A primeira criatura a saudar Eleonora quando ela entrou em casa foi Bertrand que, contrariando a sua costumeira indiferença felina, enroscou-se carinhosamente nas pernas da dona. Em seguida, Luciana surgiu sorrindo da cozinha. Vestia uma pantalona e uma bata claras e leves, e sandálias. Os sedosos cabelos castanhos estavam amarrados em um rabo de cavalo.
– Bem vinda, meu amor – Luciana disse e deu um beijo na boca de Eleonora.
– Oi – Eleonora disse simplesmente.
– Você parece cansada, pequena.
– E estou. Vou tomar um banho rápido e já volto.
– Claro – Luciana concordou com suavidade. – Vá tomar o seu banho que eu te espero com uma garrafa de vinho aberta – completou a médica dando um outro beijo rápido na jovem loira que retribuiu com um sorriso terno. Eleonora foi se dirigindo ao quarto, antes que entrasse, contudo, Luciana a chamou:
– Elê?
Eleonora se virou para a companheira.
– Eu estou muito feliz por você estar de volta à nossa casa.
Eleonora sentiu o peito se encher de carinho e respondeu com doçura:
– Eu também, Lu. Eu também…
Quinze minutos depois, Eleonora entrava na cozinha. Estava mais tranqüila. Os breves minutos de um banho relaxante tiveram o efeito de pacificar sua inquietude e relembrá-la de que o mínimo que aquela mulher maravilhosa que agora lhe estendia uma taça de vinho merecia, era sua honestidade.
– Quem vai trazer o seu carro, Elê?
– A Anita da Federação Paranaense, lá pela semana que vem. Ela tem que vir a São Paulo pelo menos uma vez por quinzena mesmo, e vai me fazer esse favor. Eu deixei o carro e a chave na sede da federação antes de vir para cá.
– Ah, sim. Você lhe deixou o telefone daqui de casa para ela me informar quando chegar ou o meu celular para o caso nada raro de eu não estar em casa?
Eleonora parou o garfo a meio caminho da boca.
– Caramba, eu me esqueci – Eleonora exclamou surpresa consigo mesma pelo fato incomum de um esquecimento tão primário por parte dela que sempre fora muito organizada.
Levemente envergonhada, recordou-se de que a confusão emocional das últimas semanas a fizera se descuidar de muitas coisas. Na verdade, qualquer coisa que não estivesse ligado ao seu envolvimento com Suzana…”Suzana”. Um par de estonteantes olhos azuis, acompanhado do famoso sorriso perfeito e arrebatador pareceram se materializar a sua frente. Sentiu o ventre se contrair de ansiedade. Luciana a chamou, intrigada:
– Ei, garota! Onde você está? – perguntou, bagunçando carinhosamente os cabelos loiros ainda úmidos. – Este campeonato está tirando a minha mulher de mim. Vamos comer, pequena.
Eleonora respondeu com um sorriso abatido ao comentário quase presságio. E se Luciana tivesse reparado um pouquinho mais, teria atentado para um contorno leve, porém visível de tristeza no rosto claro.
Sentaram-se para comer.
Apreciaram com prazer a deliciosa massa que Luciana preparara conversando sobre os recentes acontecimentos em seus respectivos trabalhos. Por um instante, Eleonora se esqueceu da tarefa difícil que teria que levar a cabo ainda àquela noite e permitiu-se desfrutar da companhia profundamente agradável da esposa. Terminaram o jantar. Luciana estendeu a mão para Eleonora e a conduziu para a sala. Sentaram-se no confortável sofá azul sobre o tapete creme, espesso e macio. Eleonora tirou as sandálias para desfrutar da maciez do tapete que adorava. A médica pousou a mão sobre a perna da companheira e perguntou suavemente:
– O que está acontecendo, pequena?
– Lu…Eu…
– Nem tente negar. Eu conheço você. Está preocupada com alguma coisa e por causa disso está anormalmente calada e um pouco dispersa.
Eleonora abaixou a cabeça e suspirou:
– Eu não vou negar. Você tem razão.
Luciana pegou a mão de Eleonora e a loirinha armou-se de coragem para contar a ela o que estava se passando. Antes disso, a médica disse:
– Seja o que for, meu amor, eu estou aqui para te apoiar. Você não precisa enfrentar nada sozinha. Eu sempre estarei presente para te ajudar com as suas aflições. Você sabe disso, não sabe?
Eleonora sentiu um bolo formar-se em sua garganta impedindo-a de articular uma única palavra e o seu peito se apertar em tristeza. “Deus, como é difícil!”. Os olhos verdes se encheram de lágrimas sentidas. Com dificuldade, abriu a boca para falar, mas a médica a abraçou com força e falou, preocupada:
– Meu Deus, Elê. Você está muito tensa. Na verdade, você me parece esgotada.
Eleonora abriu a boca para retrucar, mas a médica antecipou-se a ela.
– O mais importante, antes de qualquer coisa, é a sua saúde. Nós podemos conversar amanhã. Venha, vamos para o quarto.
Incapaz, física e emocionalmente, de resistir, Eleonora se deixou conduzir docilmente para a cama. Aquela situação lhe era supliciante, mas, nesse instante, ela mesma percebia que as fortes emoções a que fora submetida nos últimos dias pareciam ter lhe desabado sobre os ombros repentinamente. Necessitava com urgência de descansar. Dormiu como se estivesse dopada. Quando acordou, Luciana já havia saído para trabalhar e havia lhe deixado um bilhete carinhoso grudado à geladeira. Eleonora foi para o treino.
Durante o treinamento, Eleonora mal falou com Suzana. A jogadora, apesar da vontade de se aproximar da jovem treinadora, não o fez. Desenvolvera, com os anos como atleta de um esporte coletivo, a capacidade de deixar aos outros a resolução de uma jogada quando era essa a melhor opção, mesmo que a sua vontade sempre fosse a de resolver tudo sozinha. Nesse momento, sentia que o melhor era esperar Eleonora procurá-la. Mas, não muito. Até a sua paciência disciplinada ao longo de uma carreira vitoriosa, porém cheia dos altos e baixos comuns à vida de qualquer pessoa, tinha limites. Por hora, lançou toda a sua atroz expectativa em empenho no treinamento. Treinou como uma leoa. Regina elogiou a performance excepcional de Suzana, mas alertou-a para deixar um pouco de entusiasmo para o próximo amistoso. No fundo, estava animada com a volta à melhor forma da sua principal jogadora.
Ao final do treino, Suzana achou que já era hora de falar com Eleonora. Procurou-a pela quadra, mas não a encontrou. Dirigiu-se ao corredor que dava para os vestiários e nada. Decidiu tomar banho juntamente com a equipe que seguia ruidosa para o banheiro.
Suzana tomou um banho ligeiro, vestiu-se com pressa e saiu do vestiário bem antes que as demais jogadoras. Sua rapidez foi premiada com a visão de Eleonora conversando com o restante da comissão técnica no corredor a poucos metros do vestiário. Suzana parou um instante para admirar a sua amada. Eleonora comentava alguma coisa com Regina balançando os cabelos loiros e movimentando freneticamente as mãos ao mesmo tempo em que ficava involuntariamente ruborizada – traços característicos de quando queria ser contundente em um ponto de vista. “Que gracinha”. Suzana não segurou um sorriso apaixonado. Nesse momento, Eleonora olhou para ela. Os olhos verdes emitiram, primeiramente, sinais de surpresa, depois de reconhecimento e, por fim, amor. Mais que recompensada por suas horas de apreensão, Suzana retribuiu o olhar, desta vez, cheio de saudade e desejo latente. Eleonora sentiu todo o corpo se arrepiar imediatamente como se uma corrente elétrica o perpassasse. Tentou disfarçar a perturbação, chamando a jogadora para se juntar ao grupo com mais ênfase que o necessário:
– Suzana! Oi…Venha se juntar a nós.
Suzana caminhou sorrindo para o pequeno grupo e recomposta de sua natural distinção, insinuou-se como um felino bem ao lado da jovem treinadora, tocando-a levemente enquanto cumprimentava a todos. Rapidamente, a jogadora entrou na conversa sobre os times considerados favoritos para as finais do campeonato. Eleonora, entretanto e de forma incomum, não abriu mais a boca. Sentia a presença de Suzana como um campo magnético atraindo-a irresistivelmente. Temia falar e não conseguir articular qualquer idéia. Pior! Temia que alguém percebesse a violenta tensão sexual entre ela e Suzana, tão grande que a estava obrigando a fazer força para respirar normalmente.
Aparentemente alheia a essa força, Suzana continuava conversando, descontraída.
Regina reclamou:
– Caramba, este corredor é muito abafado. Vamos esperar o restante do time na quadra? – sugeriu. O pequeno grupo concordou. Foram saindo. Suzana segurou dissimulada e rapidamente o braço de Eleonora e deu-lhe um apertão leve. Intrigada, a treinadora esperou um pouco. Logo em seguida, Suzana falou:
– Vamos, Elê?
Acompanharam os outros um pouco mais atrás. Quando iam se aproximando da pequena rampa de acesso à quadra, a morena puxou rápida e inesperadamente a loirinha em direção a uma porta lateral onde se lia: Administração do Ginásio. Entraram. Suzana trancou a porta atrás de si.
– Suzana, o que significa is… – Eleonora não terminou a indagação. Foi pega num abraço arrebatado e beijada com ardor.
– Deus, eu estava para ficar louca ali naquele corredor. Quase te agarrei na frente de todo mundo! – exclamou Suzana com a sua pequena amada firmemente cingida pela cintura quando finalmente pararam de se beijar.
Eleonora sorriu deliciada.
– Eu não pensei que você estivesse tão perturbada. Você parecia tão serena…
– Autocontrole, meu bem. São anos e anos de treino – respondeu Suzana com um sorriso brincalhão. – Mas você…Que bandeira, leãozinho! – Suzana deu-lhe um beijo na ponta do nariz.
– Eu? Imagina!
Suzana ergueu uma das sobrancelhas. Eleonora escondeu o rosto no peito da jogadora.
– Ái, ái. Eu dei bandeira mesmo, não foi?
– Aham.
– Você não está ajudando!
– Meu Deus, você me fez uma pergunta!
– Não era para concordar.
Suzana soltou uma risada.
Eleonora riu junto a princípio, mas logo depois soltou um longo suspiro como se tivesse se lembrado de algo incômodo. Suzana notou e perguntou:
– O que foi, Elê?
– Suzie, eu não consegui falar com a Luciana.
– Eu imaginei.
Foi a vez de Eleonora levantar uma das sobrancelhas e fitar a jogadora com olhos indagadores. Suzana continuou.
– Eu percebi pelo seu jeito amuado durante o treino.
– Ei! Eu poderia estar apenas…Triste.
– Nana-não – Suzana balançou a cabeça em negativa. – Quando triste, você fica abatida, meio jururu, mas não desassossegada como você estava desde a hora que chegou…E ainda tem a rugazinha logo acima do nariz que aparece quando você está preocupada ou aborrecida com algo.
– Eu estava com a rugazinha?
– Humrum.
– Eu nunca vou conseguir esconder nada.
– Não mesmo. Você é transparente como as águas de uma fonte, meu amor. E não fique desapontada com isso, sua transparência é uma das coisas mais belas que você possui.
Eleonora ficou nas pontas dos pés para dar um beijo terno na boca de Suzana.
– Obrigada.
– Tudo bem. Eu sei que está sendo difícil para você. E acho que você não falou com ela ontem porque teve um bom motivo…Ou não teve oportunidade. Vocês, por acaso…
– Sim?
– Vocês…
– O que foi, Suzana?
– Bom…Você ficou muitas semanas fora e não terminou com ela ontem, então…
– Não – falou a loirinha.
Suzana olhou para ela sem dizer uma palavra.
– Não, Suzie, nós não transamos.
Eleonora ouviu um suspiro aliviado.
– Elê, eu tento ser compreensiva, mas admito que não suporto a idéia de pensar que outra pessoa… – Suzana não terminou.
– Eu não faria isso nem com você nem com a Luciana.
– Eu sei…Eu…Me desculpe.
Eleonora puxou o pescoço de Suzana para baixo e a beijou profundamente.
Não demorou para que as bocas famintas abrissem caminho para as mãos insinuantes e sôfregas. Suzana meteu as mãos por baixo do abrigo de Eleonora enquanto a treinadora empurrava a morena para a parede a fim de encaixar o quadril na perna morena e movimentar-se insinuante sobre a coxa forte. Suzana gemeu rouco. Eleonora afastou o rosto só o suficiente para falar ofegante:
– É isso, Suzana. Não apenas essa intensidade, esse desejo… É…Essa mágica. Essa perfeição que é a minha boca na sua e o meu corpo no seu. Até as nossas respirações parecem se completar. È…
Suzana finalizou:
– Essa coisa tão certa.
– É.
Suzana respirou forte.
– Eu entendo e sinto isso também.
Sorriram uma para a outra.
De repente, o som de inúmeros passos e vozes do lado de fora da sala chamou a atenção das duas. A morena declarou:
– Parece que as meninas terminaram o banho.
– Precisamos sair – disse Eleonora.
Suzana comentou, marota:
– Então, vamos – ameaçou caminhar para a porta.
– Não! – Eleonora não a deixou se mover. – Nós não podemos sair assim. Como vamos explicar o fato de estarmos trancadas juntas na sala da administração do ginásio?
Suzana tentava inutilmente conter o riso que lhe escapava, abafado. Eleonora a fitou indignada e falou baixo e ameaçadoramente:
– Suzana Alcott, acho bom você ter algo em mente pra nos livrar dessa enrascada.
A jogadora colocou a mão sobre a boca para refrear a gargalhada. Eleonora pôs as mãos na cintura em sua típica posição de zanga. Os olhos verdes soltavam faíscas.
– Suzana, eu ainda sou treinadora dessa equipe e não preciso lembrar a uma jogadora do seu nível dos envolvimentos éticos da minha posição profissional.
Suzana conteve imediatamente o riso.
– Desculpe. Eu sei. Deixe-me pensar…Bom, parece que o barulho das conversas já passou. Você pode sair primeiro. Se alguém ainda estiver passando e lhe perguntar algo, você diz que estava falando ao celular e precisava de silêncio. Eu espero algum tempo e saio depois. E, então?
Eleonora pensou um pouco e por fim concordou com um aceno de cabeça. Foi saindo. Antes disso, um braço longo e forte a puxou pela cintura. Suzana sussurrou:
– Não tão rápido – deu um último beijo na boca rosada e completou com a fronte colada na fronte da sua loirinha: – Até daqui a pouco.
– Até – Eleonora respondeu baixinho com um sorriso nos lábios denunciando o fim da breve zanga com a sua amada. Saiu. Alguns minutos depois, a jogadora a seguiu.
O ginásio estava lotado. Eleonora deixara ingressos para Carla e Gianne e para o irmão André na bilheteria. Ao ver o irmão entrando pelo portão que dava para as cadeiras privilegiadamente postadas de frente para o centro da quadra, abriu um sorriso brilhante que, no entanto, se apagou quando reparou na falta do pequeno Matheus ao lado dele.
– Pôxa, Elê. Ele está gripado e com febre – explicou o irmão pegando-a num abraço que ela insistia em não permitir demonstrando toda a sua contrariedade. – Se eu ao menos mencionasse que viria te ver é bem provável que o Matheus piorasse só de desgosto por não poder vir. Vamos, dê um abração no seu maninho preferido.
– Único irmão, você quer dizer – brincou Eleonora, mais conformada.
– Foi o que eu disse. Único e preferido.
– Eu só vou te perdoar porque você se abalou de Santa Cruz para me ver e eu estava morrendo de saudade de você, moleque.
– Ei! Eu não sou responsável pelo ataque de todas as bactérias, vírus e similares do mundo, não, tá bom?
– Não! Mas eu posso apostar que você deixou o Matheus ficar brincando na piscina até tarde e só o retirou da água quando os lábios dele já estavam roxos como berinjelas.
– Eu não faç…
– Carlinha! – Eleonora gritou para a amiga que entrava nesse momento.
Carla e Gianne entravam carregando os gêmeos como mochilas humanas na frente do tronco. Acenaram para Eleonora que puxou André pela mão e seguiu em direção aos seus dois amigos e seus filhos.
Se Carla havia se tornado mais discreta com a maternidade, o mesmo não se diga dos apetrechos das crianças. Os “cangurus” eram um, laranja, e o outro, violeta com inúmeros balões multicores e o pobre Gianne carregava ainda uma imensa bolsa mais verde e fosforescente que um meteorito de pura kriptonita. Os gêmeos, graças a Deus, vestiam discretos abrigos nas cores azul e amarelo. Eleonora os abraçou, emocionada.
Luciana apareceu logo depois. Conversaram, animadamente, alguns minutos. Em seguida, Eleonora precisou se despedir para se juntar à equipe.
O jogo começou.