Escolhas

Escolhas – Segunda Parte

PARTE FINAL

Marina, por uma semana, não viu mais Valquiria. Observava sempre pela janela. Tudo apagado, janelas fechadas. Até que um dia ao chegar e olhar, tudo estava aceso, janelas abertas. Não pensou. Correu. Quando a porta se abriu, assustou-se.

– Boa noite! Desculpe, mas quem é você? – Marina questionou.

– Quem quer saber? – A outra perguntou.

– Sou a vizinha…

– Você deve ser Marina.

– Me conhece?

– Só de ouvir falar. – A mulher respondeu.

– Onde está Valquiria?

– Por ordem. Eu sou Solange, a irmã. Estou tomando conta do apartamento e das coisas mensais, até que ela volte.

– Volte? De onde?

– De algum lugar da África. Estará lá por um ano, com uma missão de saúde, num desses países cheio de problemas onde a OMS está sempre ajudando. – Solange respondeu.

– Um ano?

Marina sentiu-se perdida, muito pesada para seus joelhos. Solange a tratava rispidamente, com desprezo mesmo. Olhou-a e percebeu o estado que ela ficara. Sentiu pena, ao vê-la apoiar-se.

– Ela não podia! – Marina reclamou.

– Tanto podia, que fez. – Solange cuspiu a resposta.

– Por que não me disse?

– Por que ela diria? Lá, ela vai estar bem ocupada, sem tempo para pensar em você, que não é capaz de gostar dela. – A mulher disse rispidamente.

– Não sou capaz?

– Pelo menos uma vez, você disse isto a ela? – Indagou Solange à Marina. 

– Não.

– Olhe! Agora você vai ter que sair, eu já ia fechar tudo. Vou passar sempre por aqui, se quiser conversar um outro dia. – A outra despachou.

– Obrigada. Boa noite. – Marina se despediu.

Dali em diante, sempre que possível, quando Solange vinha, Marina ia até lá conversar. Perguntava sobre Valquiria, desde a infância, seus gostos, tudo. Ajudava-a, para tocar nas coisas e lembrar. Às vezes chorava. Meses depois Solange perguntou.

– Se a ama do jeito que demonstra, por que não ficou com ela?

– Não fui criada pra isso e sim para “honrar e dar continuidade ao nome da família”. Minha mãe é cheia de preconceitos, por isso perdeu meu pai. Mas, continuam na mesma casa para manter as aparências diante da sociedade. Ele já teve outras, acho até que tem alguém mais importante que minha mãe em sua vida. Dá força aos filhos, porém não quer brigar pela felicidade dele. Talvez eu seja como ele: uma covarde. – Lamentou Marina e continuou…

– Um mês depois dela ter ido embora, se eu soubesse onde ela estava, eu teria ido pra lá. Nunca tinha sentido tanta solidão, nem tanta falta de alguém, mas se ela estivesse aqui e eu estivesse vendo-a, conversando, será que eu teria tomado uma atitude? – Marina continuou a falar. – Não sei. Ela é a pessoa mais gentil, mais terna que conheci. A voz dela tem uma suavidade ímpar. Você já viu como seus olhos sorriem antes de tudo, quando se alegra? Antes mesmo do rosto, porque ela faz tudo intensamente, com todo o corpo, mas os olhos demonstram primeiro e …Desculpe. – Parou.

– Não se preocupe, só estava ouvindo. Você já viu como fica quando fala dela? Você brilha. É interessante. – Solange observou.

Marina, às vezes, saía com Solange. Ficaram amigas. O que não sabia, era que toda a família tinha conhecimento sobre o que conversavam, menos Valquíria, é claro. Tentou fazer novos amigos, sair um pouco mais. Alguns dos homens tentavam cantá-la. Até deixou um beijá-la e teve certeza que não queria nenhum homem em sua vida. Não tinha o sabor da boca de Valquiria. Saía com Simone e Claudia, pois podia falar abertamente com elas. Num certo bar, até foi dançar com algumas mulheres. Beijou uma, todavia não tinha a mesma textura, a mesma despreocupação, a mesma espontaneidade.

– Daí beijei uma garota linda. – Marina contou.

– Sério. Foi igual?

– Nem de longe. Sabe, Solange, acho que descobri porque sempre faltava algo pra eu ser feliz num relacionamento. Sou mulher de uma pessoa só. Da pessoa por quem sentisse todo o amor possível de se sentir. Aquela especial, de toque divino. E eu a deixei ir embora. – Lamentou Marina.

– Fica fria. Tenho que passar na casa de minha mãe, antes de irmos para o cinema, se importa? – Solange perguntou.

– Não, mas não íamos jantar?

– A gente come alguma coisa, é rápido. Só vou deixar os resultados dos exames que peguei. Amanhã cedo ela vai ao médico para levá-los. 

– Ela está bem? – Marina quis saber.

– Está. É rotina.

Ao chegarem à casa, Solange desceu e trancou a porta do carro.

– Vamos!

– Não, eu espero aqui. – Marina se envergonhou.

– Deixe de frescura. Vem. – Solange convidou.

Entraram. Havia um dos irmãos na sala. A mãe estava na cozinha.

– Oi, Pedro. Ce tá bom? – Solange cumprimentou.

– Tranqüilo.

– Esta é Mari, uma amiga minha. – apresentou

– E aí, tudo bem? Sente-se.

– Tudo, obrigada. – Marina respondeu acanhada.

– Mãe, teus exames para amanhã estão aqui. Beijinho. Estamos indo, vamos jantar e depois cinema. Qualquer coisa me liga. Esta é Mari.

Tinha ido até a cozinha e dona Laura voltara com ela.

– Como vão jantar? Gastar à toa pra quê? Tem comida suficiente. Jantem primeiro. – A senhora ponderou.

– Mas mãe…

– Sem discussão. Arrume a mesa. Pedro vê se a moça quer alguma coisa. – Dona Laura ordenou.

Marina ficou sem graça. Não tinha o hábito de comer na casa de alguém, principalmente na primeira vez. Ainda mais depois que Solange lhe contara que a família a odiava, por ter deixado Valquiria ir embora.

– Não quero nada, obrigada.

– Vem ver as fotos dos meus filhos e netos. Vem cá. – A senhora chamou Marina.

Havia um móvel e em cima dele várias fotos de adultos e crianças, emolduradas. Olhava distraidamente. Cinco eram de crianças.

– Belas crianças. Todos são seus netos? – Marina indagou.

– Todos.

Então viu a foto dela. Estava sorrindo, curvada, com os braços abertos como aguardando alguém entre eles. Marina deixou de ver as outras fotos, seus olhos marejaram, sua mão se estendeu e pegou o porta-retrato. A outra mão automaticamente acariciava a foto. Piscou e as lágrimas desceram.

– É ela; não é, Solange?

– É, mãe. Acho melhor a gente ir. Marina!

Voltou à realidade. Olhou para a senhora. Estendeu o braço para entregar-lhe o retrato.

– Desculpe. Vamos, Solange. – Marina tentou sair.

– É, você tem razão. Ela ama sua irmã pra valer. Quiqui se precipitou em nos deixar, mesmo. Sentem-se pra jantar. – Dona Laura comentou.

– Eu sei que a senhora não gosta de mim, eu entendo. Portanto é melhor a gente ir.

– Eu não gostava, no começo, mas depois de tudo que tem conversado com Solange, e a gente sabe que tu gosta de Quiqui e que tem sofrido com a falta dela. Agora, não discuta e sente-se. – A matriarca praticamente ordenou.

– Solange, você podia ter me dito que tua família não me odiava mais. E agora? Você armou pra mim? – Marina reclamou.

– Não, eu juro.

Durante o jantar, conversaram bastante. Logo Marina estava à vontade. Só sentia por sua família não ser assim. Perderam a hora pro cinema. Solange levou-a para casa. Soube que Quiqui, era como Pedro a chamava quando pequenos.

– Não quer mesmo que eu fale com Valquiria, quando ela ligar? – Solange se compadeceu.

– Não, não quero. Prefiro que ela resolva um dia se quer falar comigo.

– Ela não sabe o que você sente. – A amiga insistiu.

– Ela não sabe que decisão eu tomaria agora, mas o que eu sinto, ela sempre soube. – Marina respondeu.

– Você é que sabe.

Algum tempo depois, Solange ligou no escritório, coisa que não costumava fazer. Era uma quinta-feira.

– O que foi, algum problema? – Marina se preocupou.

– Tá na hora de você fazer alguma coisa. Valquiria ligou, como já ultrapassou dez meses e já vai acabar seu tempo de contrato, tem que optar, se fica ou volta. Está pensando em mais um ano.

Houve um breve silêncio. 

-Marina, você está aí? – Solange perguntou.

– Não vou aguentar, Solange. Vou pensar. Obrigada. 

No sábado foi almoçar com sua família. Observou-os. Tudo muito educado e muito vazio. Conversara com seu pai e confirmara que ele realmente, há alguns anos, tinha outra mulher e que tinha uma filha de 10 anos com ela. Marina era a única da família que sabia e que as conhecera. Gostava muito da menina, e simpatizava com a mulher, que realmente amava seu pai. Sua mãe vivia em um mundo à parte. Os irmãos, um casal, só se interessavam por coisas que lhes dessem prazer ou lucro. O irmão estava no segundo casamento; a irmã, divorciada, tinha seus namorados. Dois filhos cada. Não estavam presentes. Resolveu dar um basta em tanta frivolidade.

– Sabe, mãe! Você sempre nos pregou a importância da família, do casamento, do bom partido. Sempre “arranjou” namorados à altura para seus filhos e olhe só, nenhum está realizado emocionalmente, nenhum é feliz. – Disparou. – Baseada nas suas idéias, esperei o homem perfeito, que me faria feliz, seria perfeito na cama e cheguei a pensar que era frígida, nas poucas vezes que fui pra cama com alguém. – Marina confessou.

Após tomar um ar, continuou:

-Aí conheci alguém especialíssimo. Alguém cujos olhos sorriam assim que me via, só por estar me vendo. Alguém gentil, que faria qualquer coisa só pra me ver sorrir, me sentir bem, sem cobranças. Alguém que é insuportável não ver, que dói demais sua ausência. Alguém que faz meu sexo doer e querer ser tocado, num simples afagar. 

A voz de Marina tentava se manter firme para cumprir o propósito:

– Seu simples tom de voz, deixa claro se quer algo mais que uma conversa. Que tem gestos mansos, é inteligente, capaz. E eu tive medo do que você ia pensar, do que podia dizer. Tive vergonha dela não estar à altura dos seus delírios e, por covardia, a deixei ir. Simplesmente por ser mulher.

– O quê? Uma mulher? Você ficou louca? Nem em sonho. Filho meu é normal, não é nenhum depravado ou louco.

– Pare, Isabel. Ela tem razão. Faz tempo que não somos uma família. Sabia que ela estava sofrendo, que não estava bem e não tomei uma atitude digna de um pai. Nossos filhos estão infelizes, nós estamos infelizes. Está na hora de colocarmos a locomotiva, e todos nós seguirmos, nos trilhos adequados a cada um.

– Que barato! Irmãzinha, você é gay e assumiu isto no templo da hipocrisia. Parabéns. Seja feliz. – O irmão se divertiu.

– Vocês beberam demais, foi isso? – A mãe estava indignada.

– Não, mãe, eu não bebo, lembra-se? Eu vou indo. Boa tarde a todos. – Marina se levantou.

Saiu. Seu estômago não aguentava mais tanta falsidade. Assim que entrou em casa, apanhou o telefone e discou o número telefone de Valquiria.

– Oi. Sou eu. Sua irmã disse que você pretende ficar mais um ano por aí, não sei onde. Se me esquartejassem viva, seria uma morte menos dolorida. Tua falta me mata aos poucos, todos os dias. Mais um ano e não restará mais nada de mim.  – Marina confessou num fôlego só.

Não deixou Valquíria falar e continuou:

– Durmo pouco, choro muito, como pouco, te sonho muito, mesmo acordada. Se vou a algum lugar que já estive com você, fico lembrando, se não estive lá com você, fico imaginando como seria. Filmes, músicas. Tudo me faz pensar em você. Desculpe. Não! Perdoe minha covardia. Tudo o que tenho de palpável de você comigo, é uma foto que tua mãe me deu e aquela almofada que sempre segurava enquanto falava. 

Respirou fundo para poder finalizar a fala:

-Durmo com elas, o pouco que consigo. Preciso te ver, te ouvir. Fala comigo, nem que for pra dizer adeus, ou se ainda sente algo por mim, volta. Valquíria, eu te amo, como nunca pensei que fosse possível.

Solange veio cuidar do apartamento e como sempre foi ouvir os recados. Chorou e desta vez, não apagou. Ligou para a África.

– Oi, maninha! 

– Solange? Aconteceu alguma coisa?

– Não. Eu sei que não é dia de ligar, mas tenho uma amiga, muito querida pela família e…Você já fez a opção?

– Não. Ainda tenho uma semana para dar a resposta.

– Então essa minha amiga, ligou pra tua casa e deixou uma mensagem muito importante. Antes de tomar uma decisão, gostaria que a ouvisse. Pode ser? Por favor. – A irmã pediu.

– Tá bom. Hoje à noite eu vou ouvi-la. – Valquíria respondeu.

– Obrigada. Beijos.

Por volta das 22:00 h, o telefone de Solange tocou.

– Alô!

– Então enquanto eu me mato de trabalhar, você fica de fofoquinha e amizade com meus desafetos. – Valquíria estava possessa.

– Pois é. Ouviu tudo? 

– Você a levou na casa da mamãe? – A enfermeira questionou a irmã.

– Levei. Depois de ouvir cada coisa a teu respeito! Se eu gostasse de mulher, eu teria me apaixonado. Quando você voltar, te conto tudo. E aí?

– Solange?

– Fala.

– Obrigada. Você deixou ela levar minha almofada! 

– Você está chorando? – Solange quis saber.

– Obrigada. Tchau. – Valquíria se despediu rapidamente.

Quando Solange, na outra semana, veio ao apartamento, Marina foi vê-la.

– Ela já escolheu?

– Agora não nos diz mais nada.

– Ela liga aqui pra ver os recados? – Marina estava curiosa.

– Não sei. Acho que não.

Quase dois meses depois, Solange recebeu um telefonema, cedo.

– Pode me pegar no aeroporto?

– Quando? 

– Às 15:30 h. estarei chegando.

– Aviso alguém? – Solange perguntou.

– Ninguém, por favor.

– Estarei lá. – a irmã prometeu.

Chegou. Foi para a casa da mãe, conversaram um pouco, prometeu voltar no dia seguinte e foi pra casa. Tomou banho e saiu.

Marina havia acabado de sair do banho quando tocaram a campainha. Pensou ser a vizinha, já que o porteiro não avisou. Colocou o roupão e foi abrir a porta. Assustou-se. Deu alguns passos para trás, o coração lhe parecia, querer sair pela boca, queria rir e chorar ao mesmo tempo. De repente ficou muito pesada para os joelhos, que começaram a fraquejar. Valquiria entrou, fechou a porta e segurou-a. Marina passou as mãos em seu rosto.

– Seus olhos …estão…sorrindo.

Valquiria ajudou-a a chegar no sofá. Tirou o vestido que vestia, sem mais nada. Abriu o roupão de Marina e olhou-a demoradamente.

– Você emagreceu, mas continua linda pra mim.

Beijaram-se, suavemente a princípio, depois com sofreguidão. Foram para o quarto. Antes de chegarem na cama, Marina foi segura pelos ombros, mãos seguraram seu roupão e o tiraram lentamente. Foi abraçada por trás, ao dissolver o abraço, mãos percorreram seu corpo, pela frente, enquanto corpo e boca o percorriam por trás, explorando, conferindo. Sentiu-se livre, em pleno vôo. Virou-se e colou-se inteira naquele corpo amado. Caíram na cama, sem interromper as carícias. Mãos percorrendo todos os poros. Línguas beijando, lambendo, entrando. Enquanto a língua ia entre os pelos, da frente para trás e voltava, sugando as coxas, dedos cuidavam daquela cavidade misteriosa, num frenético ir e vir e quando voltavam para o restante do corpo, a reciprocidade em seu próprio corpo, era altamente retribuída.

Horas depois, Marina estava deitada sobre o corpo de Valquiria, ambas completas naquele vazio repleto de prazer, naquele isolamento completo do mundo, que só os verdadeiros amantes conhecem.

– Acho que você gosta desta posição. – Valquíria divagou

– Estou pesada? – Marina perguntou

– Tanto quanto devia pesar. – Valquíria respondeu.

Abraçou-a.

– Só quis dizer que você gosta de ficar assim, não que deveria sair. Sonhei tantas vezes com esta situação. Que saudade! – Valquíria disse.

– Quem inventou esta palavra, estava inspirado. Muita coisa já foi dita a seu respeito, do quão sofrida ela pode ser, porém ninguém, nunca conseguiu descrevê-la à altura. A gente realmente pode morrer de saudade, se souber que não haverá volta, sabia? Nunca mais faça isso comigo. Não me abandone de novo. – Marina a encarou.

– Nunca mais.

– Não queria você nessa cama. Se soubesse que viria, teria trocado. Pensei em fazer isto várias vezes, entretanto não tinha motivo real.

– A privacidade? – Valquíria questionou.

– Não. Não trazia namorados para casa por privacidade. Toda a mobília aqui foi minha mãe que escolheu, lembra? Eu te disse que veio assim como está, não tem nada de mim nesta casa, ao contrário da sua, que é inteira você. Entendeu?

– Entendi. Durma um pouco que você tem que trabalhar. Amanhã é quinta-feira, moça. Acho que estou com fome. – Valquíria disse.

– Você viajou sem parar, sem descanso decente, deve estar exausta. Vem, vamos comer alguma coisa, depois, dormir. – Marina chamou.

– Enquanto você prepara o que comer, troco os lençóis. Onde estão?

Apanhou dois lençóis enquanto Valquiria tirava os da cama. Colocaram rapidamente e foram pra cozinha. Marina ia colocar o roupão.

– Não coloque não. Deixa eu te rememorizar.

Comeram salada e torradas e foram dormir. Parecia que tinha acabado de fechar os olhos e o relógio acordou-a com música. Desligou-o rápido para não acordar Valquiria, mas ao soltar sua mão e esta deslizar por seu seio, soube que ela acordara.

– Bom dia. Vou deixar uma chave em cima da mesa da cozinha. Durma bem.

– Vem dar beijinho antes de sair? – Valquíria pediu 

– Venho.

Voltou para se despedir. Ficou ali parada, olhando-a dormir por uns instantes.

– Que foi?

– Nada. Só vim dizer até mais tarde. – Marina completou. 

– Hummm…

– Não perguntou o que eu decidi. Já sabe?

– Se não tivesse se decidido, não me deixaria aquela mensagem. – Valquíria respondeu.

– Verificava sempre?

– Nunca. Solange pediu pra eu ouvir a mensagem, que uma amiga dela deixara pra mim. – A enfermeira explicou.

– Tenho que agradecê-la. Tchau.

– Tenha um bom dia. Posso te ligar? – Valquíria pediu.

– Sempre.

Pelas 14:00 h ligou.

– Atrapalho?

– Nunca. – Marina disse.

– Hum, hum! Sempre, nunca. Que progresso!

– Você provocou isso. – A advogada argumentou.

– É gostoso de ouvir, dito assim num tom tão suave. Estou indo conversar com mamãe. Você me apanha lá ou espera em casa?

– Te apanho lá. Valquiria!

– Oi.

– Nada. – Marina se conteve.

– Eu sei. Cada célula minha sente o mesmo. Beijos.

O pai de Marina veio à sua sala para conversar um pouco.

– Filha, você me deu o que pensar naquele almoço. Criei vergonha. Resolvi ser feliz e saí de casa. Fui para um lar, um lugar onde você e seja lá quem for que você goste, serão bem-vindas. Sua mãe marcou um jantar “em família” para sábado às 19:00 h, para contar aos filhos. Vai poder ir?

– Parabéns, pai. Fico contente por vocês três. Quando for ver minha irmãzinha, vou levar alguém. Ela voltou, pai.

– Por isso você está tão diferente hoje!

– É. Estou feliz. No sábado, aproveito para informar dona Helô.

– Estarei ao seu lado, filha.

Por volta das 18: 15h, chegou à casa de dona Laura. Assim que entrou, sentiu o clima festivo, toda a família estava lá. A matriarca abraçou-a. Estava feliz da vida.

– Oi, filha. Obrigada por trazê-la de volta.

Aproximou-se de Valquiria, beijou-a no rosto, sentindo uma ternura imensa. Valquiria fez com que se sentasse ao seu lado e ficou segurando-lhe a mão, bem à vontade. Uns minutos depois, deixou de se preocupar, percebeu que a única que se importava era ela. Sorriu e resolveu curtir. Afinal, era a primeira vez que estavam juntas ali.

Voltaram para casa, tarde da noite e mesmo assim sob protesto, prometendo retornar no final de semana. No caminho de volta, contou-lhe sobre o jantar de sábado.

– Quer que eu vá junto? – Valquíria queria dar seu apoio.

– De jeito nenhum. Não se leva pássaro à jaula de cobra. Jamais a exporia de tal forma e eu vou voltar logo. Não é jantar como na casa de dona Laura. Fica comigo hoje? – Marina pediu.

– Não prefere ficar em casa?

– Prefiro, contudo tenho que trabalhar amanhã cedo.

– Então, ficamos lá. – Valquíria decidiu.

Acordou de madrugada agitada, sonhou que estava só, estava chorando. Foi abraçada fortemente.

– Durma. Não vou a lugar nenhum.

Aconchegou-se e dormiu até ser acordada pelo relógio.

Passaram a manhã de sábado juntas. Tomaram café na padaria, com pão quente.

– Vim aqui algumas vezes, durante este ano. – Marina contou.

– Tomar este café?

– É, mas perdeu o sabor enquanto você não estava, só estava na lembrança. Hoje voltou a ter um sabor delicioso. – Marina completou.

À noite, Valquíria foi pra casa da mãe e Marina foi ao malfadado jantar. Tentaria com o pai, pegar uns dias de férias, pois Valquíria a partir de segunda-feira, teria um mês para descansar, antes de voltar a trabalhar no hospital. Falou com ele antes do jantar. Concordou de imediato. Ao sentarem-se à mesa, ele começou a falar.

– Acho que vocês não conhecem bem seus antepassados, crianças. Sabem que tudo é hereditário, precisam conhecer bem o passado, para se prepararem para eventualidades. Sabem sua tia-avó Carlota?

– A professora que vivia com outra professora? – Perguntou Lídia.

– Essa mesmo, filha. Pois é, literalmente viviam juntas. Apesar de todas as pressões e terem que manter a maior discrição, conseguiram ser felizes. Quando minha tia faleceu, a outra não ficou muito tempo viva. Viveram juntas por 42 anos.

– Isso é lindo, pai. Enfrentar o mundo por tanto tempo, numa época daquela! – Marina deu suporte à fala do pai.

– Deve ter esses casos bem antes nas famílias, homens e mulheres.

– Na minha não. – A mãe foi impositiva.

– Escondiam, isso sim! – O pai exclamou.

– Por que veio com essa conversa? O assunto aqui é outro. Esse jantar é para informar nossos filhos que você saiu de casa. – A matriarca cortou.

– Há tempos eu não “estou” nesta casa. Crianças, estamos nos divorciando. Eu resolvi ser feliz com quem gosta de mim e não ser mais um faz de conta.

– Até que enfim, meu velho. – O filho disse.

– Bom pra você, pai. Só espero que não se afaste da gente agora. – Lídia completou.

– Não, vocês sempre serão meus filhos.

– Não vai dizer nada, Marina?

– O que, mãe? Que ele deveria ter feito isso antes?

– Pelo jeito, ninguém está do meu lado. – A mãe reclamou.

– Helô, não há lados nisso. Todos somos adultos, só acabamos com uma farsa. – O pai falou.

– Bom, antes que comece a discussão e esse jantar faça mal a todos, vou dizer uma coisa, mãe. Lembra-se do que falei outro dia? Pois é. Ela voltou e vou estar pelo resto da minha vida com ela. – Marina se adiantou.

– Só por cima do meu cadáver. Naquele apartamento, não vai entrar vagabunda nenhuma.

– Helô, nós demos pra ela. Ela faz o que quiser. – O pai interveio.

– Não. É nosso, é patrimônio da família, até os móveis. Era para ela morar, só ficaria com ele se casasse com alguém à nossa altura.

– Por favor, pai. Não discuta, eu saio. Nunca senti que era minha casa.

– E pode procurar um emprego também.

– Aí, não. O escritório é um problema meu. Lá, você não se mete. Principalmente se quiser uma pensão no divórcio, já que os filhos são todos adultos.

– Obrigada, pai. Até segunda. Maninhos, tchau.

– Quando vou conhecê-la? – A irmã indagou.

– Se for com respeito, quando quiser, Lídia.

– Também estou indo. Boa noite, crianças. Vou comer onde não me faça mal. – O pai se despediu

O telefone de dona Laura tocou. Atenderam.

– Quiqui é pra você. Parece que o jantar já acabou. – Pedro informou.

– Oi, amor. Tá tudo bem?

– Ótimo. Só tem um probleminha. – Marina disse.

– Qual?

– Pode me alojar por uns tempos? Só até eu me organizar. Dona Helô cessou o empréstimo do apartamento. 

– Vem pra cá e amanhã a gente faz a mudança, com uma condição. – Valquíria disse.

– Qual? Dividiremos as despesas, é claro.

– É claro. Você consegue dormir bem, longe de mim? 

– Não mais. – Marina afirmou.

– Então, a condição é esta. Cafuné as noites, pelo resto de nossas vidas, pra eu dormir. E nada de se organizar fora de casa. – Valquíria colocou.

Na segunda-feira, após o trabalho, foi até a casa da mãe para entregar-lhe as chaves do apto e as contas pagas do mês.

– Se fizer isto, não precisa voltar aqui. Não terei mais você como filha. – Dona Heloísa afirmou.

– Eu já fiz. Tem mãe melhor que você por aí. E eu estou indo pra casa finalmente. Adeus, dona Helô. Querer ou não ter filhos, é uma escolha sua. Que tipo de filho, é escolha dele. 

Decidida, Marina saiu em direção à sua felicidade junto a Valquiria…

 FIM.



Notas:



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