Parte I

Influências

Engraçado a influência de algumas palavras

Ditas a alguém!

O peso com que ela é encarada

Por quem ouve e

Com o passar do tempo

A palavra antes dita

Pode ter um significado diferente

E então, você passa a sentir o peso

E a tentar pensar mais e

A refrear as palavras a dizer

Daí, às vezes pesa

Para explicar o sentido das coisas

Dos pensamentos

Dos sentimentos

Se alguém pode entender errado,

Distorcer, ou usar de acordo

Com o que quer ouvir

E depois se magoar com isso

E te arrasar, com uma

Verdade de um tempo modificado

Mais tarde, por mágoas, tristezas

Lágrimas e ressentimentos

Será que algum dia

Conseguirei me expressar naturalmente;

Profundamente, com pessoas

Que me interessam???

Pensei que fosse apenas

“Aquela frase”, mas

De repente percebo que

Estou meio vigilante

Para todas as outras também

Escrevo então, não para alguém ler

Não sou nenhum JOÃO

Para expressar as emoções

De um “Corsário” e

Outras tantas.

Será que aquelas palavras

Foram para alguém??

Aquele alguém ouviu?

Será que se arrependeu

Em algum momento

Por tê-las dito?

Será que para mim terá

Isto a mesma relevância

Do toque? Do abraço,

Do carinho?

Porque eu gosto de

Abraçar à toa. Gosto

De tocar, só por tocar

Gosto de acarinhar só

Por prazer, por amizade,

Por amor, tá!

Às vezes, até tem um pouco

De sacanagem, mas só

Com umas duas pessoas

E só às vezes

No entanto, devido a

Cabrestos sociais, a gente

Se torna capaz de passar

Por uma multidão sem

Esbarrar em ninguém.

Triste isso..

INFLUÊNCIAS

Era domingo à tarde. O céu estava completamente azul, o sol clareava tudo e queimava a pele. Poucas nuvens brancas cruzavam o espaço azul celeste. Os pássaros cantavam, voavam em bandos, mergulhavam perseguindo insetos. E as crianças, dentro do condomínio, corriam, gritavam, conversavam, brincavam. Enfim, eram crianças vivendo vidas de crianças. Alguns já haviam abandonado a idade de criança, se tornaram adolescentes e brincavam na quadra fingindo alguns, ou se esforçando, em vigiar os irmãos menores.

Entre eles Raul, de doze anos, e Glória, com sete anos. Toda vez que ele se lembrava de olhar, ela se encontrava nas proximidades com outras meninas brincando de casinha, ou escolinha. De repente, ela não estava mais perto. As amiguinhas disseram que ela havia ido em direção ao estacionamento que ficava atrás dos prédios e ligeiramente arborizado. O menino começou a gritar o nome dela e os garotos amigos se dispersaram para procurá-la também. Raul ouve um grito e corre na direção do som com o coração mais rápido que suas pernas. Grita o nome da irmã e ao dobrar atrás da quina do prédio estanca.

Quem ouviu o grito dado por Glória já havia indicado por gestos e gritos aos outros que procediam na busca e vários adolescentes chegaram quase ao mesmo tempo. Tempo de ver a pequena nua, pernas ensanguentadas, inconsciente no chão. Ao lado dela, com ar de quase delírio um homem com as calças ainda aberta, tentando cobrir seu membro que se acusava ao não abandonar o sangue da criança.

Os palavrões começaram a sair das bocas e os pés e mãos começaram freneticamente tentar atingir quem procurava vestir direito a calça e, ao mesmo tempo, se defender da saraivada de golpes.

Alguém tinha ido avisar a mulher de Orlando que seu marido estava sendo atacado pelos garotos e ela, antes mesmo de verificar o que acontecera, chamara a polícia. Os adultos que moravam mais perto do estacionamento ouviram a balbúrdia e foram ver o que estava acontecendo. Assim que viram a criança no chão e o irmão tentando fazê-la acordar, reagir, chamaram a ambulância.

A chegada de uma viatura de policia que estava nas proximidades e fora avisada, impediu o linchamento de Orlando. Fabrício, de quase 14 anos, e Fabíola, com doze anos, olhavam aquilo tudo e não queriam acreditar. Fabíola chorava sem perceber e Fabrício cerrava os punhos sem ação. Marta, depois de ter chamado a polícia, descera correndo e tentava salvar seu marido dos golpes, pois mesmo diante da cena que via não acreditava que fora ele quem deixara a criança naquele estado. Deu graças a Deus quando os policiais chegaram.

Mas para eles, ainda mais diante de tantas testemunhas, não havia nenhuma dúvida quanto ao culpado e não o trataram como ela achava que deviam. Algemaram-no e jogaram atrás na viatura para levá-lo para a delegacia. Marta insistia ainda em querer levá-lo no seu carro ao ver o modo com que era tratado, mas os policiais esclarecem a ela que o marido estava sendo detido em flagrante, por estupro de incapaz.

Enquanto Orlando está sendo detido, a ambulância socorre a pequena vitima. Camila e Daniel choram desesperadamente pela filha. Um vizinho dispõe-se a levá-los juntamente com Raul, para o hospital.

Marta pegou os filhos que não queriam acompanhá-la e obrigou-os a irem com ela até a delegacia para defender o marido. Eles estavam completamente envergonhados, enojados, mas ela não entendia assim. Mesmo depois de feita a verificação pelos investigadores e terem dito à família que não era a primeira vez que Orlando era acusado de estupro e pedofilia, ela continuava em negação. Já os filhos queriam sumir dali.

Das outras duas vezes que Orlando fora acusado, não foi detido por falta de provas e testemunhas no caso de estupro e por ser considerado réu primário no caso de pedofilia – não acontecera nada além de carícias com uma criança de dez anos porque fora surpreendido pelo tio da menor que chegara de repente para visitá-la -, mas desta vez tinha sido apanhado em flagrante “com as calças nas mãos” como dissera o delegado e ficou preso aguardando o andamento do processo. Deixara de ser réu primário, mesmo assim ainda tinha o consolo de permanecer em cela separada por ser um engenheiro civil.

Fabrício e Fabíola no retorno ao condomínio têm medo de entrar, vergonha extrema pelo procedimento do pai, e a mãe chora ainda ao descerem do táxi, pois ela não fora de carro pela dificuldade em dirigir devido suas condições emocionais. Várias pessoas estão aguardando a chegada deles. Algumas lamentavam e tentavam consolá-los, outros ofendiam e as crianças não mediam as consequências das palavras proferidas.

Marta, no dia seguinte, ainda tentou conversar com Camila e Daniel para que retirassem todas as queixas contra o marido, que ele não poderia ter feito aquilo, que mesmo que tivesse feito precisava de ajuda e não de cadeia. Alegava que, ao deixarem preso o marido, jamais encontrariam o verdadeiro culpado. Foi enxotada e quase agredida pelos pais de Glória.

Os filhos ao saberem disso, se recusaram a sair de casa. No entanto, ela os obrigou a irem pra escola, onde foram ironizados, sofreram brincadeiras de tremendo mau gosto, Fabrício envolveu-se em briga corporal e Fabíola, após cansar-se de chorar, ligou para a avó materna e contou-lhe os fatos todos.

A avó foi buscá-los na escola para levá-los pra casa e ao chegarem lá se dirigiu à filha:

– Marta! O que você tem na cabeça?

– Ahhh, mãe! Graças a Deus a senhora está aqui! Viu o que me aconteceu? Prenderam Orlando, coitado.

– Coitado? Aquele safado, vagabundo! Será que todo mundo, inclusive teus filhos estão mentindo e só “o santinho” está certo pra você? Caia na real, para de viver um sonho com este cretino.

– Mãe! Até a senhora? Ele me disse que não fez nada, que os moleques é que não gostam dele e inventaram isso.

– Ah é? Oh coitadinho! E a menina estar internada, ter feito cirurgia para consertar o que ele estourou por dentro dela é invenção também? Será que eu criei uma idiota? Uma toupeira? Quer saber? Teus filhos estão passando um inferno, estão engolindo o pão que o diabo amassou em consequência das cagadas do teu “queridinho”. Então, se eles quiserem vão morar comigo a partir do momento que decidirem. E não tente impedir que acabo tirando teus direitos sobre eles. Lembre-se que conheço teu grande herói injustiçado desde sempre e os podres que a família escondeu e você se tornou conivente. Aposto que a policia vai gostar de saber.

– Não acredito que a senhora faria uma coisa dessas comigo. Eu amo meus filhos! – Já gritava a essa altura.

– Crianças, algum de vocês quer ir pra minha casa?

– Nenhum dos meus filhos vai com a senhora! – Gritou Marta.

– Eu quero, vovó. Minha mãe diz que nos ama, mas só tem olhos e ouvidos pro meu pai. Nem se interessa pelo que estamos passando depois do que ele fez.

– Eu vou aguentar mais um pouco vó, depois … dependendo eu vejo.

– Mãe, não se atreva.

– Vamos ver o quanto ama realmente seus filhos. Pode escolher. Ou cuida realmente deles, ou continua a se dedicar ao seu príncipe completamente desencantado. Enquanto estiver dedicada a ele, teus filhos poderão ficar comigo tranquilamente enquanto quiserem. Fabíola, vá apanhar suas coisas, as básicas, depois voltamos para pegar o restante. Não esqueça o material de escola.

Marta tentou argumentar, gritou, ameaçou, chantageou, mas nada funcionou. A mãe levou sua filha dali.

**

Fabíola continuou seus estudos e não mais voltou para a casa da mãe. A avó era uma pessoa exigente, mas bondosa e sempre lhe deu todo o apoio para continuar a vida.  Aos dezoito anos, passou no vestibular para medicina e, quando chegou a hora de optar pela especialização, escolheu psiquiatria. Quem sabe assim, um dia, entenderia seus pais?

Durante a residência, conheceu uma garota de dezessete anos, bonita, inteligente, mas que chegou a ser internada pela mãe para tratamento de ninfomania e, durante o processo, descobriram que o pai havia abusado dela quando tinha doze anos e isso fizera aflorar o problema mais tarde. Tal garota foi apenas mais um fator para que ela não esquecesse os crimes do pai.

Fabrício permaneceu com a mãe e acabou também por cortar os vínculos com a irmã e o restante da família. Até mesmo a família do lado paterno distanciara-se. Depois de cumprir cinco anos, Orlando foi liberado e voltou pra casa. Tiveram que vender o apartamento e mudar porque a situação estava insuportável para eles. Marta continuava dando aulas no mesmo Colégio, mas pra ele ficou difícil voltar a trabalhar na cidade. Foram para a capital do estado, afinal em uma cidade grande seria mais difícil serem reconhecidos e mais fácil conseguir trabalho.

Para Fabrício, foi a descida total para o poço. Novos “amigos” descolados, irresponsáveis, sem controle, sem nenhuma disciplina. Verdadeiros órfãos de pais vivos e, logo fumava, rapidamente mudou de “cigarro”, bebia e continuando ladeira abaixo; aos vinte e três anos já havia chegado ao crack.

A família de Glória vendeu o apartamento logo que ela saiu do hospital e mudou-se, sem que ninguém dali soubesse pra onde. Queriam tentar esquecer a desgraça acontecida e evitar mais dores para os filhos. Daniel, que era advogado, conseguiu autorização para mudar o nome da filha que passaria a usar o sobrenome dos avós maternos. Apenas mais um subterfúgio para não ser reconhecida mais tarde por alguém que a fizesse relembrar a quebra da infância.

Raul queria descobrir os podres das pessoas, o que escondiam por detrás da máscara social. Formou-se em jornalismo e tornou-se um jornalista investigativo, sem medo de enfrentar qualquer obstáculo para publicar a verdade. Embora jovem era respeitado, mas, também, temido e até odiado por algumas pessoas.

**

QUINZE ANOS DEPOIS DO FATO

– Hei, Dionísio! Não esqueça que ainda tá me devendo aqueles cento e trintinha. E não me venha com aquele papo de “devo não nego pago quando puder”. To precisando de todo dinheiro que puder juntar.

– Tá, não vou dizer isso, mas quem sabe eu te pago no dia de São Nunca. – Dionísio responde rindo.

– Oba! Então é na semana que vem, que bom!

– Como na semana que vem, doida?

– Ué, semana que vem é novembro e dia 01 de novembro é dia de todos os santos. Promessa é dívida, quer dizer, mais uma. – Agora era Marice quem ria. – Se não me pagar, vou espalhar pra todo mundo e nunca mais ninguém te empresta nem saliva.

– Eu acredito que tu faças isso mesmo, guria, pode deixar que te pago semana que vem.

– Marice, manera! Credo! Como você é escandalosa. Tem que ficar gritando deste jeito corredor afora?

– Xi, Denise, até parece que você não me conhece! Esse gaúcho é gente boa, mas vive me pedindo emprestado e pra pagar é um horror. Já estamos acostumados, a gente se entende. E aí, alguma novidade?

– No meu caso não, tudo como sempre.

– Menina, já passou a hora de você se soltar. Amanhã é dia de farra, vamos sair e beber todas e cansar de beijar.

– É ruim, hein! Sou eu, você tem certeza de estar falando com a amiga certa?

– É com você mesma. Você é muito tímida, fechada e tão bonita. Na hora que quiser, arruma alguém facinho, facinho.

– E quem te disse que eu quero alguém assim? Alguém que já chega banalizando as palavras, dizendo até que ama, antes mesmo de perguntar o nome.

– Epa! Eu disse que é dia de farra, não de arrumar compromissos. É só pra passar o tempo, garota.

– Não, obrigada. Eu já tentei, lembra? Fui com você a umas …. hummmm…três festas e, em todas, o que vi foi um bando de gente bebendo sem saber por que, fumando uns baseados e sei lá mais o que, numa baita busca desesperada por novidades que façam a vida lhes parecer melhor.

– Ce tem sempre que ser tão filosófica assim? Pois eu vou pra me divertir mesmo, pra desestressar de tanto estudo, tanta pressão.

– Eu sei que você vai por isso, mas sabe que a maioria não, vai por fuga mesmo. E por falar em fuga, o que vai dizer pro Heitor?

– Nada, ué! Ele não é meu dono! Caso a gente se encontre na balada, daí eu penso no que a gente faz, se não, deixa a vida me levar.

– Não sei como nem porque vivem dizendo que o negócio é ser magrela, não conheço ninguém que seja tão paquerada, tão desejada pela rapaziada e tão desencanada quanto você.

– Isso é cascata. Todo mundo gosta de ter algo pra pegar, e quem vai gostar de sair com alguém que controla o que come o tempo todo? Que controla as palavras e tenta aparentar o que não é o tempo todo? Eu sou gordinha, mas não obesa, verdadeira, sexy, simpática, fiel às amizades. Tá vendo? Sou perfeita. – Gargalhava.

– Sem contar o senso de humor e a modéstia, é claro. Escuta não se esqueça que me prometeu ir ao museu amanhã comigo, é pro trabalho.

– Não esqueço não, pode deixar. Lá pela uma já vou estar pronta. A gente almoça e, como prometido, às duas e pouco a gente chega lá e anota tudo pra fazer o trabalho.

Cumprindo o prometido, plena tarde de sábado, lá estavam elas no museu quando, antes de chegar à seção que lhes interessa, vão olhando alguns quadros. De repente, Marice para em frente um que lhe chama muito a atenção.

– Que foi, Marice? Encantou-se com Adão e Eva? Não sabia que era chegada às coisas bíblicas, paraíso, pecado original etc.

– Não é isso, não. É que me passou uma coisa pela cabeça. Será que eles já tinham preocupações sanitárias? Onde será que era o banheiro pra bicharada e o casal? Será que tinham problemas intestinais com tantas frutas?

– Meu Deus! Eu não acredito! O que será que você tem na cabeça?

– Ué! Cérebro, que mais seria?

– Você tem certeza? To achando que é mais o que você está se preocupando depois das frutas.

– Pensa bem. Antes de a gente ser jogado aqui pra baixo, na Terra, a gente devia ser diferente. É nisso que estou pensando. Até onde nossos paradisíacos antepassados seriam diferentes da gente? Como funcionavam por dentro? Os antigos para fazer uma visitinha, às vezes, tinham que andar mais de um mês. Não precisavam malhar como nós pra manter a musculatura, comiam tudo quanto é coisa e não tinham gastrite. Essas coisas, entendeu? Agora, no Paraíso, que é mais longe ainda…. foi aí que viramos Neandertal, quando fomos expulsos? Mas se já estávamos no Paraíso, como ficamos daquele jeito?

– Para. Assim não dá pra te acompanhar. Você está delirando demais. Simbolismo, Marice. As coisas não são exatamente como estão escritas, sabe disso.

– Eu sei, mas, de repente, essas coisas me vieram à cabeça enquanto olhava o quadro.

– Tá. Então agora, tira tudo isso da cabecinha e vamos fazer o que viemos fazer aqui, certo?

– Certo.

Depois das anotações feitas, Marice despediu-se pra ir se preparar para mais uma noitada com os amigos.

– Como você aguenta? Quase não dormiu noite passada e já vai passar mais uma noite acordada?

– Ah, não é a noite toda e depois temos que aproveitar enquanto o corpo aguenta. Depois de velhinha, eu penso em descansar. E hoje vou sair com meu gostosão, logo é provável que antes da meia noite eu esteja numa cama, porque posso dançar, beber, papear, mas não vou dando pra todo mundo, não. Pra esse tipo de coisa sou séria. Só com o namorado mesmo.

– Que bom, então divirta-se.

Pra variar, Denise foi pra casa. Tinha coisas a fazer. Coisas como ouvir músicas, ver filmes, ler coisas românticas, conversar com a avó, embora não soubesse se a avó estaria em casa porque saía mais que ela. A senhora gostava de uma agitação, principalmente depois que ficara viúva, há cerca de seis anos. Bom, se precisasse conversar ou quisesse jogar mais tarde, os pais estariam em casa.

**

– Ahhh, Mariana! Tenha dó. Estou pregada, precisando esvaziar a cabeça que, ontem, você não me deu tempo.

– Amor, você já trabalha demais durante a semana, não me dá muita atenção.

– Não te dou atenção, ou não saio o tanto que você quer? Porque é muito diferente. Eu gosto de sair, conversar com amigos, beber um pouco, às vezes, dançar, mas não todo santo dia!

– Amanhã é domingo, a gente descansa.

– Saímos ontem à noite, mal dormimos e fomos ao aniversário daquele seu amigo que eu nem gosto, num churrasco mesmo eu sendo vegetariana. Aguentei um monte de manguaceiros sem noção do que seja educação e, por esta semana, chega.

– Você sempre reclama dos meus amigos. Não gosta de participar de nada com eles, só seus amigos é que prestam, que são inteligentes.

– Meus amigos são comedidos. Respeitam quem esteja comigo, não ficam tão inconvenientes depois de exagerarem nas bebidas porque não misturam todas as que estiverem no local; bebem sim, mas não ficam caindo pelas beiradas e botando os bofes pra fora, chamando todos os hugos do mundo. São um bando de patricinhas e mauricinhos mimados e sem vontade de crescer.

– Só porque gostam de se divertir? Só porque não precisam trabalhar pra se manter?

– Só porque são vagabundos, espaçosos, se julgando donos do mundo porque papai paga tudo, inclusive as cagadas desses irresponsáveis. Precisar trabalhar é uma coisa, tudo bem, mas os pais terem dinheiro não significa que você não deva fazer nada a não ser desfrutar o dinheiro que não é seu. Estudem, trabalhem, progridam, façam algo que preste na vida CARAMBA.

– Viu? Você é sempre contra tudo que meus amigos fazem. É sempre contra mim.

– Do que fazem? Mas vocês não fazem absolutamente nada! Já tinha te dito que não daria certo, você insistiu e tentamos, mas como está claro, realmente, não dá. Pode dizer pros seus amiguinhos que se cansou de mim e me chutou que, se me perguntarem, eu não vou desmentir. Cansei de você ficar mostrando a mulher profissional, madura que conseguiu. Eu sabia que foi por isso que me encheu tanto, mas já foi mais que o suficiente.

– Quer dizer que tá me dispensando mesmo, assim na cara dura?

– Quer dizer que estamos terminando o que não devíamos ter começado. Pensando bem, nem sei o que nós temos. Não quero mais ser babá de ninguém. Desculpe e boa noite. Tenha uma excelente noite e durma o dia todo amanhã. Quem sabe sonhe algo que te ensine qualquer coisa sobre a vida real, né?

Mariana saiu batendo a porta. Fabíola não se conformava como tinha se deixado levar e ter mantido um relacionamento com aquela ..criança num corpo de mulher. Mais uma vez, lembrou-se da adolescência, quase maturidade, quando pensava demais na possibilidade de ser gay, ou simplesmente não conseguir se interessar pelo sexo oposto, por causa do pai. Havia se forçado a namorar homens, fora para cama com um pra ver como se sentiria. Não tinha ainda transado com ninguém antes e aquele fora o pior dia de sua vida. Não gostava nem dos beijos, imagine do resto. Agora só mantinha a discrição por causa da avó, por respeito a quem a apoiara e ajudara a se transformar em quem ela era, mas achava esse negócio de homossexualidade sem vergonhice, moda.

Já se apaixonara, tivera alguns casos mais demorados, mas continuava a procura do grande amor de sua vida, como toda romântica. Agora mais uma vez, estava só na sua procura, poderia sair com os amigos sem reclamações ou cara de desagrado, conversar com quem quisesse sem ser interrompida com opiniões infantis sobre o assunto que discutisse. Bom, o negócio no momento é descansar.

**

Muita pesquisa, muito trabalho, muito capricho, provas e, finalmente, antes que saíssem as notas do bimestre, Marice resolveu comemorar antes que o resultado não a agradasse.

– Mas, Marice, e se as notas forem baixas? Não tem medo de pegar nenhuma, ficar em alguma matéria?

– Por isso já vou me encontrar com Heitor lá no apê dele e comemorar, daí se acontecer o pior, pelo menos já me diverti, não é? Você é difícil de entender as coisas, Denise, não sei como tira notas tão boas!

Ao chegar ao apartamento do namorado, Marice encontrou três amigos dele de que não gostava nada. Eram briguentos, encrenqueiros e ela tinha certeza que usavam drogas. Um deles tinha pai importante que podia “dar jeito” nas encrencas dele e, por tabela, dos dois “capachos” dele.

– O que vocês estão fazendo aqui? Cadê o Heitor?

– Ele deu uma saidinha, já já tá voltando.

– E deixou vocês três por aqui?

– É, somos amigos dele e como volta logo pra gente dar um rolê ficamos por aqui. Quer beber algo? Estamos com uísque, mas tem refri.

– Vou pegar um refrigerante.

– Que é isso, faço questão, pode sentá aí que eu trago pra você.

Hernandes se levantou e foi pegar o refrigerante, Marice não teve como recusar. Ele entregou-lhe a garrafa e ela bebeu. Acordou nua, grogue, sentindo-se esquisita, com Heitor sacudindo-a.

– Foi…Hernandes – Marice balbuciou.

– Foi Hernandes, o quê?

– Ele…me deu…

Heitor chamou uma ambulância e, assim que ela chegou e levou Marice para o hospital, ligou para Denise e para o amigo.

– Hernandes, o que aconteceu com a Marice?

– Ahhh tua gostosa? Cara, ela é demais! Não sabia que ela era tão dada assim. – Responde rindo.

– Como assim dada? Que você fez com ela?

– A gente tava aí te esperando, ela foi chegando toda quentona e a coisa rolou.

– Que coisa rolou? Por que ela está parecendo doente?

– Ah isso eu não sei, cara. A gente só transou na boa.

– O que é que você está dizendo? Vocês transaram com a minha Marice? Os três?

– Foi, cara! Foi muito legal. Se ela tá mal é porque a coisa foi quente.

Heitor ficou possesso. Andava de um lado para o outro, xingando Marice, sem saber o que fazer. Depois de algum tempo saiu. Chegou ao hospital com muita raiva. Encontrou Denise.

– Heitor, o que foi que aconteceu? Você está com uma cara que me dá medo.

– O que aconteceu? A vadia da tua amiga transou com três amigos meus, TRÊS. Na minha casa, na MINHA CAMA.

– Você está louco? A Marice jamais faria uma coisa dessas! Ela ama você, pode ser meio doidinha, gosta de se divertir, mas jamais aprontou com você. Por que está dizendo essa barbaridade?

– O Hernandes me disse.

– Psiuuuu, falem baixo. Estão em um hospital.

– Desculpe. Vamos lá pra fora, Heitor. Agora me explique. Hernandes não é aquele teu amigo babaca que Marice detesta?

– Pelo menos ela sempre disse que detestava.

– Pois é, ela detesta mesmo. O que foi que ele te disse?

– Que a vagabunda transou com eles lá em casa. Eu vou arrebentar a filha da puta. Além de me cornear, vai logo com amigos meus e na minha casa.

– Interessante! Ela marcou com eles logo na sua casa?

– Não. Ela foi lá e eles já estavam. E aconteceu.

– Aconteceu na sua casa onde ela foi te encontrar pra saírem ou ficarem lá, com um cara que ela detesta mais do que qualquer outro. Uma pessoa que nunca te traiu vai fazer isso logo na tua casa e com TEUS amigos. Não é incrível?

– O que você está querendo insinuar?

– Não estou insinuando. Estou te dizendo pra deixar de ser burro. Que essa tua certeza e as merdas que você disse agora, jamais cheguem aos ouvidos dela. Eu até poderia contar, mas não quero que ela perca de vez a confiança nas pessoas. Você já falou com o médico? Você sabia que ela tomou o famoso “Boa noite Cinderela”? Que como ela não usa droga nenhuma a não ser bebida nas festas, a única pessoa que poderia ter dado essa porcaria pra ela é seu grande amigo? Aquele que ela tem certeza que mexe com drogas?

– Ela foi drogada?

– Foi, sim. A policia já foi chamada, assim que os médicos constataram que ela estava drogada e já foi informada quem deu o refrigerante pra ela. Sua namorada foi drogada, estuprada por três de seus amigos e é do lado deles que você fica! O que se passa na cabeça dos homens, hein? Ela está ferida, machucada de uma forma que vocês, homens, nem imaginam; e você falando merda e preocupado com chifres e com seus lixos de amigos.

– Eu… eu … não sabia!

– Mas já acreditou num cara igual a esse e nem parou pra pensar que ele estava mentindo, só porque é “seu amigo”. E a mulher que você dizia amar? Não merece um mínimo de confiança? Não dava pra falar com ela, antes de julgá-la, e jogar o amor no vaso e dar descarga?

– Meu Deus! Mas… que grande filho da puta! Se ele convenceu a mim, imagina o resto!

– Vai ver que é por isso que, até hoje, ele está solto aprontando por ai.

– O que eu vou fazer? Ela sempre pediu pra me afastar dele, que não era boa companhia e eu sempre tirei o sarro dela por isso.

– Peça perdão a ela por ter permitido que o crápula ficasse na sua casa. Depois cuide dela, com todo carinho que algum dia teve por ela, sem deixar transparecer que surgiu a mais ligeira desconfiança sobre o que aconteceu. Caramba, cara! Era só pensar um pouco pra ver que a história dele não batia.

– Eu vou matar o desgraçado! – Gritava e chorava ao mesmo tempo.

– Você não vai nada. Agora é com a polícia, você trate de dar apoio a ela que vai precisar e muito. Vá lá vê-la agora.

No caminho, Heitor foi se lembrando de como encontrara Marice. De como ela não conseguia falar parecendo doente, sem ação ainda. Entrou devagar no quarto, com um enorme sentimento de culpa no peito e, ao vê-la desamparada na cama, praticamente atirou-se sobre ela chorando feito criança perdida. Ela apenas acariciava-o tentando acalmá-lo. Foi assim que a família dela encontrou-os. Heitor sentiu alguém puxando pela gola da camisa.

– O que você fez com ela, cretino?

– Calma, Wagner! Ele nem estava lá. Não foi ele.

– Quem foi?

– Foi um cara que pensei ser meu amigo e estava em casa, quando ela foi lá me encontrar. Acho que a policia está atrás dele, já.

Enquanto a família e o namorado conversavam e tentavam encontrar meios de confortar Marice, a polícia chegava ao apartamento de Hernandes. A porta estava aberta porque algumas pessoas estavam entrando pra fazerem compra como quase todas as noites e só era fechada depois da saída do último freguês para o dinheiro da venda não ser roubado.

Havia quase todo tipo de drogas à venda ali, e Hernandes e os dois amigos que estavam claramente “comercializando” foram detidos em flagrante por tráfico de drogas.

Meia hora depois dos policiais terem entrado na casa de Hernandes, o advogado da família já estava no distrito para libertá-lo.

– Não desta vez, doutor.

– Vocês invadiram a residência de meu cliente à noite, sem intimação. Não respeitaram o direito básico dele.

– Primeiro, nós não invadimos, fomos lá pra falar com ele sobre uma acusação de estupro com utilização de droga que ele e os comparsas usaram para neutralizar a vítima. Segundo, a porta estava escancarada porque teu cliente, todas as noites, segundo descobrimos, vende drogas ilegais na maior cara dura. Ele fica e o senhor ache um juiz que o tire daqui, antes do julgamento.

Raul apareceu e cobriu a matéria. Chamou, mais uma vez, a atenção para a violência, uso e tráfico de drogas na classe média alta, devido às artimanhas de advogados e o uso indevido do dinheiro para livrar criminosos.

Na manhã seguinte, acompanhada do namorado e da família, Marice tentara fazer o reconhecimento de Hernandes e amigos. O advogado entrou com habeas corpus, mas a notícia de que o rapaz tinha sido preso por estupro chegara bem antes aos ouvidos dos outros presos e como ele e os amigos não tinham direito a prisão especial, já sabiam agora como Marice e outras vítimas do mesmo crime se sentiram. Aguardariam o resultado do exame de DNA do material colhido em Marice. Ela faria o reconhecimento quando eles estivessem melhor. Permaneceram detidos por tráfico.

**

No hospital, tinham pedido pra Marice voltar a fim de conversar com a psiquiatra que lá estaria a partir das 10:00 horas. A família achou necessário que ela fizesse quando nada uma consulta para verificar se faria ou não acompanhamento. Por volta das onze, retornaram ao hospital pra falar com a médica.

– Bom dia, doutora!

– Bom dia. Marice?

– Isso. É um nome meio diferente, mas não fui eu quem escolheu. – Responde sorrindo.

– Disso, eu tenho certeza. Bom humor! Isto é ótimo!

– Acho que já estou me recuperando. A família aí fora é que está apavorada e quer uma avaliação.

– Isso é importante, sim, mas você é quem vai determinar se vai ou não fazer alguma terapia. Eu só vou fazer uma consulta preliminar pra ver como você está e, se for o caso, posso te encaminhar para um psicólogo. Ou você poderá escolher algum se já conhecer, mas talvez não seja necessário, não é?

– Ah que bom! Eu pensei que já estava querendo me internar pra passar o trauma.

– Trauma não passa com internação, mas sim com cuidado, acompanhamento, terapia e, se precisar, medicação. Aí é comigo.

Conversaram bastante. Fabíola deu seu cartão com endereço do consultório e com os números dos telefones também do hospital. Não haveria, a princípio, necessidade de nenhum medicamento, mas aconselhou-a a procurar um psicólogo, não necessariamente a que ela indicou e, tendo alguma dúvida ou problema poderia procurá-la.

Após conversar com a família, Marice resolveu que seria o melhor a fazer e, no dia seguinte, já ligou marcando hora com a psicóloga indicada por Fabíola. Não se lembrava conscientemente do fato ocorrido, mas poderia resultar em algo que ela não pudesse controlar.

Raul fez contato com ela pra saber um pouco mais do lado da vítima de um crime quase sempre diluído na sociedade. Ao saber que passara por uma psiquiatra e faria terapia, quis contatá-las também. Ligou e marcou hora.

Graças a Deus a terapia estava ajudando e Marice reagiu bem, breve já estava nas baladas com o namorado, apenas não bebia nada que não visse abrir a garrafa e jamais deixava seu copo dando sopa. Heitor, com o tempo, foi voltando ao normal, diminuindo a raiva e o desejo de quebrar os ossos dos ex-amigos.

No entanto, Marice continuava encucada com Denise e sua contumaz difícil sociabilidade. Perguntou à psicóloga sobre regressão para descobrir se algo acontecera na infância, ou se era coisa dela mesmo essa coisa de solidão, só estudo e se divertir sozinha com livros ou, no máximo, um bate papo com algumas pessoas. Miriam, a psicóloga, disse-lhe que, uma das especialidades de Fabíola era regressão e que, com profissional capaz pode ajudar sim, mas que se precisa de muito cuidado.

Raul compareceu no dia e hora marcada. Assim que entrou e Fabíola o olhou, pedindo que se sentasse ele sentiu o baque.

– Você não é de São Paulo, não é?

– Não. Sou do interior, mas desde a adolescência vivo aqui. Terminei meus estudos na PUC.

– Você se lembra de mim?

– Não! Eu o conheço?

– Eu sou Raul, do mesmo condomínio que você morava com…. sua família.

Fabíola assustou-se, ficou lívida e sem ação por uns segundos.

– Agora me descobriu por aqui e resolveu fazer algo pra se vingar?

– Eu nem sabia que era você até entrar nesta sala! Não sou do tipo imbecil que queira se vingar nos filhos as besteiras dos pais. E por falar em pais, como vai o seu?

– Me desculpe. Não tenho a menor ideia. Desde àquela época nunca mais o vi. Ele não destruiu só a sua família, embora tenha ela sido muito mais prejudicada. Destruiu a minha ilusão de família também. Minha avó materna foi quem terminou de me criar e me apoiou até hoje.

– Eu sinto muito por você. Minha família tentou esquecer e vamos vivendo. É lógico que há resquícios, mas não há mais nada a fazer, não é? Por isso virou psiquiatra?

– Até hoje não sei se estou na profissão por mim mesma, se pra entender como uma mulher como minha mãe permanece ao lado de alguém como o marido dela, ou se por ele, pra entender como pode ter alguém tão doente que sabe que está errado, mas não procura ajuda e continua a fazer o que deseja sem parar por nada. Eu sei que um obsessivo-compulsivo não consegue, mas ele é só um tarado pedófilo mesmo. Não dá pra conviver com alguém assim como figura de respeito, não é?

– É, você tem razão. Nunca tinha parado pra pensar na família do outro lado, do criminoso. Pensei que tua mãe tivesse deixado seu pai e continuado só com vocês.

– Não. Minha avó tentou levar nós dois, mas Fabrício preferiu ficar com a mãe e a última vez que tive notícia dele, estava internado para desintoxicação pela quarta vez. O crack sempre vence se a pessoa não tem vontade de parar. Sumiram da cidade, nem sei pra onde foram.

– Nossa! Ainda bem que você tem sua avó. Você acha que Marice, a garota que foi drogada e…

– Sei quem é.

– Acha que ela vai ficar realmente bem?

– Ela é forte e pra cima, vai sim, com certeza. O pior vai ser se tiver que depor no caso. Isso pode trazer muita dor pra ela porque advogados de defesa costumam ferir as vitimas para defender seus clientes, sem dó nem piedade.

– Vou escrever uma matéria falando dessas coisas. De como vítimas de estupro são tratadas, de como os advogados de defesa tentam inverter a situação para que a culpa do crime caia sobre elas. E acho que vamos conversar um pouco e, se você concordar, colocar em pauta também o sofrimento das famílias dos criminosos e a perseguição que pode acontecer à elas.

Conversaram bastante e Raul saiu com material suficiente para uma matéria em três partes e uma nova amizade.

**

– E aí, Denise? Você vai ou não vai fazer a regressão? Eu vou com você, ânimo vai. Pra quando eu posso marcar? A doutora é bem legal.

– Eu acredito, Marice, mas não sei, não. Eu estou bem assim, pra que mexer com algo que não me afeta em nada?

– Como não afeta? Você parece ermitã! Não é normal uma pessoa jovem, bonita, inteligente como você viver dessa forma. Não sente falta de alguém te abraçando, te dando carinho, de namorar, de um amor, caramba!?

– Avacalharam muito essa palavra “amor”. Acho que gostaria de alguém na minha vida, sim, mas alguém muito especial. Não alguém que só pensasse em sexo, mas algo mais profundo. Sexo seria complemento, quero carinho, sim, aconchego, companhia, coisa muiiiito difícil de encontrar nas pessoas, hoje em dia.

– Mas não impossível! Se você continuar assim, esse alguém pode passar diante do teu nariz e você não vê, ou então a pessoa não vê você porque não vai estar por lá. Vai estar em casa, enfiada num livro qualquer, ou vendo filme ou papeando com seus pais ou avós, sei lá.

– Tá bom. Para. Meu Deus do céu! Quando você cisma não tem jeito, não cala a boca. Pode marcar que eu vou com você, só não marca este mês. Deixa pro mês que vem, estaremos de férias de meio de ano.

O tempo segue inexorável. O advogado de defesa de Hernandes quer que ela vá depor para provar que a polícia não poderia ter “invadido” o domicílio dele como fez, porque não havia nenhuma prova de crime contra ele. Afinal, ela não o vira fazer nada. Isso a deixa abalada e só consegue se safar com recomendação da psicóloga para o juiz.

Chega o dia da consulta com a psiquiatra e lá vão Marice e Denise. Entram, e Denise como sempre, se fecha e Marice fala pelos cotovelos com Fabíola, contando como é a amiga e que não acha normal o jeito dela. Fabíola apenas sorri e ouve.

– Muito bem, garotas! Vou dizer uma coisa que é importante vocês saberem. A regressão pode realmente ajudar, caso haja mesmo algo que esteja escondido, no inconsciente, mas também pode desencadear coisas sérias, profundas e doloridas. Portanto, antes de decidirem fazê-la, é bom que conversem com a família pra saber, ou apoiar se necessário.

– Caraca! É mesmo! Pode ter uma bomba por ai; vamos falar com teus pais pra ver se eles desembucham, se pintou algo na tua infância, no útero, na maternidade e, dependendo a gente volta e faz. Tá legal assim pra você, Denise?

– Pelo menos você para de me infernizar um pouco, não é?

Saíram com a promessa de dialogarem com a família. Fabíola ficou com a sensação de conhecimento dos olhos de Denise. Parecia-lhe já tê-los visto antes.

**

Denise levou uns dois dias pensando se queria fazer de fato aquilo, ou se gostava de ser como era. Resolveu que, mesmo gostando, queria sim saber se nascera daquela forma, ou algo a transformara. No jantar:

– Mãe, pai. Na minha infância, aconteceu alguma coisa que pudesse influenciar minha personalidade, meu jeito? Aconteceu algum trauma na família?

A mãe ficara pálida e não respondia nada, o irmão ficara calado e o pai gaguejou.

– O… o.. o que você está perguntando, filha?

– Você entendeu a pergunta pai, pode me dar uma resposta?

– Bom, hã, não sei exatamente o que você quer saber, mas….

– Não aconteceu nada, filha. Por que está nos perguntando isso agora?

– É que resolvi passar numa psiquiatra e fazer uma regressão pra saber se esse meu jeito antissocial é meu mesmo, ou se algo lá no passado é o culpado.

– Você sempre foi quietinha, filha.

– Como irmão mais velho, posso afirmar que era mesmo.

– Mas resolvi descobrir se é assim que sou. Vou tentar marcar, pra próxima semana, a sessão.

– Denise, você conhece bem a psiquiatra? Isso pode ser algo perigoso.

– Eu sei. É a psiquiatra que a Marice conheceu. Ela é bem conceituada e estou falando com vocês porque ela disse pra conversar, antes de decidir fazer a regressão, porque pode acontecer algo surpreendente e nada agradável. Também comentou sobre risco.

– Eu a conheço, é de confiança sim.

– Mesmo assim não quero que você faça essa besteira, filha.

– Mãe, não é besteira. É algo que Marice falou, eu pensei bastante e quero fazer. Às vezes, sinto que tem um buraco na minha cabeça, na minha memória e quero descobrir.

– Nunca comentou nada sobre sentir isso, filha.

– Não, pai, não comentei, mas existe e não gosto dessa sensação, foi ela que me fez decidir por fazer.

Principalmente a mãe tentou fazê-la desistir da regressão, mas ela já tinha se decidido. O irmão não falara mais nada.

No dia seguinte, procurou-a.

– Fabíola! Estou te atrapalhando? Tem um minutinho?

– Oi, Raul! Claro que tenho, só tenho paciente mais tarde. Vamos entrar no consultório e conversamos.

– A Marice esteve aqui com uma amiga chamada Denise, não esteve?

– Esteve, sim. Doidinha essa menina, mas parece ser uma boa amiga, porque a trouxe aqui e deu a ideia sobre regressão por gostar e se preocupar com ela.

– Pois é! É sobre a Denise que quero falar com você.

– Pode falar! Você a conhece?

– Conheço as duas, mas já conhecia a Marice, antes daquele problema que aconteceu com ela e te procurou, por ser a melhor amiga de minha irmã, Denise.

– Denise é sua irmã? Mas o nome dela não era Glória?

Raul esclarece a ela sobre a mudança de nome e o porquê.

– Meu Deus! Não posso fazer isso com ela. Se ela se resolver mesmo, vou indicar outra pessoa para fazer a regressão com ela. Lá vem meu pai interferindo em nossas vidas de novo. – Fabíola estava entre raivosa e assustada. – Ela não se lembra de nada?

– Não. Até agora foi bom pra ela, mas acho que chegou a hora dela saber. Meus pais estão apavorados com a possibilidade, mas de repente será melhor, ela está com a necessidade de tampar um buraco na memória e na vida dela.

– As pessoas devem conhecer seu passado, é primordial, mas não sei se ela está pronta pra aguentar o tranco. A memória apagou este trecho pra salvaguardá-la e agora parece estar cobrando, querendo vir à tona.

– Já que ela vai fazer, eu prefiro que seja com você. Será mais protegida, sei que você estará zelando por ela.

– E teus pais?

– Eles não precisam saber quem é você. Eu vou dizer que a conheço, que já conversei com você e que podem confiar que fará tudo com calma e cuidando bem dela.

– Não sei se ao término vou querer ou poder encará-la, quando souber de tudo.

– Não foi você. Foi alguém que deveria estar te protegendo.

Conversaram bastante e Fabíola ficou convencida a não indicar outra pessoa pra cuidar de Denise.

**

Raul ouve batidas na porta de seu quarto, levanta-se e abre-a.

– Oi, De! Que foi, querida? Tá tudo bem?

– Está sim, é que depois da conversa de ontem andei pensando duas coisas.

– Diga lá.

– Primeira: pela reação dos velhos, agora tenho certeza que aconteceu algo e que você sabe que coisa foi essa. Estou certa?

– Não vou mentir pra você nem ficar inventando coisas pra desviar. Houve sim, você era pequena e parece que sua mente optou por esconder bem fundo pra você não sofrer e mesmo que me torture não vou dizer o que foi. Segunda coisa?

– Você disse que conhece a psiquiatra. Tem alguma coisa entre vocês? De onde você a conhece?

– Não. Não tem nada entre nós, além de amizade e a conheço desde criança.

– Desde criança? Então ela é da mesma cidade que nós! Ou foi quando a gente veio aqui pra São Paulo que a conheceu?

– Que tal ir direto ao assunto, ao invés de ficar me perguntando tanto sobre ela?

– Na verdade, eu não sei o que quero saber. Parece que ela me olhou … hum.. de modo diferente. Como se quisesse se lembrar, ou….sei lá. Achei que havia algo no olhar dela pra mim.

– Talvez. Ela pode ter te visto quando criança, ou você pensou em outra coisa?

– Que coisa? Só estranhei.

– To brincando, filhota. Ela vai poder te ajudar. Mais alguma coisa?

– Não, obrigada. Boa noite, lindão.

Saiu pensando naquele olhar. Talvez fosse isso mesmo, ela a tinha visto quando criança já que conhecia o irmão, mas será que se lembraria depois de tanto tempo. E depois ela deveria ter mudado bastante. Ou será que fora sua imaginação, mas … ela gostara daquele olhar franco e direto. Tsc, dormir que é melhor.

Dois dias depois, Fabíola está no consultório quando entra alguém que não fora anunciada e não era paciente. Ela nem notara, ocupada com leitura de prontuários.

– Oi, querida!

– Mãe! – Quase caiu da cadeira. – O que você está fazendo aqui?

– Ora! Sou sua mãe, não é?! Não posso te visitar?

– Poderia se fosse uma mãe realmente, mas como nunca foi, não temos nada em comum e nunca se interessou nem em saber se eu estava viva, não vejo por que de visitas agora. Principalmente no meu local de trabalho.

– Parece que ficou irritada com minha visita! Eu não tenho seu endereço, logo, tenho que vir aqui se quiser te ver, já que esse endereço está na lista telefônica. Procurei por diversos hospitais até descobrir que é nesse que trabalha.

– Pois é, se fosse uma mãe como alegou há pouco saberia. Como soube de minha profissão?

– Sua avó me ligou, quando entrou na faculdade e também quando se formou.

– Claro! Minha avó que, por acaso, é tua mãe. Que sempre foi muito mais minha mãe que você. Ela até te informou, mas não me lembro de algum comunicado ou interesse seu.

– Você não quis mais tua família, lembra? Foi você que foi embora e nos deixou.

– Ohhhhh! Que peninha de você. Bom, já que está aqui agora que tal me dizer o por quê?

– Pra ir direto ao ponto, nós viemos, há algum tempo pra São Paulo, seu irmão está muito mal de saúde por causa da droga e está difícil seu pai conseguir um trabalho à altura. Eu consegui transferência pra cá e continuo dando aulas no estado, mas precisamos de ajuda pra poder ter um pouco mais de conforto. Pediria pra sua avó, mas com certeza ela não ajudaria.

– Por que será, não é, dona Marta? Eu não tenho nem obrigação, tampouco vontade de fazer seja lá o que for por você e, menos ainda, por aquele cara que você chama de marido. A única coisa que posso fazer pelo cabeça de vento do meu irmão, se ele se dispuser, é claro, é conseguir sua internação para tratamento. De resto, continuem fazendo como fizeram até agora, façam de conta que eu não existo. E não volte a me procurar, principalmente no meu local de trabalho. Se Fabrício quiser, ele que me procure.

Levantou-se, abriu a porta pra mãe sair, sentindo-se furiosa. No fim do dia, foi para casa da avó. Precisava conversar com alguém ou explodiria, mas ao olhar a carinha carinhosa de quase adoração a ela dirigida não teve coragem. Jantou com ela e foi pra sua casa. Ligou para o único amigo que conhecia o passado e poderia conversar. Assim que ele chegou, abraçou-o fortemente.

– Oi, Raul. Desculpe ter te incomodado, ainda mais tão tarde.

– Que isso, Fabíola?! Amigos são pra essas coisas. Que foi que aconteceu, minha amiga?

– Você imagina quem apareceu no meu consultório, no meu local de trabalho, alegando que foi até lá por não ter meu “endereço residencial” pra pedir ajuda? – Fabíola gesticulava muito e alterara a voz.

– Não imagino não, mas fica calma, Fabi, você tá muito agitada, falando alto, coisa que não costuma fazer! Senta aí, se acalma e me conta o que aconteceu.

– A senhora Marta apareceu. Lembrou-se que teve uma filha na hora do aperto …como foi mesmo que ela disse? Bom, estão precisando de um pouco mais de conforto, acho que foi essa a palavra ou algo parecido.

– Apareceu pra te pedir dinheiro?

– Pois é! Não é lindo esse amor maternal que ela tem? Como meu irmão não está bem e o maridinho dela não consegue um trabalho, pelo que ela diz, decente, como se houvesse trabalho que não fosse digno!

– O que exatamente ela disse a respeito do teu irmão?

– Que ele não estava bem de saúde e eu disse à ela que poderia ajudar somente a ele, tentando, se ele quisesse, conseguir internação pra tratamento contra essa porcaria que ele se viciou.

– Pois eu tenho mais uma coisa chata pra te dizer.

– Ahhh, meu Deus! Manda logo, sem anestesia, vai, Raul.

– Depois que te encontrei e conversamos, andei fazendo umas averiguações e descobri que teu pai, depois que saiu da cadeia, aprontou novamente. Não conseguiram provas, mas ele ficou bem visado e foi por isso que vieram pra São Paulo, onde, por perto de onde eles estão morando, aconteceram mais dois casos de violência contra crianças. Uma de oito e outra de dez anos. Nenhuma das duas tinha visto o homem que as atacou antes, mas a policia tem certeza que foi ele. E te digo mais uma coisa, se a família da de dez souber da suspeita, ele vai estar morto porque ela tem um pai e um tio com uma fama da pesada.

– Filho da puta! Não vale nada, não procura ajuda, só vai realizando suas taras. Desgraçado! E a cretina ainda vem me encher. Deus do céu! Por que esse tipo de gente não morre, não acontece algo bem ferrado pra que eles sintam, pelo menos, metade da dor que causam?

As lágrimas corriam soltas pela face, enquanto ela quase gritava. Raul a olhava condoído, sem saber como agir. Não tinha dito ainda tudo. Ela se enrolara quase em posição fetal na poltrona, enquanto chorava. Foi melhorando aos poucos e o olhou. De imediato, percebeu seu desconforto e desconfiou.

– O que mais tem pra dizer, Raul?

– Vou direto sem dourar a pílula. Teu irmão já está internado, há uns dois meses. Foi internado como indigente, depois de ser encontrado quase morrendo na rua. Ele já estava com a memória totalmente prejudicada, pele e osso de magro, doente à beça e alguém chamou socorro e, desde então, está internado. Francamente, não deve durar muito, está muito mal.

– Você sabe se, por acaso, eles estão acompanhando a situação de Fabrício?

– Quando foi levado para o hospital, ele tinha uma identidade no bolso, a assistência social do hospital fez contato com os pais e eles alegaram não ter condição nenhuma de cuidar dele e que saíra de casa fazia tempo, por causa de droga. Quer ir vê-lo?

– Quero sim. Que hospital ele está?

– Te levo lá, amanhã. Eu já fui visitá-lo algumas vezes, dizendo que seria pra uma reportagem sobre efeitos do crack, mas na realidade foi porque, numa infância distante, fomos amigos. Já te aviso que é dureza ver no que ele se transformou. Sei que já viu o que acontece, já deve ter tido algum paciente, mas nenhum era seu irmão, né!

Foram visitar Fabrício. Fabíola, mais uma vez, chorou muito pela dor causada pelas mesmas pessoas. Realmente o irmão estava muito mal, então providenciou para que tivesse um pouco de conforto e dignidade, cuidaria dele até o fim inevitável e próximo. E a mágoa dos pais cresceu mais um pouco.

**

Dias depois, Denise compareceu para a primeira entrevista preparatória. Teriam algumas antes da regressão. Fabíola abre a porta para que ela entre e uma cena volta-lhe à mente. Uma cena que tentou esquecer. Uma cena de dor, sangue e revolta. Por um breve momento se desarmou e, ao fechar a porta e se voltar para a paciente, segurou o choro e armou-se com um sorriso, mas não teve como vedar a imensa ternura que nela se instalou.

Denise nunca se sentiu tão bem, tão à vontade com alguém que não fosse da família. Sentiu confiança, sorriu e, sem nenhuma barreira, se abriu expondo suas emoções, contando como, às vezes, se sentia diferente, isolada, querendo – não sempre – se integrar sem conseguir, das angústias de sentir algo obscuro, escondido e que ela precisava descobrir o que era mesmo que não fosse algo bom.

Fabíola a ouvia, querendo milagrosamente descobrir uma técnica, uma mágica, uma palavra, qualquer coisa que transformasse aquilo que Denise sentia e não mais a fizesse sofrer, mas não tinha nenhuma varinha de condão, nenhuma mágica e, mais uma vez, perguntou-se o motivo pelo qual escolhera aquela profissão. Tinha que ajudar aquela garota.

Depois de terminada a entrevista, cada uma seguiu seu caminho. À noite, mãe dos temores, da solidão, da quebra de barreiras, da caída das máscaras chegou. Entre as duas, chegou também um vínculo.

Uma pensava em como conseguira conversar e confiar tanto em alguém que aparentemente mal conhecia, em como gostava de estar com esse alguém e sentia-se protegida. Talvez pelo que o irmão tinha dito, afinal já se conheciam há tempo; ela só não se lembrava. Será que fora do mesmo tempo em que algo lhe acontecera? Será que ela sabia o que era?

A outra se preocupava. Preocupava-se com a criança que um dia conhecera, com a garota que encontrara há pouco, com as consequências da descoberta, com as novas dores e….. provavelmente, com sentimentos de, no mínimo, raiva como retribuição.

Não se apercebera o quão forte a criança havia se tornado. Nem mesmo Denise se apercebera.

Novamente, Raul, já pronto para se deitar e dormir, ouviu batidas na porta de seu quarto. Nem foi abrir, apenas disse que podia entrar.

– Já ia dormir?

– Ia sim, mas ainda estou desperto, pode falar à vontade.

– Sabe o que é? É que estive pensando na pergunta que você fez sobre ser outra coisa…. e ….. sobre Fabíola, sabe?

– Ah, sei! E que outra coisa seria essa?

– Sei lá! Apenas acho que … estou interessada em …. bom, algo assim como….outro local, outra coisa. Depois da regressão, não vou mais precisar da médica, então … quem sabe, possa ter a … amiga?

– Ou, talvez, a mulher?

– Não sei, Raul! Nunca pensei nesse assunto. Sabe que não sou o tipo expansiva, social, que não sou de namorar, mas jamais pensei que seria esse o motivo.

– Que motivo, lindinha?

– Será que sou… lésbica?

– Pode ser que sim e, se for, qual o problema? – Raul riu.

– Não ria que pode ser muito sério. Já pensou qual seria a reação dos velhos?

– Provavelmente a princípio ficariam desorientados, mas depois, quero acreditar, que aceitariam e continuariam te amando como sempre.

– Tomara! Bom, vamos descobrir o que é primeiro, né?

– Isso. Boa noite, maninha.

– Boa noite, irmãozão.

Chegou o dia da última entrevista, a próxima seria feita a regressão. Ao chegar ao corredor onde se situava o consultório de Fabíola, Denise ouve a voz alterada, nervosa e raivosa, mandando alguém embora. Nunca imaginaria que Fabíola pudesse agir daquela forma.

Pouco antes da chegada de Denise, Fabíola estava em sua mesa, quando Orlando entrou. Ela assustou-se ligeiramente, mas, em seguida, reagiu como um furacão.

– O que você está fazendo aqui? – Estava de pé, com os punhos cerrados e sua voz quase sibilava.

– Você proibiu sua mãe de vir, então vim eu. Como vai, filha?

– Ia muito bem até agora e pretendo continuar assim, portanto adeus. Não vou dar dinheiro algum pra vocês, nem quero vê-los ou saber se estão vivos. Está claro?

– Você não pode agir desta forma! Afinal, somos seus pais e estamos precisando de auxilio pra sobreviver. Não consigo mais trabalho na minha área.

– Problema seu, não é por culpa minha que você não consegue. É tão somente pela sua falta de caráter. Se não consegue trabalhar como engenheiro, porque se precisa de confiança e responsabilidade pra isso, vá trabalhar em outra coisa. Se vira. Vai ser auxiliar, vai carregar tijolos, vai varrer rua. Qualquer trabalho é digno pra se sobreviver. Agora, pra ter conforto, moleza, comodidade, não conte com a minha ajuda. E caí fora da minha vista que você me dá nojo. Cida, chama a segurança pra esse sujeito.

Abrira a porta e falara mais alto para a enfermeira que se encontrava de serviço; e foi justamente neste momento que Denise chegou.

Orlando saiu gritando que ela devia ajudá-lo e que voltariam a se falar, quando quase derrubou Denise ao esbarrar nela que não conseguira desviar-se a tempo. Ela olhou-o, tentando entender o que se passava. Ele encarou-a com raiva estampada e aquele olhar furioso destravou algo na memória dela, acionou a máquina de projeção do passado distante e trancado e o filme veio completo. A força, o sangue, a dor, a sensação no momento, a impotência contra aquele homem que a subjugou e a marcou pra sempre. Ele foi embora e ela permaneceu ali parada.

– Denise!

Virou-se para Fabíola e lembrou-se quem era, de onde e de quando a conhecia.

– Você também sabia e mentiu pra mim. VOCÊ ME ENGANOU!!!

Não sabia o que lhe doía mais. Fugiu dali, em desespero.

Fabíola tentou alcançá-la e não conseguindo, ligou para Raul e contou o acontecido. Ele tentou encontrar desesperadamente a irmã. Depois de vários telefonemas e muita caminhada, resolveu ir pra casa. Esse era o lado bom de, embora tendo seu apartamento pra quando queria ficar só, manter seu quarto na casa dos pais. Chegando cumprimentou-os, mas não permaneceu em sua companhia para que não vissem seu nervosismo e tivesse que contar-lhes tudo. Tomou um banho e vigiou o quarto da irmã. Perto das 22:30 horas, ela entrou e, como os pais costumavam ir pra cama cedo, só teve que responder que era ela e que tudo estava bem quando a mãe gritou de seu quarto.

Assim que entrou no quarto, Raul também entrou antes mesmo que ela fechasse a porta. O olhar que ela lhe dirigiu era duro.

– Você sabia, não é?

– Sabia sim.

– Por que você ou os velhos não me contaram? Ela já te informou o acontecido?

– Já, sim. Ela tentou te alcançar, falar com você, mas parece que você foi rápida demais. Posso ligar pra ela e informar que já chegou? Está super preocupada.

– E deveria estar mesmo. Deixar aquele …. aquele….. homem frequentar o mesmo lugar e na mesma hora que sabia que eu estaria lá! E eu confiava tanto nela. Nada, nada mesmo me desapontou tanto na vida. E, Raul, você sabia quem é ela e deixou que eu continuasse, mesmo eu te dizendo o quanto estava confiando nela! O que esperava do meu encontro com… – Começou a chorar novamente, tentando não fazer barulho para que os pais não ouvissem.

– Ela não esperava nada, maninha, se acalme e me escuta. Ela só atendeu você, depois de saber quem você era; e só soube depois que fui vê-la, porque eu insisti por confiar nela. Vou te contar a situação dela com ele.

Depois de ouvir toda historia, Denise respirava mais compassadamente. Havia parado de chorar, mas agora se lembrava do modo que tratara Fabíola ao pensar que ela a enganara. Mas, de certa forma, a verdade era bem mais reconfortante.

– Meu Deus! Como um homem pode influenciar e estragar tantas vidas, causar tanta dor! E a mãe dela, como pode agir assim? Chegar a abandonar filhos por um pilantra? Liga pra ela e diz que to em casa e que tá tudo bem.

Raul ligou e teve que jurar que Denise estava bem agora. Ele explicou que contara toda a verdade e ela entendera, só não queria conversar com Fabíola naquele momento, mas que faria isso mais tarde.

Denise e Raul conversaram muito naquela noite, até mesmo sobre a mudança de nome dela por preocupação e cuidado de seu pai.

Praticamente passara a noite acordada, mas chegando a faculdade não pode esconder nada de Marice.

– Credo! Que horror! Que sujeito mais lixo e que mulher mais tampa que ele encontrou!

– Mais tampa? Ahhhh! Da panela.

– Não! Do latão de lixo mesmo, alias, ela é o latão e a tampa e ele é o lixo jogado ou que deveria ser jogado. Infelizmente, tá em circulação ainda, né?

– Pois é! Sabe o que é pior nisso tudo? Fabíola. Tudo que ela passou, o irmão morrendo, o modo que a tratei depois dela simplesmente tentar me ajudar.

– Xiiii, tá pintando um clima estranho aí.

– Não é isso, Marice. É que ela foi tão gente fina. Engraçado. A gente não pensa que esse tipo de profissional tem problemas, ainda mais tão sérios assim, não é?

– Isso é mesmo. Bom, eu acho que passado é igual o que a gente comeu no dia anterior. Tudo processado, o intestino bota pra fora pra poder botar mais nutrientes na próxima refeição, certo?

– Essas suas analogias são de lascar, sabia?

– Ah, vai me dizer que não são claras!?

– Claras elas são.

– E aí? Quando é que vai voltar pra conversar com ela?

– Não sei. Quando tiver coragem.

**

Três dias depois, Fabrício morre de madrugada. Fabíola providencia tudo. À tarde, sozinha na sala de velório, esperando o enterro, se assusta ao ouvir o grito de sua mãe na porta.

– Meu filho! Ah, meu filhinho! Que tristeza.

Atira-se sobre o caixão aos gritos. Ao lado dela, o marido choroso, acaricia suas costas e tenta consolá-la. Fabíola assiste aquilo como se fosse uma cena distante, irreal. Passado uns minutos, ambos se recompõem e se voltam pra ela.

– Obrigada por cuidar de tudo filha. Você está bem? – A mãe pergunta.

– Que irmã maravilhosa você foi. — O pai fala. — Esperamos que, agora, se mostre uma filha maravilhosa também.

Antes que eles digam mais alguma coisa, ela se levanta, vai até a administração do local. Os pais a seguem.

– Por favor. Está tudo certo, já tenho os dados de onde meu irmão vai ficar, há a necessidade de mais alguma coisa ou posso me retirar?

– Não vai aguardar o enterro na companhia de seus pais?

– É, filha, assim aproveitamos pra conversar.

– Senhor, pode me dizer se precisa de mais alguma coisa? Estou cansada e, caso não precise ficar pra assinar algo ou pagar mais alguma coisa, vou pra casa.

– Não, por mim está tudo certo, mas seus pais acabaram de chegar. Eles moram longe por isso só chegaram agora?

– Não tenho ideia de onde esse casal mora, nem me interessa. Tenha uma boa tarde.

– Fabíola!

– Filha! Vai nos deixar aqui sozinhos?

– Escutem aqui vocês dois, que vou dizer uma só vez. Caso apareçam na minha frente mais uma vez, eu juro que vou à policia, encontro um advogado e peço uma medida restritiva contra vocês. Fui clara? Já haviam estragado minha vida uma vez e fizeram de novo. Pra mim, chega. Nunca mais me procurem, esqueçam que, um dia, eu nasci e se me encontrarem por acaso, desviem o caminho.

Virou-se e saiu deixando os dois embasbacados. Tinham certeza que teriam sua ajuda, acreditando que por causa da profissão que escolhera ela era interessada em ajudar as pessoas e “boazinha”. Não tinham noção de certo e errado, da diferença entre ser bom e ser otário.

Denise resolveu fazer terapia por insistência dos pais, do irmão e da amiga. Como Marice achava que Marlene era excelente, seria com ela que faria, afinal ela conhecia Fabíola.

Entrou no avião, sentou-se na poltrona indicada e olhou pela janela observando o céu pensando. “Olho as nuvens, parecem varridas, pinceladas, lindas no fundo azul, o sol brilhando e, eu sou nuvem. Percebo o vento movendo-as, fluídicas, leves, despedaçadas e, eu sou vento. Lembro seus olhos de olhares velados, seu sorriso tímido, sutil e, eu sou felicidade. Lembro os fatos, aqueles mesmos olhos, doloridos, magoados e, naquele momento queria poder ser esquecimento.”

Cerca de duas semanas após o encontro com seu agressor e já tendo iniciado a terapia, Denise procura Fabíola. Queria ver como ela estava, queria ter certeza do que sentiria ao vê-la, saber se era apenas mais uma pessoa na sua vida ou se poderia ser A pessoa da sua vida.

– Boa tarde. Por favor, poderia falar com a Dra. Fabíola?

– Ela foi embora. Foi trabalhar e se aperfeiçoar, acho que na Escócia, ou algo assim. Recebeu convite, esteve esperando não sei o que e foi embora, há cinco dias.

Denise ficou parada, com a cabeça vazia sem saber o que fazer ou pensar. Automaticamente procurou um lugar pra se sentar e ali ficou sem noção de tempo. Voltou tarde pra casa.

– Raul, você sabia que ela viajou?

– Ela quem? A Fabíola? – Denise assentiu. – Sabia, sim. Ela havia me dito que poderia fazer pra terminar seu PHD, ela vai ficar poderosa agora.

– Não brinca assim comigo. Por que não me disse? Sabe o que sinto por ela, não sabe?

– Em primeiro lugar, como vou saber se você não sabia? Em segundo, ela me fez prometer que não te contaria pra não influenciar nenhuma decisão sua. Achava que seria uma pressão pra que se decidisse a voltar a se aproximar dela e não queria isso. Quer você livre e à vontade pra se decidir sobre qualquer coisa na vida. Mas como ficou sabendo?

– Claro que eu iria falar com ela. Talvez até pedisse que não fosse. Nesses dias, senti muito sua falta. Hoje fui até o hospital pra pedir desculpas pelo julgamento precipitado, diante das circunstâncias e pedir sua …. amizade de volta.

– Ah tá! Sua amizade! Tá vendo? Como eu posso saber o que você sente? Eu posso imaginar, pensar que você sinta uma coisa, mas em seguida você diz algo que aparentemente desdiz tudo.

– Só sei que sinto a falta dela como a de ninguém mais. Que quero muito sua companhia. Ela te disse quanto tempo vai ficar fora?

– Serão apenas seis meses, volta logo. Só não sei se quando voltar vai me perdoar pelo que fiz inconscientemente, ou, pelo menos, espero que tenha sido assim, senão nem eu me perdoo.

– O que aconteceu? O que você fez?

– É que … bom, logo que o avião decolou, fiquei possesso por ela estar indo, sabia que faria falta pra muita gente principalmente pra você, e tudo por causa daquele merda que é o pai dela – se é que se pode chamar aquilo de pai. Então fiz uma pesquisa enorme pra uma reportagem sobre pedofilia, tarados e, acabei mencionando o nome completo do “senhor Orlando”, bem como as suspeitas da policia sobre casos ocorridos depois que ele passou a morar no bairro.

– Meu Deus, Raul! Ele não vai te perseguir por isso? Ele não pode ser muito perigoso?

– Pra mim, não, nenhum perigo, mas, há dois dias, ele desapareceu e a mulher já deu queixa, tudo dele tá lá na casa deles. Eu até tinha comentado com Fabíola sobre a família de um dos casos recentes que são perigosos e, agora estou achando que eles o pegaram.

– Será? Como será que ela ficará se isto tiver acontecido?

– Pois é! Eu já estou me sentindo culpado mesmo sendo o cara quem é. Não deveria ter dado nome, mas estava tão …. puto. Deixei o particular influenciar o profissional e acabei fazendo cagada.

– Por que teu chefe não alterou?

– Imagina! O pessoal da redação adorou. Foi um texto bem escrito, verdadeiro.

– Então não tem porque se sentir culpado, se ele receber pelo que fez. Eu tenho certeza que nunca você disse a palavra vingança e Deus na mesma frase, portanto não acredito que tenha feito a matéria pensando em fazê-lo sofrer e, sim pra informar mesmo o quanto as atitudes destes crápulas podem trazer de sofrimento.

– Sei lá. Até o urubu é majestoso quando plana, eu nem sou juiz pra tá julgando alguém, principalmente provocando a sentença e, ainda mais se essa sentença for de morte. Vou contar pra ela o que fiz.

– Tem contato com ela?

– Tenho, mas você não vai ter não. Ela quer que você pense com calma.

Naquela noite, Denise rezou por seu algoz, para que seu irmão não sofresse por culpa e por forças para suportar as dúvidas de sua vida.

**

Marta resolveu procurar o marido sozinha, já que lhe parecia que não estavam fazendo absolutamente nada para encontrá-lo. Entrou em todos os bares do bairro, perguntando por ele e mostrando sua foto até que, em um boteco, o dono disse tê-lo visto uns dias atrás, bebendo com um homem.

Na manhã seguinte, o corpo dele apareceu com claros sinais de ter sofrido tortura, com um bilhete pregado no peito, dizendo que ele havia confessado ter cometido vários atentados violentos ao pudor com crianças de idades variadas, de entre seis e doze anos, bem como onde enterrara duas meninas, de sete e nove anos, que o conheciam e poderiam identificá-lo e, como não queria voltar para a prisão as matara.

Raul acompanhou a policia ao local e, realmente, haviam dois corpos enterrados. Foram ao bar em que ele fora visto pela última vez e o dono só soube dizer que guardara a “cara” dele, por ele ter bebido demais em companhia de outro “cara” – que não conhecia e só deu uma descrição meio vaga. Raul teve a certeza que o tal cara era o tio da criança que sofrera abuso e que ele sabia ser da pesada; e contado algumas “aventuras” com crianças, falando “das delícias delirantes em amá-las”. Coisa que o pessoal que frequentava o bar não gostava. Saíram juntos do bar, com Orlando praticamente carregado pelo outro cara.

Raul contou a Denise sem muitos detalhes, mas sabia que precisava ainda falar com Fabíola e dizer-lhe que ele era culpado, pelos familiares da garota terem encontrado Orlando. Esperou o horário que podia encontrá-la com tempo e ligou.

– Antes de qualquer coisa, quero te pedir perdão, amiga.

– Perdão por que, Raul? Aconteceu alguma coisa com Denise?

Então ele contou-lhe detalhadamente todos os fatos sobre o pai. Depois de um breve e ansioso silêncio, um suspiro profundo.

– Então, finalmente acabou. Pra muita gente, acabou. Fico triste com a violência contra um ser humano, mas não especificamente por ser ele quem deveria ser. Como ele não soube e agiu como o pior do ser humano, cavou seu fim da forma que se tornou, da forma que ele era. Soube algo de dona Marta, depois que ele morreu?

– Está preocupada com ela? Quer que eu verifique?

– Não, obrigada. Imagino como deve estar. Meio vazia, meio morta, afinal ele era tudo pra ela. Um casamento puramente patológico. Quisera eu que nunca tivessem filhos.

– Você está bem?

– Vou ficar. Quanto ao pedido de perdão, não posso te dar. Você só contou verdades, sequer chegou perto dele, apenas expôs os fatos, quem cometeu a ação é que é o culpado, não você. E…Raul?

– Oi.

– Como ela está?

Conversaram um pouco sobre Denise e coisas mais leves. Ele tentando não deixá-la triste e magoada demais, ela tentando se apegar a sonhos de amor.

**

Cada dia que passava, mais falta Denise sentia de Fabíola. Conversava com Marice que já achava “o maior barato ter uma amiga lésbica”. Viu filmes e sites GLS, leu livros e histórias, mas como o tempo se arrastava e os seis meses não tinham fim, resolveu seguir os conselhos de Marice e conhecer a vida. Foi a um bar, dançou um pouco, beijou algumas garotas enquanto dançavam. Não, definitivamente não devia ser gay. Até gostara dos beijos, mas não despertara nada demais nela.

Então saiu com Marice e Heitor resolvida a descobrir sua sexualidade. O rapaz que já tinha paquerado-a anteriormente, ao vê-la resolveu atacar com tudo já que era raro ela ser vista nestes locais. Aceitou o convite para dançar, bebeu apenas uma taça de vinho e acompanhou-o até um local mais isolado. Mesmo não sentindo vontade ou prazer, forçou-se a aceitar as mãos, tocando-a. Pensava em outra pessoa. Não reagia, apenas deixa-o fazer o que tinha vontade e segurava-se para não sair correndo. Quando o rapaz já tentava tirar sua calcinha…

– Opa! Pode parar por aí, Romeu. Denise, vamos embora.

– Peraí! Ela não está reclamando de nada.

– Estamos vendo que ela tá te agarrando e te lambuzando todo, mas nós vamos embora e ela veio com a gente. Né, Denise?

– É, sim. Obrigada por me lembrarem.

– Que é isso, gente? Tá cedo pra caramba e a gente tava se curtindo.

– Cara, você não percebeu que você estava curtindo, e ela não? Tem gente por aí que tá a finzão de transar o que não é o caso de nossa amiga aqui. Boa noite, tigrão.

– Mandou bem, amorzão.

– Obrigada a vocês dois, não sei o que me deu na cabeça. Eu não queria, apenas achei que estava na hora de deixar rolar. Não posso mais viver assim, nessa incerteza.

– Mudou alguma coisa?

– Depois que vocês interromperam, me dei conta do que realmente desejava.

– Sério? E o que era?

– Estar com outra pessoa.

– Aquela pessoa?

– Ela mesma. Descobri num segundo que não sou assim pelo que aconteceu no passado. Sou assim por natureza mesmo. Acho que é de família, nem meu irmão galinha! Um homem bonitão como ele só, inteligente, profissional reconhecido antes dos trinta, cheio de mulher a fim e pelo que saiba só teve três namoradas. Uma na adolescência que é amiga até hoje, outra por uns dois anos e a Norma que está com ele há dois anos e meio e acho que sai casamento.

– Agora só falta um mês pra volta, não vá mais fazer nenhuma besteira.

– Não mesmo. Boa noite.

Sente sua cama enorme, seca. Parece um deserto. Seria solidão? Lembra-se de ter lido um texto:

“Solidão= é estar só?

Procuramos sempre alguém para nos fazer companhia, alguém para compartilhar, nossa cara metade, nossa alma gêmea. Mas gêmeos são diferentes. Alguém nos atrai, nos envolvemos, nos apaixonamos, exatamente pelas diferenças e assim a paixão arrefece, ao invés de investirmos no amor, cuidá-lo, tratá-lo, mimá-lo, aceita-lo e fluirmos juntos, insistimos nas mudanças das diferenças que nos cativou. Estragamos tudo, nos tornamos um vampiro que suga tanto, a emoção, a companhia, que obrigará a uma mudança e pronto você estará só novamente.

Você é o outro lado, o inverso. As mudanças só acontecem até certo ponto, depois, torna-se anomalia, não é mais você. Você se deixou levar, fez tanta concessão que se cansou. Está acompanhada, mas está só. Solidão a dois. Ou você parte para um outro rumo, para se refazer, ou se sentirá oca. Só.

Você está entre conhecidos, amigos, no entanto, há algo esquisito, lá no fundo. Não se sente pertencente ao meio, a conversa bate numa barreira e não a atinge. Você sorri sem vontade, observa e não consegue entender ninguém ali. A compreensão entre vocês está dissolvida. A música pode lhe ser altamente irritante, distante, não te toca. O barulho faz sua mente divagar, perambular por lugares nenhum. Você está só.

Não é por fora, não depende de ninguém além de você mesma. Estamos verdadeiramente acompanhados, quando no útero, dentro de alguém e nunca mais. Após o nascimento, passamos a ser materialmente, fisicamente únicos. Podemos ter momentos de companhia quando o amor e o prazer nos conduz à total entrega, depois voltamos a ser só. O momento mágico, o flutuar e transcender é fugaz.

Podemos estar acompanhados, quando as ideias e ideais se encontram, no partilhar de amizades verdadeiras e buscas profundas.

Sentir-se só, é depender do externo pra estar bem, é não observar e integrar-se à natureza, a beleza do céu, o nascer do sol, o som da chuva, à força do vento, o sabor indescritível da água (ela tem sabor, só não o definiram ainda), o preenchimento, o compasso do ar inalado e expirado, o olhar curioso da criança.

Estar só é sentir a alma vazia.”

Então não está só, não é solidão o que sente, porque sua alma está plena de amor, da falta dela. É simplesmente SAUDADE.

É noite. Está no aeroporto, ansiosa, e ela aparece. Fica com sorriso bobo no rosto, até que ela também a vê e retribui o sorriso. Espera passar pelo portão e corre até ela abraçando-a com força. Inexplicável o que sente. Pegam as malas e vão pro carro de Denise. Assim que entram, depois de guardar tudo no porta malas, se olham sorrindo, se abraçam novamente e lentamente se beijam, longa, profunda e demoradamente. Como queria aquilo! Suas mãos tornam-se marionetes de seu desejo. Avançam sob tecidos, sentem a pele, acariciam os seios, apertam as coxas. Em contrapartida, seu corpo é explorado com carinho, tesão, paixão. Bocas exploratórias, mãos safadas. Ao tocar e acariciar entre as coxas sente a umidade, afasta a calcinha que atrapalha e entra usando os dedos. Nunca fizera nada daquilo, mas parecia estar impresso em todo seu ser. Mexe, geme, sussurra, entra, sai, beija, lambe, enquanto sente as mesmas sensações em si. E gozam.

Um barulho estranho a assusta, se vira para olhar às suas costas, abre os olhos e geme porque o rádio relógio a despertou no horário marcado para fazê-lo.

Aquele tipo de sonho torna-se constante em suas noites e, às vezes, em seus dias.

**

Enfim chega o dia em que Raul a avisa que Fabíola está de volta. Desta vez, está bem acordada na companhia do irmão no aeroporto à espera dela. Depois de muita conversa e ela deixar claro para ele seus sentimentos, ele deixou que ela o acompanhasse. Está ansiosa demais. Toma água direto para aplacar a ebulição de sentimentos, por isso antes que Fabíola os encontre, tem que ir ao banheiro. Quando sai, ela está ao lado do irmão esperando-a.

Denise estanca e não sabe como agir. Fabíola se aproxima e estende os braços pra ela. Denise praticamente salta para aqueles braços amados e o calor, a emoção suplanta tudo o que havia pensado. Vão para o carro de Raul.  Entram no apartamento de Fabíola que se encontra bem conservado pela senhora que cuida dele. É a primeira vez que Denise entra na casa. Raul diz que marcou encontro com Norma e as deixa.

– Como você está, Denise?

– Eu estou bem. E você, conseguiu superar todas as más noticias que teve?

– Consegui sim. Passou a mágoa que causei?

– Você não causou, foi outra pessoa. Eu fui lá te pedir desculpas e falar com você, mas você já tinha partido.

– O Raul me disse. Estamos bem, então?

– Fabíola, eu acho ….. acho não. Tenho certeza que te amo. Juro que tentei ver as coisas de outra forma, descobri que meu jeito não tem nada a ver com o passado, que nasci assim mesmo e também descobri que não amo mulheres ou homens. Amo uma pessoa maravilhosa que é você. Não estou pedindo muito menos cobrando nada, apenas quero deixar isso claro e, por favor, se eu não tiver nenhuma chance me diz agora sem rodeios.

Pela primeira vez, o abraço é diferente. O primeiro beijo acontece profundo e macio. Depois que afastam os lábios, se abraçam novamente e assim permanecem por um bom tempo. Quando finalmente se separam:

– Pode ter certeza que eu também te amo Denise, nisso pode confiar. No entanto, as coisas que meu pai fez, principalmente a você, tem um peso grande demais pra ser ignorado. Tenho medo que isso afete uma relação entre nós. Acho que, se dermos tempo ao tempo, talvez a gente possa vir a ter certeza do amadurecimento pessoal e emocional, a ponto do passado não nos machucar mais.

– Mas …

– Imagine você me apresentando a seus pais como sua mulher. Como seria essa apresentação? Seria mentirosa ou verdadeira? E, em sendo verdadeira, como eles reagiriam? Seríamos aceitas por eles? Eu seria aceita sendo filha de quem sou? Ou não diríamos nada a eles e viveríamos uma farsa pra que não soubessem?

– Mas as influências nefastas dele nunca vai deixar de nos afetar? Nunca poderemos ser felizes?

– Isso só o tempo e a tua força e coragem podem determinar, amor. Talvez seja exigir demais de você, mas só quando você souber até onde está disposta a ir por nós é que saberemos. Pense em tudo que tem a perder, na reação dos teus pais que, além de saberem que você está com uma mulher quem é essa mulher. Vá devagar, pondere bem e quando decidir o quanto está disposta a arriscar, me avise.

Beijaram-se novamente, querendo transmitir tudo que não disseram, mas foi um beijo de despedida. Breve ou pra sempre …… O TEMPO DIRIA.

FIM



Notas:



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