Gringa Grudenta

2. A menina lisa e a goleadora

NOTAS INICIAIS

Aviso de conteúdo > xenofobia

Gente, por favor comentem e votem na história, eu quero saber o que estão achando. Sempre façam isso com histórias que gostam para estimular ês autores a continuar, não só aqui.



São 7 e meia da manhã quando Flora e Jaylene deixam Carmen e Crista na frente do centro de treinamento da Red Phoenix Athletics. Carmen é a própria face da energia e animação, doida para introduzir sua nova amiga brasileira ao time, a qual no entanto poderia ter ficado mais uma três horas na cama facilmente. Pouco antes de entrar na recepção, Carmen estaca e Crista tromba nela.

– Ai! Qual foi, mana?! – Carmen tira o celular do bolso da jaqueta do time e digita algo rapidamente. Entrega para Crista. “Nosso treinador, senhora Moon, é meio difícil de lidar, mas não se preocupe. Ela não é cruel, apenas extremamente rigorosa”. Crista entrega o celular de volta depois de ler a mensagem, gesticulando para que deixe pra lá. Não está com paciência para utilizar esses métodos complexos de comunicação logo pela manhã.

Após passarem pela recepção, onde Carmen cumprimenta a todos os funcionários como se fossem velhos amigos, as duas se dirigem ao vestiário e lá, trocam suas roupas casuais pelas roupas de treinamento do time em vermelho, branco e vinho. Algumas outras atletas também já estão lá. Elas conversam entre si, vez ou outra olham na direção de Crista, algumas vem falar com ela. A brasileira, ainda com sono demais pra lidar com esse monte de gringas logo pela manhã, decide jogar nas costas de Carmen a responsabilidade de lidar com elas em seu lugar.

Finalmente, uma mulher bem mais velha, de pele amendoada e cabelos negros escorridos adentra o vestiário. Ela veste jaqueta e calças esportivas do time, inteiramente vermelhas e com o escudo da Red Phoenix no peito. Lê algo atentamente na prancheta que carrega. Aos poucos, as jogadoras se aquietam, apesar da treinadora parecer ignorá-las.

– Ué mano, por que tá todo mundo quieto? – ela sussurra para Carmen, esquecendo-se de que ela não a entende. Carmen faz sinal de silêncio para Crista e quando a brasileira torna a olhar para a treinadora, sente um calafrio percorrer sua espinha. Ela a encara de um jeito frio, quase… predatório. Sente que é uma ovelhinha prestes a ser assassinada pelo lobo mau.

– Parece que o incrível reforço que a nossa diretoria prometeu finalmente chegou – ela começa, enquanto anda na direção de Crista. As outras jogadoras permanecem em silêncio. É um tanto ameaçador, ainda mais pelo fato de Crista não fazer a menor ideia do que ela está falando – Ágata Cristina Oliveira…

– Huh… Crista, plíse – ela pede, reconhecendo nada além de seu nome naquela frase.

– É que ela prefere ser chamada de Crista, professora – explica Carmen, em resposta à expressão não muito amigável da treinadora frente à interrupção – ah, o inglês dela também não é muito bom... – Crista tem uma noção do que ela diz, então sacode a cabeça e agita os braços em sinal de negação, tentando reforçar a amiga.

– Yes, no íngliche.

– Muito bem, entãoEspero que você esteja à altura das expectativas que certas pessoas criaram – a treinadora Moon torna os olhos para cada uma de suas jogadoras, pausando por um momento a mais em Carmen – como vocês já sabem, teremos a abertura da segunda fase do campeonato na semana que vem, contra as Royal Foxes. Será o teste mais árduo da nossa temporada e uma partida decisiva. Agora, todas pra fora, 15 minutos de aquecimento e depois treino de passes. Menos você, Storm, você fica. Carmen, mande a novata ficar também.

– Huh… – Carmen segura Crista pelo braço quando ela faz questão de se levantar e seguir as outras e sinaliza, apontando para o chão, tentando passar a mensagem. Pelo olhar vago de Crista, ela não está entendendo.

– Cê quer que eu me abaixe? Me esconda debaixo do banco?

Quando sobra apenas Storm no vestiário Carmen aponta para ela, que conversa com a treinadora do outro lado do quarto e depois, para o banco, repetindo a sequência de gestos várias vezes. Diante do olhar de confusão de Crista, ela exprimenta apontar para Storm algumas vezes e se sentar no banco, fazendo pose de quem espera por algo. Storm é uma bela mulher, negra de pele bem escura, esguia, cabelos bem curtinhos. Na sua última tentativa, Carmen aponta para Storm com mais veemência e se senta com mais força no banco, como se a intensidade dos seus sinais fosse ajudar a esclarecer a mensagem.

– Cê quer que eu sente naquela estilosa ali? – se pergunta Crista – olha mana, eu costumo ser bem direta tá ligado, mas calma lá…

Quando Storm termina de falar com a sua treinadora, ela vem até as duas companheiras com dificuldade de comunicação.

– Tá bom que ela é gata, mas eu nem chamei ela pra jantar ainda pô – Storm se pergunta do que será que elas estão falando.

– Deixa comigo, Carmen – ela oferece, liberando a amiga. Carmen gesticula um agradecimento aliviado e segue pra fora do vestiário. Crista faz menção de seguir ela, mas Storm a segura pelo pulso – calma lá, amiga. Teu inglês é realmente ruim, hein?

Storm tem vontade de rir com o mind-blown visível na expressão de Crista.

– CARALHO MANO, CÊ É BRAZUCA?! FINALMENTE, EU NÃO TAVA ENTENDENDO PORRA NENHUMA! – Crista puxa a mão de Storm e aperta animadamente – e aí mina, curti teu cabelo. Eu sou Ágata Cristina, comedora de casadas, mas me chama de Crista, e cê é quem hein?

– Storm – ela aperta de volta a mão da compatriota, rindo internamente com a apresentação da outra.

– Istór? Irmã, onde tu arrumou esse nome? É tradição dos alterianos o mau gosto pra nome? – a outra ri.

– Não, meu nome é Maria Carolina. Storm é apelido. Storm, não “Istór”. É por causa da Tempestade dos X-Men, tendeu? Sou tipo uma “tempestade” no ataque – ela brinca, metida – e também quando eu comecei a jogar eu platinava o cabelo, aí parecia ela.

– Pode crê, saquei. Foda, mano – aquela treinadora aterrorizante vem até as duas, fazendo Crista instintivamente dar um passo para trás. Seu treinador no São José nunca fora assim.

– Storm, me traduza.

– Sim, senhora.

– Crista, nós temos um jogo importantíssimo na semana que vem, contra um dos melhores times desse país, um dos poucos que ainda consegue ter alguma chance de nos tirar o título da liga – ela faz uma pausa, esperando Storm traduzir antes de continuar – desde o começo da temporada estivemos tendo dificuldades para encontrar uma meio-campista ofensiva que encaixe, desde que nossa meio-campista titular saiu do time no fim da temporada passada. A diretoria e a Carmen, minha melhor centroavante, prometem de pés juntos que você é a próxima super-estrela do futebol. Não me desaponte: eu quero ver disciplina, aplicação tática, frieza, jogadas calculadas – mais uma vez ela dá uma pausa para a tradução simultânea – hoje vamos fazer o aquecimento e um treino de passes e, depois disso, um jogo-treino de titulares contra reservas. Você vai estar com os reservas. Me mostre do que é capaz e talvez eu te deixe começar o próximo jogo.

Aquele desafio apenas faz o fogo de Crista se acender com mais força. Ela faz o aquecimento junto com as outras e no treino de passes, mostra tudo do que é capaz: todos os tipos de passes com efeito, trivelas, dribles curtos seguidos de passes, pelo alto ou por baixo, brincadeiras com a bola, ela faz questão de esbanjar sua técnica superior que a consagrou no São José. Ao final do treino de passes ela tem um sorriso metido no rosto, sabendo que arrasou. A garota com quem fizera dupla para o treino de passes parece até intimidada.

Ela estrategicamente vai se posicionar ao lado de Storm quando o jogo-treino está sendo organizado.

– As reservas vão usar o colete branco – explica Storm – e as titulares, o vermelho.

– Massa.

– Ah, Crista. Sobre seus passes…

– Curtiu, né? – ela oferece um presunçoso sorriso aberto e faz sinal de joinha com as duas mãos – e fica esperando pra ver o que mais eu sei fazer no jogo!

– Ahn… eu não tenho certeza se a treinadora Moon vai gostar.

– Ih, qual foi mana, não confia na mãe aqui não? Ela vai estar toda derretida no final desse treino, espera pra ver! – Storm revira os olhos.

– Você que sabe. Ah, provavelmente é a Brigitta que vai te marcar, é a volante do time principal e nossa capitã. Cuidado com ela, ela tem um jogo físico bem pesado.

– Pegar pesado com quem tem pé leve não rola não, mana – Crista replica, debochada.

E Crista faz questão de provar o que diz no jogo. A tal da Brigitta é uma mulher branca, cabelos negros e lisos presos num rabo-de-cavalo, bem mais alta e robusta que ela, mas logo na primeira bola que Crista recebe, ela sequer precisa olhar para saber que a volante está vindo com tudo pra cima e dá um toquinho de calcanhar que passa entre as pernas da mulher, recuperando a bola do outro lado.

– Ôôôôôpa! Fecha as perna senão sai um filho daí! – ela provoca. Brigitta vem pra cima de novo e Crista dá um elástico, escapando mais uma vez do seu bote e segurando a bola mais um pouco. Ela não percebe, mas da lateral do gramado a treinadora Moon a encara, nem um pouco impressionada pela sua falta de disciplina e seriedade. Quando Brigitta avança de novo, Crista dá um toquinho para a bola ir para um lado e corre pelo outro, dando uma meia-lua em Brigitta e lançando a bola com um toque de efeito para uma das atacantes da reserva a quem ela desconhece. Crista não se importa o suficiente para ver a conclusão da jogada e se vira para encarar sua marcadora, com um sorrisinho metido e provocador. Brigitta não parece satisfeita e balança a cabeça em sinal de negação. Crista faz duas finger-guns e aponta para a estrangeira – curtiu, né? Fala aí, eu sei que cê pagou um pau!

No segundo lance em que recebe a bola, Crista mais uma vez está de costas para a sua marcadora e não precisa de um olho na nuca pra saber que ela está partindo para a dividida. Crista aproveita a velocidade da bola rasteira vindo em sua direção para dar um toquinho, elevando a bola por cima do corpo da volante e passando um chapéu liso. Crista domina a bola do outro lado com apenas um toque, usando o peito do pé e parte para o ataque. Ela vê uma das pontas escapando pela direita e mais uma vez dá um lançamento com efeito pelo lado de fora do pé. Ela se volta para Brigitta exibindo as duas mãos, uma com 4 dedos levantados e a outra sem nenhum.

– Adivinha quem tá tomando de 4 agora! – ela realmente não se importa se essa gringa não a entende, ela PRECISA compartilhar suas piadas com o mundo.

Na lateral do campo, a treinadora pressiona dois dedos contra a testa, impaciente com a nova contratada.

A partir dali Brigitta começa a tentar marcar cada vez mais em cima e, cada vez, mais Crista se movimenta freneticamente pelo campo, aproveitando-se da sua velocidade e agilidade superiores. A cada bola que ela recebe, é mais uma humilhação para a volante veterana. Num lance, ela passa uma carretilha e ainda emenda outro drible rápido contra uma zagueira, antes de arrematar na trave. Noutro, uma bola alta é mandada em sua direção e, em vez de tentar dominá-la, ela finge ir para a disputa e deixa a bola passar reto, indo parar nos pés da atacante e deixando uma Brigitta desconcertada. Um lançamento de letra com efeito chega precisamente ao peito da centroavante, que vira e chuta pra fora e, finalmente, o lance que consagra Crista naquele jogo-treino: a ponta da sua equipe manda a bola para Crista, que corre pelo meio e a brasileira, percebendo a marcação próxima de Brigitta se lembra daquele lance lendário de Pelé na Copa de 70 e deixa a bola passar entre as suas pernas em vez de dominá-la. O movimento pega Brigitta de surpresa e ela demora um segundo a mais para reagir, não tendo chance de alcançar Crista na corrida, que recupera a bola do outro lado e parte pra cima, vendo duas zagueiras grandalhonas vindo pra cima de si e deixando a atacante do time completamente livre. Crista espera pelo momento certo para dar um toquinho na bola, que passa na altura da cintura, no espaço mínimo entre as duas e cai perfeitamente nos pés da atacante, que domina a bola e chuta com força pro gol. A goleira espalma a bola pra fora. Enquanto isso tudo acontece, uma das zagueiras tromba com Crista, que cai violentamente.

– Ai meu deus do céu, me desculpa… – a defensora começa a se desculpar, já indo oferecer a mão para ajudá-la a se levantar, mas Crista, mais rápida, se põe de pé de um pulo, como se nada tivesse acontecido, rindo da cara das duas e ignorando o incompreensível pedido de desculpas.

O treino termina com um placar de 3 a 0 para as titulares com direito a um gol de Carmen e dois de Storm, mas várias das garotas tanto do time principal quanto do reserva vem cumprimentar a brasileira, genuinamente impressionadas com sua técnica e leveza. Embora não entenda nada do que elas falam, ela entende o que querem dizer e se sente orgulhosa, caminhando de volta para o vestiário se achando toda e doida por uma ducha, até que uma mão firme e gelada a agarra pelo pulso.

– Aaiii! Que isso, vampira! – ela encontra os olhos da treinadora Moon, se é que é possível ainda mais gélidos do que suas mãos. Ela gesticula com a cabeça para segui-la e sinaliza para Storm que também venha junto. As três se afastam do caminho que as outras jogadoras fazem para o vestiário e a conversa começa.

– Storm, traduzaMuito bem, Crista. Como eu posso descrever seu treino? Eu nunca, NUNCA vi tamanha falta de respeito, de disciplina, seriedade e aplicação tática num período tão curto de tempo. Você acha que isso aqui é a sua brincadeirinha do colégio? O seu campeonatinho amador de país de terceiro mundo? Você está num dos times mais renomados de um dos campeonatos mais disputados de futebol feminino do planeta, então porte-se como tal! – enquanto falava, Moon se aproximava cada vez mais de Crista, cada vez mais ameaçadora e pontuara sua frase dando uma dedada forte em seu peito, o que além de machucar faz a garota recuar assustada, sem a menor noção do que está sendo dito. Storm olha de uma para a outra, sem saber como reagir e se deve realmente traduzir isso.

– Senhora, com todo respeito – Storm usa o tom de voz mais suave que possui, tentando ao máximo deixar claro que não está desafiando sua autoridade – Crista acabou de chegar ao time, ela ainda não conhece o nosso estilo de jogo e não fala nossa língua, acho que deveríamos pegar mais leve e tentar nos comunicar melhor com ela… além disso, o jeito espontâneo e criativo dela poderia muito bem nos ajudar, ainda mais contra a Aglai… – Moon levanta a mão em sinal de silêncio e encara sua ponta-esquerda, furiosa.

– Eu te mandei traduzir, não argumentar, Storm.

Storm suspira e traduz a mensagem central de Moon, deixando de fora a parte que ela insulta seu país de origem e tentando fazer tudo soar mais gentil do que realmente foi. Não que faça muita diferença: Crista entendera claramente aquela linguagem corporal.

– Manda essa velha antiquada enfiar a disciplina no cu – retruca Crista, quando Storm termina de falar.

– Eu não vou dizer isso, tá maluca?

– O que vocês estão dizendo?

– Tá, tá bom. Então diz pra ela que se vocês querem continuar sofrendo com um meio-campo de merda quando a sua volante “principal” – Crista faz aspas com as mãos – claramente não é capaz de passar mais de 5 segundos sem levar entre as caneta de mim, a decisão é de vocês.

Storm pensa numa forma de polir o argumento da companheira.

– O que ela disse? – repete Moon.

– Ela está nos chamando a atenção para o fato de que uma volante veterana da seleção alteriana não teve a menor chance contra ela, professora – Storm não recebe uma resposta imediata, o que a faz exibir um sorrisinho de canto. Se sentindo confiante, ela emenda – por que não a testamos com o time titular nos próximos dias, e se ela se sair bem, você não dá uma chance pra ela? Crista parece ser exatamente o que precisamos para lidar com a Aglaia. Você lembra como a Wave se saiu no primeiro turno, não é?

A treinadora desvia os olhos das duas atletas por um momento, pensativa. Por fim, se dá por vencida.

– Okay. Eu vou dar uma chance, mas você diz pra ela parar com as firulas que aqui não é um circo.

No caminho para o vestiário, Storm resume a conversa para Crista, que mais uma vez chama a treinadora de “velha gagá e antiquada” e afirma que “ela está tentando cortar o meu gênio”. Depois disso, Crista toma uma ducha e, quando está se preparando para ir pra casa com Carmen, é informada que participará de uma entrevista referente à sua contratação. Não se lembra de ter passado por nada disso quando assinou seu contrato com o São José, mas acha que pode ser legal. É como aquelas coletivas que sempre vê com as estrelas do futebol masculino, o tipo de coisa que nunca havia se permitido sonhar.

Storm não é permitida de acompanhá-la como tradutora, mas outro tradutor, esse um homem de meia-idade alteriano e com sotaque forte, se senta à mesa da entrevista ao lado da Crista, enquanto a treinadora Moon se senta do outro lado. A brasileira reconhece Carmen, Storm e a outra atacante titular, a quem ainda não conhece, paradas no fundo da sala, atrás de todos os jornalistas, prestigiando a coletiva em silêncio.

– O que você espera para essa temporada? – é uma das primeiras perguntas que seu intérprete traduz.

– Ah, sacomé né mano. Vamo se esforçar, catimbar e sempre fazer de tudo pra levar os três pontos pra casa e fazer a torcida cantar. No final do ano pode pá que o caneco já tem dono.

O intérprete parece confuso com como traduzir o que ela diz, mas faz o melhor que pode após alguns momentos de reflexão.

– Seu tempo no São José foi marcado por um futebol vistoso e artístico. Como pretende adaptar seu estilo ao Red Phoenix, conhecido por ter um esquema tático pragmático? – o intérprete traduz a pergunta seguinte.

– Ih mermão, eu nem sei que porra cê tá falando não. Eu vou fazer o que eu sempre fiz, morô? Abriu a perna é caneta, fechou a perna é meia-lua, se pá inda colo umas carretilha no meio e é isso aí tá ligado? A parada é botar as mina na roda, tá ligado? Eu não manjo dessas parada de tática aí não, isso aí é com a pssôra. Só tô ali pra fazer o meu saca, não me botando na zaga tá sussa.

Storm sente vontade de rir com a dificuldade do intérprete, por mais que ela admita que também teria dificuldades em traduzir todas aquelas gírias. A pergunta seguinte é direcionada à treinadora Moon, pedindo que ela avalie a contratação. Ela responde com um monossilábico “curioso” e não explica, deixando os repórteres com um gostinho de quero mais.

– Considerando que atualmente estamos na metade do campeonato e a Red Phoenix continua apenas 2 pontos atrás das Royal Foxes, o que você espera para o jogo contra eles, sua possível estreia?

– Pera lá, QUÊ??? O CAMPEONATO JÁ COMEÇOU?! A gente tá em janeiro, porra! – Crista se surpreende. Ela pausa por dois momentos, tão imóvel que é como se tivesse dado tela azul – peraí! Porra, cêis seguem o calendário dos campeonato europeu, seus malucos?! Eu hein, achava que aqui era a América!

– Hm… sobre a pergunta? – o intérprete torna, um sorrisinho nervoso de canto.

– Ah véi, sei lá. Vou fazer o que eu sempre fiz aí, né mano. Num conheço essas mina aí não pra ficar esperando algo.

Essa pergunta já se emenda com outra.

– Aglaia McCartney tem sido o pilar da defesa das Royal Foxes, a melhor do campeonato, com sua marcação forte e visão tática. Considerando que ela provavelmente estaria pessoalmente encarregada da sua marcação caso seja escalada para o próximo jogo, como você pensa em lidar com essa ameaça?

– Mano. Eu tô sacando que cêis num tão sacando. Eu num sei, porra. Eu sei dibrá, é isso que eu faço. Sacou?

Quase tão interessante quanto as respostas de Crista é o quanto a cada resposta sua a treinadora Moon afunda mais o rosto na palma da mão.

Ao final da entrevista, Crista posa para uma foto ao lado da treinadora segurando a camisa vermelho e vinho da Red Phoenix, exibindo o seu nome e número nas costas. Está decepcionada: recebera a camisa 23 em vez da sua tão sonhada 10.

Já é uma da tarde quando Crista e Carmen chegam em casa para o almoço, com Carmen mais uma vez insistindo em pagar o Uber das duas. Ao abrirem a porta, Crista sente um delicioso cheiro de carne vindo da cozinha e, assim como no dia em que havia chegado, dá com Jaylene sentada com um notebook à mesa da sala, lendo alguma coisa atentamente e Flora botando a cabeça pra fora da cozinha para recebê-las, dizendo algo com aquele seu tom gentil de professora legal.

– E aí, gente. Como foi o treino? – pergunta Jaylene, tirando os olhos da tela por um momento.

– Bom, bom. Você tinha que ver a cara da Brigitta! A Crista driblou tanto ela que ela deve estar tonta até agora!

– Huh… rélou – experimenta Crista.

– Olá! – dizem Jaylene e Carmen ao mesmo tempo. Carmen acha graça da sincronia. Crista se sente constrangida, sem ter certeza se estão rindo dela. Aquele sentimento de ser burra volta para assombrá-la. Antes que possa tentar dizer algo mais, Carmen vai até a cozinha e dá com Flora na entrada, que estava saindo naquele momento para cumprimentar as duas. Crista se senta na outra ponta da mesa, ainda sendo incomodada por aquele sentimento.

– Como foi a faculdade, amor? – ela pergunta e dá um selinho nos lábios da namorada. Flora sorri abertamente.

– Foi ótimo! E você não vai acreditar, eu conversei com um professor do curso de línguas, ele convidou a Crista para um dos cursos comunitários da faculdade!

– Nossa! Sério?! Que ótimo!

– Oh, é verdade! Flora estava toda orgulhosa disso – comenta Jaylene. Carmen puxa seu celular do bolso e pula animada na direção de Crista, que se distraía usando o twitter no celular. Carmen praticamente enfia seu próprio aparelho na cara de Crista, a tirando do seu mundinho bem quando via um vídeo muito fofinho de um gatinho filhote miando pra câmera.

– Oshe! Qual é?! – ela lê a mensagem. “você ouviu isso? A Flora conseguiu um professor de inglês para você” – ah, daora.

Crista tenta digitar isso no google tradutor, apenas para se frustrar por ele se recusar a traduzir. Então, ela levanta os olhos para uma Carmen com os olhinhos brilhando de animação, sorri de lado e dá um joinha como resposta. Ela tem a impressão que a gringa está usando toda a sua força de vontade para respeitar seu desejo e não levantá-la do chão num abraço de urso.

Não muito depois, Flora serve o almoço: uma travessa cheirosa de carne assada com batatas e cenoura, as sobras do macarrão do jantar do dia anterior, uma vasilha de salada de legumes e um tapuér de alface. “Cadê meu arroz e feijão, coroi?”, ela se pergunta. Espera um pouco para ver como as outras montam seus pratos e tenta imitá-las, ainda confusa por não ver o básico de um almoço normal na mesa. Ao menos, a carne e as batatas estão boas.

Durante o almoço, Crista faz sinais para Carmen como se tivesse apertando os botões de um joystick. Carmen imita os sinais com um sorriso amigável e com essa linguagem as duas combinam que vão jogar depois do almoço.

Crista ainda quer uma revanche pelo jogo do dia anterior.

Depois de lavarem as louças, as quatro se juntam no sofá da sala, com Flora encostada no ombro de Carmen e Jaylene encolhida no canto com seu notebook. Por cima do ombro dela, Crista a vê digitando um monte de tabelas e caracteres em algum programa que com certeza não é o Word. Ela decide ignorar e foca na tela dessa televisãozona enorme que as gringas têm, vai para a tela de partida amistosa e ela e Carmen escolhem os mesmos times do dia anterior: seleção brasileira feminina contra seleção alteriana feminina.

Dessa vez, antes mesmo de entrar no jogo Crista repara em alguns nomes do lado de Carmen da tela, onde a escalação da seleção de Alter é exibida.

– “Aglaia”? Ei, me perguntaram dessa mina aí na entrevista! Opa peraí, “Storm”? – ela pergunta. Carmen e Flora viram os olhos para Crista – é… Storm not bresíliem? – Carmen e Flora se entreolham e Carmen tira o celular do bolso. “Storm nasceu no Brasil, mas cresceu em Alter, por isso tem dupla cidadania. Ela escolheu jogar pela equipe nacional de Alter”, Crista lê na tela do google tradutor.

“Má que arrombada do caralho”, pensa Crista, frustrada. Havia visto a garota jogando e ela obviamente é uma atleta de alto nível. A habilidade média indicada pelo jogo para ela, 90 de 100, um dos maiores da seleção de Alter, em igualdade com uma tal “Mira”, também com 90, apenas confirma ainda mais o que pensa. A seleção brasileira, tão carente de investimentos, estrutura e felicidades, poderia muito bem usar os talentos de alguém como Storm, “mas em vez disso ela escolheu jogar pelas gringas”, ela conclui o pensamento frustrada.

Crista se pergunta se tem muitas outras grandes jogadoras brasileiras usando a camisa de outro país. É quando percebe que realmente não sabe muito sobre seleções femininas além da do Brasil, apesar de tecnicamente já ser uma jogadora profissional há um ano.

Crista e Carmen jogam algumas partidas e todas terminam com goleadas para Carmen, sem Crista nem ao menos conseguir marcar um gol, mas sua evolução é clara: aos poucos ela começa a passar melhor e perder menos a bola, chegar um pouco mais no ataque, dar carrinhos mais precisos. Por fim, Carmen se cansa de jogar e coloca The Last of Us para Crista. Quando dá 4 horas da tarde, as duas saem mais uma vez para as sessões de musculação da Red Phoenix.

Crista odeia musculação. A bicicleta ergométrica até que é terapêutica, por mais que sinta falta de uma bicicleta de verdade para apostar corrida numa ladeira com o resto da rapaziada, mas todos aqueles exercícios de puxar ferro, esteira, abdominal e flexão são um porre. Ela faz o mínimo de esforço possível na maioria deles, por mais que a preparadora física tente motivá-la a se esforçar com palavras que Crista não entende.

Storm em dado momento se encosta ao lado da máquina onde Crista faz um exercício pras pernas.

– Ei, eu se fosse você me esforçava um pouco mais. A treinadora Moon é muito rígida e pode querer te deixar na reserva por não estar se esforçando o suficiente, ou se acharem que sua condição física não é ideal.

– Ah, fica shiu aí. Aquela velha gagá nem tá aqui agora – Storm revira os olhos.

– Mas o que acontece aqui vai ser reportado pra ela.

– Aham, aham – mesmo fingindo não se importar, Crista espia pelo canto dos olhos o peso que está levantando nesse momento e pensa em aumentar um pouco mais para a próxima sequência – ei, vem cá. Porque que cê joga pela seleção de Alter em vez do Brasil, hein?

Storm dá de ombros, como se não fosse importante.

– Eu gosto mais de Alter. É o país onde eu cresci, que me recebeu e que eu amo.

– Mas o Brasil é que é o seu país! É onde cê nasceu, é sua cultura porra!

– Alter é mais meu país do que o Brasil – ela replica, incomodada – eu saí de lá quando tinha 2 anos e só voltei pra lá algumas vezes pra ver meus avós. Tudo que eu sei sobre o Brasil é o que meus pais me contam e tudo parece ser bem pior do que aqui. Prefiro Alter, obrigada.

Crista termina a sequência e espia ao redor, procurando pela preparadora física. Espera até ela olhar na sua direção para colocar vários discos de peso extras e começar uma nova sequência.

– O Brasil tem seus problemas sim – diz Crista, começando a se exaltar – mas é por isso mesmo que a gente tem que dar ao país toda ajuda que pudermos! A única coisa que eu presto é futebol, então eu vou fazer de tudo pra chegar na seleção e dar felicidade aos torcedores! Eu não vou morrer em paz sem saber que eu não fiz de tudo pra ganhar nossa primeira Copa do Mundo!

– Boa sorte com isso. Mas eu sou alteriana primeiro, brasileira depois.

Por mais que sinta raiva, Crista apenas bufa e não discute mais.



NOTAS FINAIS

Curiosidade sobre Alter: de acordo com o meu world building, a República de Alter é um país de cultura “extravagante”, aos olhos de outros países.

vocabulário:

carretilha – drible onde a atleta “alavanca” a bola por cima da adversária e recupera do outro lado.

meia-lua – drible onde a atleta joga a bola por um lado da adversária, corre pelo outro e recupera do outro lado.

canetas – gíria no futebol para “pernas”. “Entre as canetas” = “entre as pernas”.

trivela – passe ou chute onde a atleta usa os três dedos do lado de fora do pé para dar efeito na bola.

se tiverem mais dúvidas, por favor perguntem nos comentários, eu vou explicar e adicionar aqui nas notas.

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Notas:



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2 Respostas para 2. A menina lisa e a goleadora

  1. Olá!

    Tá bem interessante até agora. Parabéns pela escrita!

    Por um lado, sinto pena da Crista, pois sei o quanto é difícil encarar novas realidades, mesmo que não sejam tão longe de casa. Por outro, apesar de compreender as origens dela, as limitações que enfrentou e ainda enfrente, assim como, a necessidade de se mostrar boa naquilo que gosta de fazer para alcançar o sucesso desejado, não a vejo aproveitando a oportunidade que conseguiu como deveria ser.

    Em alguns momentos, ela me parece mais uma criança mimada em busca de atenção, que se acha safa e malandra. Noutros, apenas inocente. Mas ninguém nasce “aprendido” e estou mesmo ansiosa para ler a evolução dela e, principalmente, as interações dela com a Aglaia.

    Sucesso!

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