Luz para florescer

Capítulo 12

– Eu não acredito, Luciana! O que foi que aconteceu?

– O meu paciente teve uma parada cardíaca no meio da madrugada. Eu fui chamada às pressas às três da manhã, Elê. Conseguimos reanimá-lo, mas teremos que fazer uma nova intervenção cirúrgica o mais rápido possível. Eu estou muito cansada. Preciso repousar um pouco agora, pois terei que enfrentar uma cirurgia de, no mínimo, cinco horas dentro em pouco. Eu sinto muito, amor.

– Não…Você é que me desculpe, Lu. Eu só fiquei decepcionada. Muito decepcionada. Acordei achando que em poucas horas eu estaria ao seu lado. E, agora, essa notícia…Estou com tanta saudade, amor. Olha…Me liga quando tudo terminar, está bem? Eu quero saber como você está e…Também o seu paciente – o tom ficou mais firme. – Prometa-me que não vai ficar sem se alimentar, Dra Luciana. Eu te conheço quando você fica ansiosa. Não quero nem ouvir falar de outro tratamento para úlcera, ouviu bem?

– Em claro e bom tom, sargento – Luciana brincou e continuou suavemente. – O que eu faria sem você, minha doce Eleonora? Até mais tarde, amor. Eu ligo assim que sair do centro cirúrgico.

Eleonora desceu para a recepção por volta das sete e quinze, tempo suficiente para pedir um táxi e não chegar atrasada ao treino. Luciana ligara às seis da manhã para a dar a triste notícia de que não poderia mais viajar para Curitiba. Falaram-se por quase uma hora. Eleonora compreendeu a emergência que afastara dela a sua mulher, mais uma vez, por mais alguns dias, mas não conseguia deixar de se sentir triste e impotente com o fato. “Não é fácil ser esposa de médica”, cogitava, com um sorriso melancólico, andando cabisbaixa pelo hall de entrada do hotel.

– Está tudo bem?

A voz grave com um perceptível tom de preocupação fez a preparadora física erguer a cabeça loira e encarar Suzana Alcott levantando-se de uma das poltronas do hall.

– Suzana?

– Bom dia, Eleonora. Você me disse ontem que ficaria sem condução até hoje à tarde. O rapaz da recepção informou que você ainda não havia descido, portanto eu resolvi esperar aqui para irmos juntas – olhou com apreensão para o rosto abatido da jovem mulher à sua frente e repetiu: – Você está bem?

– Estou sim, obrigada. Não dormi muito bem esta noite. É isso. Gentileza sua me esperar. Não precisava…

– Claro que precisava! Somos uma equipe, esqueceu? – Suzana sorriu levemente. – Vamos, “little boss”, prometo não te forçar muito esta manhã – falou com uma voz brincalhona e suave, ao mesmo tempo.

Eleonora teve que sorrir da brincadeira. Afinal, o papel de carrasco nazista era o dela, nessa história. Suzana podia ser extremamente delicada quando queria. Eleonora sabia disso.

No final da tarde daquele sábado, Eleonora terminava de expor à comissão técnica o seu relato semanal da evolução do trabalho de recuperação atlética de Suzana.

– Creio que mais uma semana e Suzana já terá condições de acompanhar o treinamento com o resto da equipe. Além do físico privilegiado, ela se dedica completamente ao treinamento que, como todo mundo sabe, não é nada fácil de suportar.

Regina assentiu com a cabeça, perguntou aos demais se tinham algum comentário a fazer e deu por encerrada a reunião. Saiu conversando com Eleonora sobre detalhes da preparação da seleção. De frente ao elevador, comentou:

– Mudando de assunto, Elê. O pessoal está combinando uma ida ao cinema. É uma boa chance de darmos todos uma espairecida. Vamos?

– Regina…Valeu. Mas o que eu quero mesmo é relaxar na banheira do meu quarto. Depois, um bom livro e “naninha”. Mas, obrigada.

– Tuuuudo bem, mocinha reclusa. Se mudar de idéia… – Regina fez o sinal universal de “ligue-me”, com as mãos.

Obrigada mais uma vez, Regina. Divirta-se.

Eleonora entrou no seu quarto por volta das 18:00 e ligou para o celular de Luciana, mas ela não atendeu. Devia estar no hospital. Em seguida, ligou para casa de sua mãe.

– Alô. André? Como vai, maninho? Onde está o meu garoto?

– Brincando feito um louco. Correndo pelo quintal inteiro. Encantado com a própria festa de aniversário. Você deveria estar aqui, Elê.

– Eu sei, meu querido. Eu gostaria muito. Ano que vem estarei aí, sem falta. Chame-o para mim, Dé.

– Está bem, maninha. Só pela Tia Lê mesmo ele largaria uma brincadeira para atender a um telefonema. Espere um minutinho.

Não demorou muito e Eleonora pôde escutar o esperado “Oi, Tia Lê”. Falou alguns minutos com o pequeno Matheus. O suficiente para perguntar se ele gostara do presente que ela lhe enviara e se a festa estava boa até que a impaciência infantil exacerbada pelo som dos amiguinhos brincando, terminasse a conversa precocemente. Eleonora desligou com o sorriso nos lábios que o sobrinho adorado sempre lhe causava.

Encheu a banheira, ligou a hidromassagem e mergulhou no calor delicioso da água. Suspirou de prazer. Voltou o pensamento para a sua esposa. Estava mais conformada por ter que esperar mais uma semana para vê-la. Paciência!

O telefone tocou. Eleonora estendeu o braço e pegou o seu celular dentro do bolso do roupão dependurado ao lado da banheira.

– Alô.

– Amor?

– Oi, amor. Que bom ouvir a sua voz.

– Que bom ouvir você dizer isso. Eu percebi que você ligou, mas estava na UTI dando uma última olhada no estado do meu paciente. Ainda tenho uma pequena reunião com a minha equipe e não quis esperar chegar em casa para te ligar. Eu não vejo a hora de vir o próximo final de semana, minha pequena.

– Eu também, Lu – Eleonora falou bem languidamente. – Estou louca para ter você bem aqui juntinho de mim, dentro desta banheira extremamente inspiradora.

– Banheira?! Você está numa banheira?

– Aham – Eleonora continuou propositadamente bem devagar. – Nuazinha. Perfumada e…Totalmente bem disposta.

A voz de Luciana ficou baixa e enrouquecida:

– O que é isso? Uma tentativa de me matar?

– Longe disso! É mais um…Incentivo.

– É? Pois, mais um…”Incentivo” desse, e eu sou capaz de fretar um jatinho agora mesmo.

– Romântico, amor, muito romântico. Mas isso nos deixaria quebradas por anos a fio. Apenas…Venha o mais rápido que puder.

– Eu vou tentar chegar na quinta, está bem?

– Eu e a banheira estaremos esperando ansiosamente – brincou Eleonora, com malícia.

– Pequena, se eu não estivesse no meio da recepção do hospital com metade da minha equipe olhando para o meu rosto, você teria uma resposta à altura.

Eleonora deu uma risada sonora. Luciana completou:

– A propósito, pequena. Enviei uma pequena surpresa para você.

– Uma surpresa? Aqui para o Apart-Hotel?

– Deve estar chegando.

– Ah, Lu. O que é?

– Ei, é surpresa, garota! Depois você me liga e me conta o que achou.

– Tenho certeza de que vou adorar.

– Espero que sim. Tenho que desligar agora. Te amo.

– Te amo. Tchau.

Eleonora desligou de excelente humor e com um sorriso ainda pairando nos lábios, mergulhou a cabeça na água perfumada. Emergiu para escutar uma batida leve na porta. Como continuava sem telefone, um servidor do hotel vinha avisá-la pessoalmente no quarto quando havia algum recado para ela. Não teve dúvidas de que era a sua surpresa sendo entregue. Saiu da banheira apressada e ansiosa como uma criança. Vestiu o roupão de qualquer jeito. Nem se preocupou em se calçar ou com os cabelos molhados pingando sobre os ombros. Quase correu em direção à porta, mas quase desmaiou quando a abriu e deu de cara com…Suzana Alcott.

Por mais que Suzana refletisse, ela nunca conseguiria entender a capacidade que Eleonora tinha em conseguir deixá-la sem palavras. E, no entanto, bem à sua frente, com apenas um roupão amarrado frouxamente à cintura, o rosto e os cabelos molhados, deixando escapar gotas d’água que umedeciam sensualmente os cílios dourados e a boca rosada entreaberta de susto, estava a menina que a deixara completamente atordoada há quase uma década. Sim, a menina. Porque assim desalinhada, embaraçada e completamente enrubescida…Como ela parecia aquela garota de nove anos atrás!

Foi nesse momento que Suzana percebeu, entre a surpresa e o pasmo, num daqueles estalos repentinos, desconcertantes e inacreditáveis que nos sobrevêm sem aviso ou piedade, que ela não só desejava aquela mulher: ela era completamente louca por aquela loirinha linda e admirável…Deus! Ela sempre fora.

Suzana, imóvel, perplexa e sem reação, não conseguiu impedir a transparência do seu espanto em seu rosto visivelmente confuso ou o fluir desenfreado das suas lembranças e muito menos, o arfar da sua respiração descompassada denunciando toda a sua perturbação. A boca ficou repentinamente seca e os olhos se amiudaram quase escondidos por trás dos longos cílios negros.

Eleonora não sabia se fechava a porta na cara de Suzana, saía correndo de volta para o banheiro ou se desmaiava naquele exato instante, porque sensação de mal súbito não lhe faltava. Suzana era, definitivamente, a última pessoa do mundo que esperava ver nesse momento. E, como se não bastasse a cara abobalhada pelo susto e o fato de estar vestida daquela forma…Como ela conhecia aquele olhar!

Sentiu o corpo arrepiar-se incontrolavelmente. Irritada pela manifestação involuntária do seu corpo, conseguiu falar com dificuldade:

– Suzana.

– Nossa, Eleonora, me desculpe, eu…Tentei ligar…Bem, o rapaz da portaria disse que…O seu telefone não está…Você sabe…Ele me deixou vir aqui sem me anunciar porque me conhece e…

Aquela conversa confusa e desarticulada teve o poder de trazer Eleonora de volta do leve transe em que caiu, por alguns segundos, ao se deparar com Suzana em sua porta. Mais calma, chamou:

– Suzana…

A morena não deu sinais de que tinha ouvido.

– Me desculpe mesmo…

– Suzana!

– Sim?

– Eu entendi. Deixe eu me trocar, por favor, e então você me explica o que está acontecendo. Entre e feche a porta. Fique à vontade. Eu já volto

Alguns minutos depois, Eleonora apareceu vestida com um conjunto de jogging cor de rosa e chinelos, com os cabelos penteados e um par de óculos de grau com aro de tartaruga levemente avermelhado. Suzana a aguardava sentada no pequeno sofá da sala/cozinha do flat.

– Você está usando óculos?

Eleonora esboçou um breve sorriso.

– Somente quando eu sinto a vista um pouco cansada. Nada demais. E então? O que você quer falar comigo? – disse e fitou a morena alta com os olhos cor de esmeralda e o leve franzir de cenho aproximando as sobrancelhas – a sua expressão típica de atenta expectativa.

Suzana viu o tempo retroceder nove anos e novamente surgir à sua frente aquela pequena jogadora com seu adorável rostinho concentrado em cada palavra que ela dizia. Seu ventre contraiu-se dolorosamente.

– Como eu te disse…Desculpe, eu…Não queria te importunar em seu horário de descanso. Eu até poderia ter conversado com a Regina mesmo e ela te inteirar…Mas…Olha, o rapaz da portaria pode confirmar…Não há ninguém da equipe aqui, neste momento…Quero dizer…Só você…Quem, a bem da verdade, deveria ser a primeira a ser informada, mas…

Eleonora a interrompeu com um balançar impaciente das mãos.

– Suzana, em que lugar da sua vida você perdeu o dom de ser articulada?

A reposta veio imediata.

– No dia em que te conheci.

Eleonora ficou com a respiração suspensa. Não conseguiu emitir uma única palavra. Suzana prosseguiu:

– É incrível como eu sempre tive dificuldade em falar coerentemente com você. Mas, você sabe disso há muito tempo.

– Suzana – Eleonora falou baixinho. A mulher alta se levantou e andou em direção à pequena varanda à frente dela. Olhou para as luzes de Curitiba e suspirou longamente.

– Eu perco dois terços do meu vocabulário quando preciso te dizer algo importante e… Nesse momento…Bem… No instante em que eu te vi – Voltou os incríveis olhos azuis suplicantes para Eleonora. – Eu tenho tanto a falar…

A jovem loira abaixou o olhar defensivamente e falou com brusquidão:

– Não vejo o que você tenha a falar comigo, Suzana, senão sobre o treinamento. E quanto a isso, acredito que a nossa comunicação durante o treino seja bastante satisfatória. Você tem alguma reclamação?

Suzana passou as mãos pelo longo cabelo negro, expirou com força e não persistiu no assunto. Continuou com uma voz cansada, mas clara:

– Não, nenhuma…Certo! Bem, eu vou tentar ser sucinta. Vim aqui para informar-lhe de um compromisso de última hora e pedir que o meu treinamento comece um pouco mais tarde. Eu consegui há pouco um horário para fazer uma ultra-sonografia da minha coxa na manhã de segunda-feira. É uma medida preventiva aconselhada pelo meu médico. Eu poderia avisá-la amanhã, mas amanhã é domingo, dia em que as pessoas, em geral, tiram para descansar, para dar um passeio ou outro divertimento qualquer. Como disse, não queria importuná-la mais do que o necessário… É isso.

Eleonora respirou fundo. Sabia que tinha ficado irritada a ponto de ter sido rude. Tirou os óculos e passou a mão pelo rosto sentindo-se repentinamente exausta.

– Por mim, tudo bem, Suzana. Acho, inclusive, que é uma medida bastante pertinente. Você contatou a Aline, a nossa fisioterapeuta?

– Sim, ela vai me acompanhar.

– Ok. Podemos começar às dez. Está bom para você?

– Para mim está ótimo – respondeu Suzana. – Estamos combinadas, então, já vou.

Eleonora levantou-se rapidamente da poltrona para abrir a porta para a jogadora sair, mas, precipitada, tropeçou no próprio chinelo e tentou inutilmente dar um passo para recuperar o equilíbrio. Teria caído, inevitavelmente, se dois braços velozes não tivessem se adiantado e a amparado antes que ela fosse ao chão.

No momento em que segurou Eleonora, Suzana a trouxe para si ao mesmo tempo em que se ajoelhava sobre o assoalho. Eleonora a abraçou instintivamente. Num impulso, a jogadora apertou-a junto ao peito.

Suzana fechou os olhos. Seu coração batia descompassado. Aspirou o cheiro delicioso dos cabelos loiros. Sentiu a brandura dos braços de Eleonora em volta do seu pescoço, a maciez da tez aveludada do rosto claro e delicado contra o seu, e, admirada, pôde distinguir no próprio corpo a quase esquecida sensação de incandescência queimando-lhe o íntimo. Sensação esta, contraditoriamente interligada a outra – um frio abissal no estômago. Algo como o pressentimento de uma queda iminente e inevitável.

Eleonora viu-se, de súbito, aninhada no colo de Suzana, com o rosto abrigado na macia e perfumada cascata de cabelos negros. Por algum motivo obscuro, não se moveu imediatamente do lugar onde estava. Deixou-se ficar, sentindo o coração querer romper-lhe o peito e com a vaga, porém nítida impressão de que isso não era causado pelo alarme da ameaça do tombo. Enfim, passados alguns eternos segundos, quando Suzana afagou-lhe carinhosamente a face com a sua num movimento terno e íntimo, Eleonora como quem acorda de um sonho, afastou o rosto, assustada. Empurrou Suzana pelos ombros desvencilhando-se do abraço e a olhou com os olhos verdes carregados de surpresa e espanto.

Permaneceram alguns segundos dessa maneira, cada uma tentando encontrar no rosto da outra a resposta para as suas reações. Suzana recuperou-se primeiro.

– Você está bem?

Eleonora não respondeu, continuou olhando fixamente para Suzana que insistiu um pouco preocupada.

– Eleonora, você se machucou?

A resposta da pequena loira foi levantar-se sem uma palavra e caminhar até a sacada como se precisasse de ar fresco para se equilibrar.

– Sim, Suzana, eu estou bem. Obrigada…Por me salvar de um tombo certo, e…Não, eu não me machuquei. Bem…Acredito que nós já tenhamos nos entendido. Então… – Eleonora soltou um suspiro incontrolável. – Será que você me poderia fazer um favor? Feche a porta quando sair. Eu agradeceria muito – disse Eleonora sem se virar para a mulher alta que a olhava com o coração apertado.

– Claro…Boa noite.

Eleonora não respondeu quando Suzana saiu silenciosamente. Não poderia. A sua voz sairia embargada por lágrimas grossas que já caíam dos olhos verdes e que logo se transformariam num choro soluçante, sentido e irrefreável, testemunhado apenas pelas luzes da cidade através da sacada.



Notas:



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