promissora; duas alas, razoáveis, uma delas com um ótimo arremesso de três pontos e uma armadora, Eleonora, baixinha, mas muito ágil, excelente domínio de bola e visão de jogo, natural liderança…Características bem desejáveis para a posição. No todo era um bom time, mas com muito a melhorar. Teria trabalho, mas antevia bons resultados.
– Suzana – chamou Camilla acabando de entrar no apartamento.
– Estou no quarto.
– E, aí? Como foi o primeiro contato? – disse Camilla aparecendo na porta.
– Agitado.
– É claro! Não é todo o dia que nós temos uma celebridade no campus.
– Pare com isso, Camilla.
– Não seja modesta, mulher.
Suzana jogou o travesseiro em cima da amiga que riu divertida. Suzana fingiu irritação:
– Cala essa boca enorme e me diz o que tem para comer aqui nesse boteco de segunda. Eu estou faminta.
– Meu Deus do Céu, quanta classe! Amiga, você voltou! – ironizou uma lacrimejante Camilla antes de levar mais uma travesseirada certeira.
Eleonora saiu apressada da sala de aula ao final da manhã. Por essas horas, o resultado do teste de seleção já devia estar afixado no mural do salão central. Teve que admitir, meio contrariada, que estava um pouco nervosa ao se aproximar do mural onde, efetivamente, percebia-se um papel com o símbolo do time de basquete. Eleonora chegou mais perto a ponto de ler quatro nomes em negrito no meio do papel. E…Lá estava – Eleonora Cavalcanti. Fora selecionada. Não! Não fora simplesmente selecionada. Fora escolhida por nada mais, nada menos que…Suzana Alcott. Sentia vontade de gritar.
– Elê! – um grito real tirou Eleonora dos seus devaneios. Carlinha vinha correndo com um indescritível conjunto verde e rosa. Sem diminuir o passo deu um pulo no pescoço da amiga quase derrubando Eleonora em cima do mural.
– Você viu? Eu já vi! Eu já vi! Você foi selecionada. Vamos comemorar, já. Litros de coca-cola e quilos de batata frita. Depois, horas de ergométrica. Mas, não importa, a ocasião merece.
– Calma, Carlinha, calma. – disse Eleonora, escapando com jeitinho do afetuoso estrangulamento.- Eu tenho que passar na secretaria para deixar um documento que eu fiquei devendo no dia da matrícula. Daqui a pouco a gente se encontra na lanchonete, ok?
– Ok. Mas, não demore.
– Ah! Carla! – Eleonora chamou a amiga que já se distanciava, célere como sempre.
– O quê?
– Você é mangueirense?
Carlinha fez uma cara abobalhada.
– Eu? Eu não. Por quê?
– Nada não.
– Louca. – resmungou Carla.
Eleonora seguiu sorrindo para a secretaria, mas logo o leve sorriso transformou-se numa gostosa gargalhada quando, de não muito longe, ainda pôde ouvir em claro e bom tom:
– Elê, vai se catar!
Carlinha havia finalmente entendido.
Eleonora entrou no prédio da administração assoviando uma música do Skank e foi direto para o balcão de atendimento no hall de entrada. Como ele se encontrava vazio naquele momento, preparou-se para esperar um pouco sem perceber uma figura sentada em um dos sofás ao fundo.
– De bom humor, Eleonora?
A até então animada loirinha, reconheceu a voz indagadora, com um frio na boca do estômago. Morta de vergonha sem saber bem o porquê, virou-se para ver Suzana Alcott perfeitamente à vontade de calça de moletom vermelha, camiseta regatas branca e os cabelos presos numa trança frouxa caindo por cima de um dos ombros.
Completamente muda por alguns segundos, Eleonora conseguiu sussurrar um quase inaudível:
– Oi, treinadora.
Suzana abriu um sorriso esplêndido que fez Eleonora sentir-se derretendo por dentro a ponto de ficar com as pernas bambas.
– Fora do treino é só Suzana. E, então, entusiasmada em compor a equipe?
– Estou, obrigada. – mais uma vez, a voz mal saiu perceptível.
– Não agradeça. Você mereceu. E, a propósito. Eu tenho fama de irascível – muitas vezes justificada, confesso – mas, eu ainda não mordi ninguém até hoje.
Mais relaxada com a brincadeira, Eleonora sorriu de volta e com a espontaneidade que lhe era peculiar olhou diretamente para os olhos de Suzana. Sem entender, a bela morena sentiu-se incomodada com a suave transparência daqueles olhos verdes. Mais surpresa ainda, ela se viu mergulhando naqueles dois lagos límpidos e, envolta pela inocente docilidade daquele olhar, por um breve instante, foi a sua vez de ficar sem palavras. Recuperou-se rapidamente, no entanto, e falou:
– Acho melhor você se sentar. A minha amiga está resolvendo umas pendências com a secretária. Bom…Nós acabamos de chegar e acredito que elas ainda devam demorar um pouquinho.
Eleonora sentou-se nem acreditando com quem estava ali conversando amistosamente. Era demais! Agora… demais mesmo, e como era Suzana era bonita. E a voz, meu Deus! Baixa, levemente rouca, com um sotaque um tanto indefinido, mas charmoso e suave como uma carícia. Dava para ficar horas ouvindo.
Suzana, por sua vez, observava sua atleta com o seu sorriso mais encantador enquanto conversava amenidades. Pele clara, aveludada e que se ruborizava por qualquer coisa. Rosto delicado de uma beleza graciosa, emoldurados por cabelos louros, lisos e repicados que lhe caíam constantemente sobre os olhos e lhe conferiam um ar meio sapeca… uma tentação. “Ei! O que é isso? Eu estou praticamente flertando com essa garota!”. Antes que Suzana avaliasse a inesperada constatação, a porta da secretaria se abriu e Camilla saiu.
– Já terminei aqui, Suzie. Vamos almoçar? Eu tenho um paciente no primeiro horário da tarde e depois será a sua segunda sessão de fisioterapia do dia.
– Segunda sessão de tortura medieval, você quer dizer, sua sádica sem coração – brincou Suzana puxando a cadeira de rodas que estava ao lado e se movimentando para passar para ela.
Eleonora levantou-se rapidamente para auxiliá-la. Suzana deixou-se ajudar sem protestos, e para surpresa ainda maior de Camilla, agradeceu quase docilmente.
– Camilla, essa é minha armadora, Eleonora. Eleonora, essa é minha amiga e terapeuta, Camilla.
As duas se cumprimentaram com um mútuo oi e o sorriso sincero das almas que são naturalmente francas. Suzana se despediu e foi saindo acompanhada de Camilla que acenou um tchauzinho antes de se adiantar para abrir a porta do carro do lado do carona para Suzana entrar. Dobrou e guardou a cadeira no porta-malas.
– A superpoderosa Suzana Alcott está amolecendo – provocou Camilla, ao entrar no carro.
– O que você quer dizer com isso? – perguntou Suzana, em um tom levemente irritado.
– Ora, em outros tempos, a resposta para quem tentasse ajudar a rainha da auto-suficiência a se levantar, seria o famoso olhar gelado “Não ouse me tocar” de petrificar instantaneamente qualquer bom samaritano desavisado. – Ou isso – continuou Camilla. – Ou essa garota tem algo especial e, nesse caso, se ela não fosse uma menina, eu diria que você poderia estar interessada nela.
– Ora, Camilla. Não seja ridícula.
O carro partiu com a risada de Camilla ressoando pela saída do campus.