Gringa Grudenta

10. Dia de pioneirismos

NOTAS INICIAIS

desculpa a demora pra postar, fiz cirurgia na quinta e tô mto mal por vários motivos

e tbm bem desanimada pra publicar minhas histórias, sensação mto forte de desvalorização

====



 

São dez horas da noite. Crista havia passado a tarde toda no The Grasshopper, na companhia de Melina. Descobriria que a garota, além de um enorme talento para preparar drinques (ao menos não-alcoólicos) também possui uma presença leve, atitude descontraída, senso de humor afiado e, o sotaque… ela consegue ser incrivelmente sexy apenas falando despretensiosamente.

– E aqui? – pergunta Melina, beijando Crista na base do pescoço e a fazendo ofegar. Odeia ser dominada. Não pode deixar assim.

– Caralho – ela deixa escapar, sentindo aquela parte entre as suas pernas quente e molhada.

– Hm, você é sensível aqui também… – a mexicana provoca e Crista revida chupando a base do pescoço da outra, começando de forma suave e se intensificando gradualmente, deliciando-se nos suspiros pausados da mulher.

É como se brigassem pela dominância, recostadas à parede bem ao lado da porta de entrada da quitinete de Melina. Elas mal puderam esperar depois de fecharem a porta para se agarrarem.

Crista não consegue se importar o suficiente com seu celular vibrando no bolso da bermuda a cada 2 minutos. Seja quem for, eles que esperem: está no meio de algo importante agora. E esse “algo” é agarrar a barra da camisa de Melina, pedindo espaço para tirá-la. A estrangeira rapidamente entende e levanta os braços, permitindo que Crista remova aquela camisa social branca e revele seu sutiã de bojo de cor verde-água. Crista toma cuidado para não amassar sua camisa, a estendendo no braço do sofá perto das duas. Melina observa todo o movimento com um sorrisinho curioso no rosto, e quando Crista volta a atenção a ela, Melina solta uma risadinha.

– O que foi?

– You’re cute.

Crista ouvira aquela frase da boca da outra várias vezes no dia de hoje.

– Hm, é mesmo, é? – ela sussurra, pousando uma mão em cada seio da mulher e os massageando lentamente, enquanto Melina sorri radiante e puxa Crista para mais perto de si. Ela sussurra, no seu melhor espanhol: – ustê también eres quíute.

Melina ri, aquela sua risada leve, gostosa de se ouvir, e pontua a risada com um quente, intenso beijo.

[…]

Crista acorda no dia seguinte com o Sol que escapa entre as frestas da cortina de Melina batendo na sua cara. Resmungando, ela se senta na beirada da cama, espreguiçando-se. Sorri de canto de boca ao ver a garota completamente nua deitada ao seu lado, lembrando-se da noite anterior. Admira sua tatuagem no braço esquerdo antes de se levantar, veste suas roupas de baixo e procura seu celular no bolso da bermuda. Encontra dezenas de mensagens de Carmen e logo as copia para o google tradutor, sem paciência para tentar entender essa língua complicada logo ao acordar. As mensagens perguntam onde ela está, dizendo estar preocupada, perguntam se volta ainda hoje. Nas últimas, Crista ri baixinho vendo o drama da amiga, que implora para os sequestradores a deixarem ir. Uma mensagem de Flora enviada uns vinte minutos depois da última de Carmen pede desculpas, diz que ela e a namorada beberam à noite e talvez sua namorada tenha exagerado um pouco, mas já dormiu e está bem. Crista troca para a aba do whatsapp e dá uma rápida passada de olhos pelas mensagens. Aquela garota da sua época no São José continua a mandar emojis de coração, mensagens contando de forma resumida o seu dia e perguntando como ela está, fotos dos seus bichinhos e, mais uma vez, Crista apenas visualiza. “Quando essa mina vai desistir, mano? Sé loco”, ela pensa. Aquela conversa com Storm há alguns dias volta à sua mente e a força a refletir se não deveria fazer algo mais em relação a isso. Se sente incomodada, fora da sua zona de conforto, pensando numa coisa dessas. Estará desrespeitando essa garota por ignorá-la? Mas ela só quer ser deixada em paz. Não entende porque a garota continua mandando mensagens depois de tantos meses só por duas ou três noites numa semana longínqua do ano anterior.

Nunca foi uma pessoa romântica e nunca soube lidar com as garotas com quem se relacionava depois de perder o interesse nelas, muito menos o que fazer quando ouvia uma das variações daquela temida frase: “eu acho que te amo”. “Eu estou apaixonada por você”. Nunca conseguiu sentir claramente nada além de tesão ou uma apreciação, mais em forma de amizade do que romântica, por aquelas garotas. Não sabe dizer nem mesmo se alguma vez na sua vida esteve apaixonada, apesar de já ter tido sim sentimentos profundos por alguém – só uma vez. Vez ou outra, quando gostava mais de alguma daquelas garotas, decidia aceitar seus pedidos de namoro, mas mesmo assim nunca sentiu nada parecido com o que suas amigas, seus irmãos ou sua mãe descreviam, muito menos o que vê na televisão, e pior ainda: jamais foi nada parecido com o que tinha com Scarlet. Nunca conseguiu ver nenhuma delas como mais do que amigas com benefícios, ou pessoas legais com quem tinha alguma conexão, a quem poderia considerar genuinamente em seu coração sem amá-las “romanticamente”, seja lá o que “romanticamente” significa. Em algum ponto da sua adolescência, pensou que talvez os filmes estivessem exagerando e o que ela estava sentindo, aquela combinação de amizade, apreciação e tesão, era sim estar apaixonada. Já faz algum tempo que não acredita mais nisso.

E sempre terminou em mágoa, quando Crista se cansava de tentar se fazer retribuir os sentimentos delas, ou quando tentava explicar o que sentia, que não era capaz de retribuir com sinceridade quando faziam aquelas declarações de amor ultra-românticas dignas de filmes, ou mesmo quando simplesmente o relacionamento acabava de forma natural, algo que parecia acontecer pelas próprias garotas se cansarem de Crista não retribuí-las.

– Meu santo caralho imaginário – Crista deixa escapar, ao se tocar de que horas são – O TREINO, PORRA!

– Hm… – Melina grunhe na cama e se remexe, parecendo que vai acordar com o grito de Crista, mas não acorda.

[…]

Quando Crista adentra o campo, toda a equipe já está na fase final do treino de passes. Ela começa a se aquecer, ansiosa com o momento que a treinadora Moon vai vir lhe dar sermão por sua “falta de disciplina” e seja lá o que mais. Em vez disso, Carmen é a primeira a se aproximar – saindo no meio do treino e vindo a passos rápidos na sua direção, uma expressão de alívio no rosto. Crista, que fazia corridinhas de uma linha lateral para a outra, diminui a velocidade e prende os olhos na amiga.

– Cris? – ela para a uns dois passos de distância.

– Sim? – Carmen solta uma risadinha maliciosa, se aproxima da meia e apoia a mão sobre seu ombro.

– Pelo visto a noite foi boa, né?

A diferença de altura a faz se sentir uma criança e, um tanto incomodada, ela empurra Carmen, pressionando-a a voltar à sua posição natural, mas a centroavante não compreende e permanece como está. Crista se lembra das mensagens de ontem, se pergunta se é disso que a amiga está falando e replica, incerta:

– I am good – e tira a mão de Carmen do seu ombro – espaço pessoal mana, faiz favô. I am not sequestrada – ela tenta se lembrar qual era a palavra que havia visto no google tradutor mais cedo – kinaped. I am not kinaped.

Carmen solta uma gargalhada gostosa.

– Ai, desculpa por aquilo! Eu sou meio fraca pra álcool…

– Hã… que disse?

Ela sente a presença sombria de Moon antes mesmo de ouvir sua voz.

– O que pensam que estão fazendo? Voltem ao treino – seu tom de voz é frio e afiado como um punhal, faz Carmen soltar um grunhidinho assustado e correr de volta para o treino de passes, enquanto Crista espera parada na lateral do campo que a treinadora se aproxime e comece logo o seu discurso desmotivacional.

[…]

Crista sente o peso do olhar de Moon em seus ombros durante todo o treino. É um alívio quando finalmente são dispensadas. Quando está prestes a entrar debaixo do chuveiro, ela ouve a treinadora chamando as garotas para um informativo importante. Ela não entende a maioria das palavras ditas e nenhuma das garotas expressa surpresa alguma.

– Que que ela tá dizendo? – pergunta ela, cutucando o ombro de Storm.

– Ah, só o recesso da Algarve Cup. Nada fora do normal.

– Algarve Cup? Que isso?

– É um campeonato amistoso de seleções – explica Storm e Carmen assente logo atrás dela.

– O que ela diz.

– Acontece todo ano, então claro, todo mundo aqui já sabia, mas a treinadora tem que nos avisar de qualquer jeito só pela formalidade da coisa. Você realmente nunca tinha ouvido falar na Algarve Cup? Ninguém no Brasil fala sobre isso?

– O que ela diz.

– Não é como se no Brasil dessem alguma foda pras meninas da seleção – retorque Crista, frustrada pela própria ignorância.

– E você ainda queria que eu defendesse esse país? – brinca Storm, ganhando um olhar rancoroso de Crista. Ela levanta os braços em sinal defensivo – ui, tá bom, credo…

– O que ela diz – Carmen continua concordando e acenando com a cabeça.

– Carmen, eu tô achando que cê é hétero hein, curte beijar uns ome e tal – debocha Crista. Carmen fica olhando para Storm, como se esperasse alguma tradução. As duas brasileiras ficam se encarando como se combinassem algo.

– Também acho, Crista – Storm finalmente diz, e Carmen torna a assentir com a cabeça.

– O que ela diz.

As duas brasileiras riem como idiotas da sua engraçadíssima piada e Carmen, sem entender, ri junto delas.

– Do que nós estamos rindo? – ela pergunta.

– Ai meu deus, Carmen. Você é boa demais para esse mundo – Storm comenta, tornando a rir baixinho.

Quando já estão no carro, Carmen indaga:

– Ei, você viu o vídeo que eu te mandei?

– Vídeo o quê? – Crista não entende nenhuma outra palavra além dessa.

– Eu, te, mandei, um vídeo – Carmen diz pausadamente. Crista leva alguns segundos para decodificar a mensagem.

– Ah! No, not see the video – ela responde, tirando o celular do bolso e subindo rapidamente as mensagens de Carmen. Por fim, ela encontra um link do youtube enviado umas duas horas antes de Carmen começar suas conversas de bêbada.

– Dá uma olhada!

– Hã? – Crista encara a companheira confusa – “take a look”? Pegar um olhar? Coméquié? Tá de tiração, como cê espera que eu “pegue” um olhar mano!?

– Assiste o vídeo!

– Ah tá. Watch the video.

Crista abre o link e relaxa contra o banco do passageiro. O vídeo começa com uma tela preta escrito “Kaan’uh Moon – The Nizihato Witch”; Crista pausa o vídeo, tentando ler o primeiro nome.

– Kanú? Como que se lê isso?

– O que foi?

– É, what is Kanu?

– Kaan’uh? Ah, é o primeiro nome da treinadora! Kaan’uh Moon.

– Nome? – estranha Crista – nossa véi, que nome esquisito… cêis aqui de Alter são cheios dos nomes bizarros, né?

– Oi?

– É… strange. How I say it?

– Ah. Nem sei, é um nome indígena, do povo dela. Eu falo “Kênu” – explica Carmen, pensativa – é o jeito que ela se apresenta, mas talvez esteja só facilitando pra gente?

Crista torna a dar play no vídeo, intrigada. Então, é um vídeo da sua treinadora nos seus tempos de jogadora? Isso com certeza vai ser interessante…

São filmagens bem antigas, Crista diria que anos 80 ou 90. A câmera foca numa versão uns 30 anos mais nova de Kaan’uh Moon, talvez até mais: nos closes, ela parece ainda mais jovem que Crista e usa uniforme de camisa, shorts e meias num tom bem claro de rosa, com detalhes roxos e amarelos. Os primeiros momentos do vídeo têm um tom dramático, focando no rosto dessa jovem Moon várias vezes enquanto uma música dramática de fundo se torna gradualmente mais alta, como um filme de guerra fantástica estilo Senhor dos Anéis prestes a alcançar o seu clímax. Subitamente, a música fica mais agitada e a parte importante começa, com a ex-atleta costurando entre as defensoras adversárias com dribles curtos antes de tocar para uma companheira, depois cortando para um lance ainda no mesmo jogo onde ela pedala pra cima da defensora, corta pra fora e chuta de esquerda direto para o gol, com ângulo fechado, uma bola cheia de efeito, que escapa das pontas dos dedos da goleira por um milímetro e vai entrar do outro lado do gol.

– Puta que… – Crista deixa escapar. É sem dúvidas o gol mais espetacular que já viu na vida – mano, ela fez isso sem querer, não fez? Porra! Eu nunca tentaria uma parada dessas, nem fodendo!

Carmen dá um sorrisinho de lado ouvindo a reação da garota.

– Impressionante, né?

– Do caralho! – Crista não desgruda os olhos do celular. Os lances seguintes são um mais impressionante do que o outro. Depois de uns três minutos, o vídeo chega a uma série de lances contra uma equipe que ela rapidamente reconhece como a Red Phoenix, vestindo uma versão antiga do uniforme, mas ainda com seu clássico vermelho com faixa vinho no peito e shorts brancos. Um drible onde Moon passa no meio de duas zagueiras antes de tocar para uma atacante. No lance seguinte, ela dá um chapéu sobre outra defensora, seguido de chute da entrada da área em que a bola toca na trave antes de entrar no gol e o placar no canto da tela troca de 1 a 0 para 1 a 1. Um escanteio em que a bola sobra para ela na entrada da área e a mulher chuta de primeira com a bica do pé, surpreendendo todo mundo. A goleira nem se mexe e a bola entra no gol, e o placar no canto da tela muda de 2 a 1 para 2 a 2. Uma sequência de dribles de Moon humilhando várias jogadoras da Red Phoenix.

A música pausa por um momento, sendo substituída pela narração de um homem, um placar de 2 a 2 no canto da tela e 36 minutos do segundo tempo. Moon e mais duas jogadoras se posicionam ao redor da bola, prontas para cobrar uma falta da entrada da área. Crista não entende muito do que o narrador fala, mas sente ansiedade em seu tom de voz.

– Kaan’uh, Sky e Soleil na bola… – ela reconhece o nome de sua treinadora – a árbitra autoriza, lá vai Soleil… ela passa reto pela bola, Kaan’uh Moon bate…! GOL! É GOL! GOLAÇO DAS NIZIHATO WITCHES!

Crista ouve o homem comemorando alucinadamente o gol, como um narrador brasileiro desses que quase tem um infarto a cada lance. Desde que havia se mudado para Alter vinha reparando como os narradores não demonstram muita emoção durante os jogos, mas esse está sendo bem diferente. Ele berra um “gol” interminável de dar inveja em qualquer narrador brasileiro, enquanto a equipe de rosa comemora, com uma atleta grandalhona carregando a jovem treinadora Moon nos ombros e várias outras se juntam ao redor, gritando, abraçando, apontando para as arquibancadas. A cena é cortada para uma juíza apitando o final de jogo e a equipe de rosa explodindo em comemorações, enquanto o narrador grita alucinado “it’s over”.

– ACABOU! ACABOU! AS NIZIHATO WITCHES SÃO AS CAMPEÃS DA TAÇA ALTER, 1987, COM TRÊS GOLS DA JOVEM MEIO-CAMPISTA KAAN’UH MOON! QUE ESPETÁCULO, SENHORAS E SENHORES, QUE ESPETÁCULO!

É tão contagiante que Crista quase começa a comemorar junto. Uma chuva de papéis picados rosa e roxo é despejada sobre o estádio e a torcida das Nizihato Witches comemora. Uma atleta claramente mais veterana, com braçadeira de capitã, levanta um troféu prateado e logo o passa para Moon, simula uma reverência à companheira. Moon ri bobamente e esconde a boca entre as mãos, constrangida, sua pele castanha até assumindo um tom levemente avermelhado. É o tipo de expressão que Crista nunca imaginou que poderia ver no rosto daquela mulher. É com algum atraso que ela finalmente entende o que o narrador grita: foi Moon quem marcou todos os 3 gols de sua equipe nesse jogo.

A música volta e o resto do vídeo segue normalmente, com uns 10 minutos de Moon usando versões daquele uniforme rosa que mudam gradualmente, e a partir de certo ponto esses vídeos começam a se misturar com momentos de Kaan’uh Moon usando o uniforme branco e amarelo da seleção de Alter. Dribles, passes, gols de longa e média distância, até que o uniforme que ela usa subitamente muda para o vermelho da Red Phoenix. Isso pega Crista de surpresa. Logo ela se lembra da provável razão de Carmen estar mostrando aquele vídeo: aquela enorme imagem na parede da loja. “Eu devia ter esperado”, ela conclui e, por mais uns cinco minutos, o vídeo se passa com Moon variando entre o uniforme da Red Phoenix e o da seleção de Alter. Crista percebe uma mudança súbita no estilo dela entre seu tempo na Nizihato e na Red Phoenix: de repente, parece mais lenta. Não há mais tantos dribles e os que tem já não são tão espetaculares. Daquele ponto em diante, o vídeo foca-se mais em passes bonitos, gols, cobranças de falta. Tem até um gol olímpico, mas os dribles são cada vez mais raros e menos ousados, ainda que seu domínio de bola ainda seja fenomenal. Conforme os clipes passam, mais Crista nota uma tendência da sua treinadora de correr cada vez menos e, quando corre, parece cada vez mais travada. Ela mal parece dobrar os joelhos em alguns momentos.

No minuto final do vídeo, ela troca de uniforme mais uma vez, para o laranja das Royal Foxes. Nesse ponto, os vídeos já parecem bem mais modernos. Crista diria que poderiam facilmente ter sido gravados há alguns poucos anos.

A última cena do vídeo é uma Kaan’uh Moon, talvez perto dos 40 anos, exibindo uma camisa branca e amarela da seleção alteriana ao público, uma câmera dramática dando uma vista debaixo para ela. Aos poucos, a música se torna mais baixa e é substituída pelos intensos aplausos da plateia. O vídeo corta rapidamente para uma tela preta onde se lê “thank you for everything, Witch of Nizihato!” e o vídeo acaba.

– Why she stop dribbling? – pergunta Crista, com um quê de decepção.

– Ah… é complicado – Carmen estaciona o carro. Elas acabam de chegar em casa – ela teve uma contusão muito grave que nunca foi completamente resolvida. As Nizihato Witches não tinham estrutura para cuidar da lesão dela, o que piorou cada vez mais a sua condição ao longo dos meses. No fim, ela forçou sua saída do time pra ir pra Red Phoenix, que tinha uma estrutura médica melhor, mas o estrago já estava feito.

Crista não entende completamente o que foi dito, mas compreende o sentido.

Naquela noite, Crista recebe uma notificação de match do tinder. Mesmo sem muito interesse por ter encontrado Melina ela decide checar a notificação, sem realmente muito ânimo de ir conversar com seja lá quem for, mas é surpreendida por quem deu like de volta: uma certa garota baixinha de cabelos com mechas vermelhas e o nome Luminosa Astella debaixo da foto. Não apenas isso, também há uma mensagem.

Lumia

hey hot stuff

didn’t we met somewhere?? ;*

Crista copia a mensagem para o google tradutor. “Ei coisa quente, não nos encontramos em algum lugar?”, ela lê da mensagem e ri. Logo digita uma resposta, a qual espera que o google tradutor não vá bagunçar. Não vendo nenhuma resposta sendo digitada tão cedo, Crista guarda o celular e se deita para dormir.

O resto da semana é uma das melhores da vida de Crista desde que ela chegou em Calisto City, graças à companhia de Melina e à amizade recém-iniciada com Lumia. Apesar da dificuldade em se comunicarem pessoalmente, o google tradutor ajudara Crista a ver que a lateral tem um senso de humor afiado e sarcástico e é cheia das piadas sexuais – exatamente o tipo que Crista adora.

– Ágata Cristina? – o professor Stergios chama.

– Crista! – ela corrige, se levantando do fundo da sala para ir receber sua prova. Seu professor de inglês é um homem pequeno, não muito mais alto que ela, de ombros largos, barbicha loira e cara de quem seria uma ótima companhia num bar. Crista duvida que ele seja muito mais velho do que ela. O rapaz sorri:

– Parabéns, mandou bem.

Em caneta vermelha no topo da folha, sua nota é informada: 9,5. Ela fica ali, de pé à frente do professor, embasbacada, encarando a boa nota no papel que fora tão rara em seus tempos de ensino fundamental e médio.

– Pera lá, que que eu errei?! – ela se pergunta e começa a conferir as perguntas uma a uma. Se trata de uma prova com vários conceitos básicos de inglês e, no final, um texto a interpretar. Crista se lembra de como ficou quase até o tempo limite tentando decodificar aquele texto na aula anterior e é justamente nas perguntas relacionadas ao mesmo que ela encontra o erro. Suspirando num misto de orgulho e frustração, ela pensa “vou revisar em casa depois”, volta ao seu lugar, guarda a prova na pasta e se prepara para começar a aula.

No final daquela aula, se encontra com aquele garoto chamado Jay e os amigos dele naquele mesmo bar da faculdade onde haviam se conhecido, mas dessa vez, Lumia, Aglaia e Isolde não estão presentes: o programa do dia é justamente assistir ao jogo delas contra as Nizihato Witches.

– Opa, e aí rapaziada.

– E aí, chuchuzinho – Indigo é ê primeire a cumprimentá-la.

– Cristy! – Jay se levanta e a abraça todo sorridente antes que Crista possa recusar.

Ao ser solta por Jay, ela manda um oizinho aos outros integrantes da mesa e se senta ao lado do rapaz, já enfiando a mão na bandeja de batatinhas fritas no centro da mesa e olhando pra tela. A câmera foca no trio de arbitragem no centro do campo e logo troca para uma tela mostrando a escalação das Nizihato Witches – “o ex-time da treinadora Moon”, pensa a garota. Crista reconhece o nome na mesma posição que ela mesma estaria: “Asta”, a mulher que carrega a braçadeira de capitã de Alter, ao menos na versão de FIFA que Carmen tem em casa. Sorri de um jeito um tanto sarcástico, doida para ver o que a grande capitã da seleção alteriana será capaz de fazer contra Aglaia, a gringa mais grudenta que ela já conheceu na vida.

Quando os narradores terminam de listar a escalação de ambas as equipes, a câmera se foca numa atleta alta, na casa dos 30 anos, de pele branca e densos cabelos presos num grande coque, abaixo dela uma faixa com seu nome e número de camisa aparecem escritos, junto com algumas outras informações: 10, Asta Faber, 8 gols na temporada, mas o que realmente chama a atenção de Crista é o total péssimo gosto de seja lá quem for o responsável pelo design do uniforme dessa equipe.

A camisa é roxa e rosa com detalhes amarelos e, mais do que isso, ela possui grandes desenhos de estrelas na parte da frente e nas laterais. Estrelas. Enormes, misturando as três cores da camisa, com partes delas continuando nos horrorosos shorts cor-de-rosa da equipe. Boquiaberta, Crista pensa “mas que porra se passa na cabeça dos designers desse país?!”, considerando que talvez o uniforme das Royal Foxes não seja tão ruim assim. Se vê até considerando aquele uniforme dos anos 80 das Nizihato Witches incrivelmente bonito, comparado com esse. Silenciosamente, agradece aos céus por ter sido contratada por uma das poucas equipes cujo os designers tinham alguma ideia do que estavam fazendo. “Minha santa virgem maria, essa é a coisa mais horrorosa que eu já vi”, ela repete para si mesma, ainda estupefata. “Que vício é esse que os alterianos têm com nomes esquisitos, uniformes feios e cores extravagantes?”, se pergunta.

Pelo canto dos olhos ela observa seus colegas de mesa. Nenhum deles parece nem um pouco chocado com essa coisa esquisita que as Nizihato Witches chamam de “roupa”. “Nota mental”, diz-se Crista, “nunca assinar contrato com time nenhum sem antes checar como é o uniforme deles”.

Quando a partida começa, as Nizihato Witches logo tomam a iniciativa, algo que aflige Crista a princípio, mas ela percebe o quanto a defesa das Royal Foxes é organizada. Não era tão fácil assim de ver isso no campo, mas numa vista aérea, com câmeras da televisão, ela percebe como as defensoras se movem como um, mantendo uma linha de 4 e fechando os espaços, enquanto Aglaia, mais à frente das defensoras, mantém pressão sobre a estrela adversária, Asta. As Nizihato Witches tentam avançar sem sua estrela, completamente anulada pela loirinha odonto, mas sempre esbarram na organização tática das Foxes e são obrigadas a recuar.

– Want some soda? – pergunta um Jay sorridente, estendendo uma garrafa de refrigerante na cara de Crista.

– Soda? Isso aí é coca-cola, cê tá doido?

Ela aceita, embora ainda sinta falta do seu guaranázinho e pega mais umas batatinhas. Ela volta a olhar para a televisão, ainda decepcionada que Asta nem sequer apareceu no jogo e por alguma razão, Aglaia também não. “Esses narradores ao menos sabem o inferno que é lidar com essa gringa gata tatuada do caralho?”, ela se pergunta. Entende que é o tipo de trabalho silencioso ao qual raramente darão destaque, mas ainda assim. As Nizihato Witches tentam vez após vez furar o bloqueio implacável das Royal Foxes, que hoje vestem um uniforme inteiro amarelo bem claro com detalhes laranjas em vez do laranja com detalhes dourados, mas sempre veem seus espaços fechados.

– Os jogos delas costumam ser bem chatinhos mesmo – comenta Chryssa, dando de ombros.

Crista não entende, o que é ótimo. Se entendesse, teria ficado revoltada com o comentário: como alguém poderia NÃO VER o quão interessante é a defesa altamente tática das Royal Foxes? O desafio que é conseguir superar algo assim?

“E eu consegui passar por elas”, pensa a brasileira, assombrada pelo próprio feito. “Quer dizer, mais ou menos”.

O primeiro tempo já está quase acabando quando Lumia se antecipa a uma adversária, rouba a bola e dispara para o ataque. Cada vez que a vê correr, Crista se pergunta quem é mais rápida, ela ou Storm. Ambas poderiam facilmente ser corredoras dos cem metros rasos, na sua opinião. Lumia solta a bola para Aglaia no meio campo e continua disparando para o ataque feito uma bala. “É a primeira vez que ela toca na bola nesse jogo”, observa Crista, enquanto observa a loirinha limpar facilmente a marcação de Asta e lançar a bola de volta para Lumia, com uma precisão que ela honestamente não esperava. “Agora cê é boa em passe também, sra. Perfeitinha? Tem alguma coisa que cê num saiba fazer?”, ela pensa, um deboche brincalhão mascarando a admiração. Ela dá um sorrisinho bobo enquanto bebe mais um gole do seu refrigerante e observa Lumia dominar a bola na corrida, deixando a lateral adversária para trás.

– Porra, essas mina é foda – Crista fala baixinho, meio consigo mesma, se referindo a Lumia e Aglaia. Só espera nunca ter que apostar uma corrida com Lumia, ser marcada pessoalmente por Aglaia já é ruim o suficiente.

– Disse alguma coisa? – Jay pergunta, com aquele sorriso excessivamente amigável dele. Crista se pergunta se ele é realmente tão ingênuo assim ou se faz.

– The girls are great – ela traduz e revisa a frase mentalmente algumas vezes. Acha que traduziu corretamente. Fica bastante orgulhosa do seu feito.

– Elas são, não são?! – concorda Jay, e sua expressão subitamente fica mais sombria – era um inferno jogar bola com elas quando criança, elas me devoravam vivo… e eu nem gosto de futebol. Sou mais um cara das artes, sabe?

Crista não tem a menor ideia do que ele disse depois de “they are, right?!”, então apenas sorri e assente.

Enquanto isso, Lumia toca a bola para uma companheira de ataque, que toca rapidamente para outra, que toca para outra, que chuta para o gol e a bola vai pra fora. Poucos minutos depois, o juiz apita o final do primeiro tempo com 0 a 0 no placar.

– Oh, my. Vejam só a hora – Indigo Eliah anuncia dramaticamente, se levantando – desculpem minhes amigues, por não poder vos acompanhar nessa totalmente-não-tediosa atividade de encarar um televisor onde ação nenhuma acontece, mas eu tenho um ensaio agora. O que me lembra…

– Aw, você já vai, Eliah? – pergunta Jay, as irmãs se levantando atrás dele.

– Ei, podemos ir com você? Queremos ver o ensaio!

– Claro, queridas – DT dá a volta na cadeira de Jay e estende um pedacinho de papel para Crista. Ela o toma entre os dedos, sem ter entendido muito da conversa, e lê. Alguma coisa sobre uma peça de teatro numa data de maio.

– Que isso? – pergunta Crista.

– Oh, um convite para a nossa apresentação, gatinha! E claro, eu serei a estrela da noite. Você não vai querer perder isso – Indigo Eliah anuncia tode metide, apontando para si mesme caracterizade em roupas bufantes, numa posição de destaque no folheto da peça, antes de se tornar para Jay – não imagino que a jock aí e o torcedor vão querer se juntar a nós, vão?

– Eu tenho que estar aqui pelas minhas amigas, Indigo – Jay anuncia, sorridente – mas obrigado pelo convite!

– Depois nos contem como terminou o jogo! – pede Polina, animada, dando tchauzinho aos dois que restam na mesa enquanto ela, a irmã e Indigo Eliah se afastam na direção do centro de artes cênicas da faculdade.

– Parece que somos só nós dois agora, Cristy – Jay diz, acenando tchau para os outros.

E enquanto os comerciais passam, Jay conta para Crista, a princípio despretensiosamente, sobre sua infância e adolescência ao lado das duas estrelas das Royal Foxes, ambas filhas de lendas do futebol feminino alteriano: a ex-volante Rebecca Castella e a ex-meia Manali McCartner. O que a princípio era uma conversa relaxada, com Jay contando bem-humorado momentos engraçados do seu passado, logo se torna um longo monólogo onde ele descreve o quão incríveis suas amigas são.

É entediante por um lado, mas por outro, Crista gostaria de ter tido amigos sobre quem pudesse falar com tanta paixão e admiração assim. Ambas as pessoas que vêm em sua mente, dói demais lembrar sobre. Ela quer perguntar-lhe algo, mas não sabe como fazê-lo em inglês. Se contenta com ouvi-lo, tentar decodificar aquelas mensagens numa língua que aos poucos se torna menos estranha ao seu cérebro e aos seus ouvidos.

“O que você faria se elas fossem jogar num time noutro país, onde você só iria poder vê-las uma ou duas vezes no ano, no máximo?”. Ela quer evitar a outra pergunta que também retumba sua mente: “o que você faria se elas fossem para um lugar ainda mais longe do que qualquer país estrangeiro? Um lugar onde elas estão incomunicáveis, um lugar que as igrejas prometem que ainda podemos alcançá-las, falar com elas, mas nunca conseguem cumprir essa promessa?”

Ela odeia se lembrar disso ouvindo alguém falar tão afetuosamente de outras pessoas. Não quer admitir para si mesma, mas sente inveja, pois ela mesma não tem mais isso. Não se sente mais capaz de sentir uma conexão tão profunda assim por ninguém.

Aquele sentimento devastador de impotência torna a esmagar o seu coração.

– Mas já chega sobre mim, estou falando demais – Jay ri baixinho – você deve ter amigos assim no Brasil também, não tem? Como eles são?

– Não tenho muitos amigos de verdade – resmunga Crista em português, enquanto tenta traduzir a frase para o inglês em sua mente – not much true friends.

Talvez seja o tom distante e desanimado de Crista, mas Jay muda daquela postura excessivamente animada e amigável dele para uma mais… calma? Crista não sabe descrever, mas lembra ela daquela sua professora de história pouco após a morte de… Enfim. Ele assente compreensivamente e decide não pressionar. Então, torna a sorrir para a garota, dessa vez de uma forma que transmite mais confiança para Crista. Não tem aquele excesso de amizade ingênua. É algo mais maduro.

– Eu sempre fui conhecido por ser um grande amigo, sabia? – ele conta, num tom doce – se quiser conversar sobre…

Crista o encara longamente.

– Não entendi direito – ela responde, deixando Jay sem saber como reagir.

O jogo volta em seguida, dessa vez com as Royal Foxes dando a partida. “Minha caralha inexistente, essas Nizihato Witches merecem perder só pelo quão feio esse uniforme é”, pensa Crista, inconformada.

A partida continua seguindo a mesma lógica do primeiro tempo, com a defesa das Royal Foxes funcionando como um relógio, Aglaia invisível ao público e aos narradores puxando a estrela das Nizihato consigo para a sua invisibilidade no jogo, e ocasionais contra-ataques da equipe de amarelo, muitas vezes iniciados por investidas de Lumia. Por fim, aos 20 minutos do segundo tempo, uma atacante de nome Crystal com a camisa número 17 abre o placar num gol de cabeça, após escanteio e, logo em seguida, uma substituição é anunciada: a camisa 31 Isolde entra no lugar da camisa 8, Bonfire. O queixo de Jay cai.

– A ISOLDE VAI ESTREAR! – ele fica de pé dando gritinhos agudos – ai meu deus, eu não acredito que eles estão perdendo isso! Crista, você está vendo isso? É O PRIMEIRO JOGO PROFISSIONAL DA NOSSA ISOLDINHA!

– Congratulations – Crista parabeniza, achando graça na reação do rapaz.

– Crista, você também está vendo isso, não está?

– Sim.

– VAI ISOLDE! VAI MARCAR 7 GOLS HOJE! – Crista ri do amigo e não é a única. Quase todos os presentes no bar olham para Jay, alguns revirando os olhos e o julgando, mas boa parte se dvertindo com a sua animação. Crista se levanta e se junta a Jay em sua torcida, que dança com pompons imaginários – Isolde! Isolde! Isolde!

– Isolde! Isolde! – Crista acompanha ele, tentando imitar sua coreografia e se esforçando ao máximo para não cair na gargalhada.

A partida recomeça e as Royal Foxes dessa vez são as que tomam a iniciativa. Até o final do jogo, o que se vê é uma pressão constante da equipe de amarelo, a qual Crista agora percebe estar jogando numa formação diferente: em vez de Aglaia jogar como uma volante central atrás de uma linha de duas meias-centrais, com uma centroavante e duas pontas, agora há apenas uma meia à frente de Aglaia, a qual parece estar agindo mais como uma armadora do que uma meia-central, e uma das pontas da equipe fora movida para a posição de centroavante, ao passo que Isolde e a outra ponta atuam como meias abertas. De um 4-3-3 defensivo, a equipe passara a um 4-4-2 losango, com duas meias abertas, uma meia-armadora e duas centroavantes.

A poucos minutos do apito final, a pressão das Royal Foxes finalmente dá resultado: Lumia tabela com Isolde pela esquerda e recebe nas costas da lateral adversária, toca para uma companheira na entrada da área e essa por sua vez toca para a atacante, aquela mesma Crystal que abrira o placar, e ela chuta forte no canto da goleira, marcando seu segundo gol.

No recomeço da partida, as Nizihato Witches tentam partir rápido para o ataque, aproveitando-se da formação mais aberta das Royal Foxes, mas Aglaia corta o lançamento das adversárias e a bola sobra com a equipe de amarelo mais uma vez. As Royal Foxes contra-atacam, pegando as Nizihato Witches desprevenidas, e a atacante com a número 7 e o nome “Reid” nas costas faz o terceiro gol da equipe.

A partida termina em 3 a 0 e Jay comemora a estreia de sua amiga como se tivessem ganhado o campeonato. Crista acha graça nisso. Se pergunta se foi assim com a sua família quando ela mesma teve o seu primeiro jogo. Não demora muito e Jay já está ligando, dessa vez não para Aglaia ou Lumia como o de costume, mas para Isolde. Enquanto o rapaz conversa animadamente com a amiga mais nova e a parabeniza pelo jogo, Crista gesticula para ele que já está indo.

Enquanto caminha para o ônibus, não se esquece de digitar uma mensagem para Lumia: “nice game, sis”.

Os dias seguintes se passam tranquilamente, exceto pelos comentários ocasionais das garotas do time sobre o campeonato amistoso que se aproxima. Quase todas as titulares da Red Phoenix são parte regular da seleção alteriana, exceto por três garotas, uma holandesa, uma canadense e outra estadunidense, também parte das suas seleções. Até algumas das reservas defendem suas seleções. Esses comentários a fazem refletir, tristonha, quando será chamada pela seleção brasileira. Se será chamada. Desde os seus últimos meses no São José que ela ouve de suas colegas que merecia uma chance, algo que a enchia de orgulho até então, mas agora se torna uma fonte de ansiedade e frustração.

Crista passara o dia anterior observando com certa inveja enquanto Carmen preparava suas malas para viajar para Portugal, onde a Algarve Cup aconteceria. Imagina quantas vezes ela já viajou para países diferentes para representar sua seleção. Quantos jogos já jogou vestindo a camisa do seu país. Claro que só o fato de ser uma atleta profissional já é impressionante o suficiente para ela, que esperava levar o esporte como um hobby até o fim da vida, que até dois anos atrás não imaginava que algum dia teria outro time no coração além do Corinthians, que ouviria falar sobre tantas grandes atletas femininas além de Matilde, Abelha e Cristiana e até mesmo conheceria algumas pessoalmente, mas ainda assim, agora que está aqui, que sabe do que é capaz, ela anseia pelo o que vê como uma das maiores honras possíveis para uma atleta, o seu próximo grande passo – caso consiga dá-lo. Vez ou outra, se pega pensando que suas colegas de time estão exagerando suas habilidades e não é realmente boa o suficiente para a seleção. Costuma afastar rápido os pensamentos, se dizendo que o tempo dirá e que espere mais um pouquinho. É tão difícil ser paciente…

Enquanto pensa nessas coisas, ela ajuda Flora a arrumar a casa, passando pano nos móveis e os afastando para que a garota passe o aspirador. Jaylene e Carmen não estão em casa.

Seu celular toca. Crista o tira do bolso esperando ver o nome de Melina, mas em vez disso, dá com um nome que já não via há algum tempo. Crista faz um sinal de licença para Flora, que assente e pega os produtos da mão de Crista, limpando a mesa de jantar no seu lugar. Enquanto isso, a brasileira atende a ligação.

– Opa. E aí seu Serafim, bão? – seu Serafim, o empresário de Crista, é um homem de meia-idade nascido na mesma comunidade que ela, que jogava futsal profissionalmente na juventude e foi forçado a se aposentar prematuramente por conta de uma lesão. Quando Crista começou a jogar pelo São José, ele apareceu para guiá-la no mundo do futebol e, com o tempo, assumiu o papel de empresário dela.

– E aí, menina-prodígio. Escuta, eu tenho uma notícia que é, ó – ela ouve o homem dar um beijo no ar do outro lado da linha e ri baixinho – supimpa. Tá sentada?

– Tô não, seu Serafim. O que é?

– É melhor você se sentar, garota.

– Ai, tá bom. Fala logo – ela se joga no sofá, atraindo um olhar curioso de Flora.

– É o seguinte. Talvez, apenas talvez, muito talvez mesmo…

– Fala logo ô porra, tô ansiosa já.

– … eu tenha recebido um email, de uma certa organização, a seu respeito.

– Taquepariu para de fazer mistério – implora Crista.

– Menina, você foi convocada pra seleção brasileira.

– Peraí, eu o quê?

– Você foi convocada para a seleção brasileira – ele repete, e Crista consegue até ver aquele sorriso de dentes tortos do homem do outro lado da linha – e já tava na hora também, hein! Meus parabéns!

– Eu fui… – ela vê a ficha caindo em câmera lenta – CARALHOOOOO! Mano, se for pegadinha pelo amor de deus me fala agora! – a excitação de Crista atrai o olhar de Flora.

– Não é pegadinha – diz seu Serafim, rindo – eu vou mandar pra você o email com os detalhes. Você vai ir para Portugal para jogar um torneio amistoso chamado Algarve Cup. Parabéns, pirralha.

– COMO É QUE É – ela se levanta do sofá berrando – EU TÔ NA SELEÇÃO?! PUTA QUE ME PARIU, EU TÔ NA PORRA DA SELEÇÃO?!

– Parabéns, anãzinha – brinca Serafim, rindo do ataque de euforia da outra.

– PUTA QUE PARIUUU! – ela corre para Flora e a tira do chão com um abraço. A estrangeira dá um gritinho assustado de surpresa – FLORA, EU TÔ NA SELEÇÃO! CARALHO, EU TÔ NA SELEÇÃO!

Confusa, Flora dá tapinhas em suas costas, retribuindo vagamente o abraço.

– O que foi? É algo bom? Yay! – a alteriana tenta acompanhá-la em sua comemoração, mas Crista se interrompe subitamente, ao se lembrar que isso significa que terá que cancelar sua viagem de volta para o Brasil durante o recesso. Por mais que se sinta eufórica por finalmente estar na seleção, se sente quase como uma traidora por estar trocando sua família e seu bairro natal por uma camisa.

A euforia apaga esse sentimento bem rápido. O sentimento de realização gradual de que é uma das melhores jogadoras do Brasil a assombra.

– CHUPA MINHA BUCETA, MUNDO!

 



====NOTAS FINAIS

sim, a Crista está no espectro arromântico. 

 



Notas:



O que achou deste história?

2 Respostas para 10. Dia de pioneirismos

  1. Moça,

    O desânimo sempre bate à porta de quem escreve, mas se a gente se deixar levar por ele, nunca concluiremos uma história. Eu escrevo para mim, apenas. Compartilho pelo prazer de dividir as ideias. Enfim, essa sou eu, não quer dizer que seja o mesmo contigo.

    Espero que esse momento passe logo. Curtindo tua história e a pegada leve dela.

    Te desejo uma boa recuperação.

    Abraços!

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.