PRIMEIRA PARTE
Em São Paulo a correria é constante. Valquiria chegou em casa estafada. Enfermeira, dera um plantão noturno na UTI do hospital, substituindo férias. Seu horário normal é de dia, mas algum dinheiro extra sempre cai bem. Depois do serviço, acompanhara sua mãe viúva, ao médico e só agora, na hora do almoço, entrava em seu apto.
Trabalhara muito na vida, ela e toda a família. Desde os 13 anos, já trabalhava como doméstica, babá, vendedora, em balcão de lanchonete, auxiliar de enfermagem, guardando cada centavo para pagar os estudos, até completar a faculdade. Depois, de dia em hospital, à noite acompanhando senhoras em casas, para poder ter “seu canto”. Finalmente estava tudo pago. Aos 34 anos era uma excelente profissional. Seus três irmãos conseguiram da mesma forma, com muito esforço. Já morava ali há cinco anos e, há dois, estava livre de dívidas. Agora guardava para viagens de férias. Olhou pela janela, pensando em fechar a cortina da sala para dormir e do outro lado da rua, viu alguém nua, com a janela do quarto aberta, exatamente na direção de sua sala. Nunca vira ninguém ali antes, talvez por seus horários.
Marina, desde que se formara em Direito, trabalhava com o pai, advogado conceituado, conhecido e caro. Ela especializara-se em Direito Trabalhista e ganhara já vários casos, era bem conhecida no meio e o pai gostava de tê-la trabalhando com ele. Aos 32 anos, podia-se dizer que escolhera o caminho certo. Quando se formara, os pais prometeram-lhe um apto, mas seguraram-na ao máximo em casa e finalmente, há cerca de 3 anos, morava em seu próprio lar, embora já viesse embalado, isto é, ganhara-o já mobiliado e decorado. Sempre pensava em mudá-lo, mas vivia adiando para não magoar a mãe.
Naquele dia houve um incidente. O neto do sócio do pai viera ao escritório visitá-lo e em uma curva nos corredores entre as salas, trombara em suas pernas, sujando e manchando sua roupa com o lanche que segurava, um festival de maionese, ketchup e mostarda. Como tinha audiência às 16:00 h, aproveitara a hora do almoço para vir se trocar e, como estava calor, também para um banho, mas na pressa esqueceu-se da janela, normalmente só estaria em casa naquele horário em finais de semanas. Quando saía pela manhã, deixava as janelas abertas e quando chegava, quase noite, fechava-as. Afinal morava no 7º andar. Escolhia a roupa que ia usar, quando percebeu, aí colocou de imediato o roupão e foi fechar a janela.
Do outro lado, Valquiria percebeu que não era exibicionismo, mas distração e pensou se alguém mais teria visto. Foi dormir.
Apesar de seu sucesso, Marina não era feliz. Às vezes achava-se ingrata com o destino. Gostava do que fazia e fazia-o bem. Tinha um belo namorado, tivera outros antes dele, mas nunca se empolgara muito. Não era puritana, nem virgem, mas não sentira aquilo que as pessoas falam do sexo, não se sentira completa e isto a levara a ser não exatamente alguém doida por transas. As poucas vezes que fizera sexo, mais por pressão e para tentar se sentir “normal”, do que propriamente por vontade, sentira-se frustrada quando o parceiro terminava e ela ainda estava a caminho. Começava a acreditar que era frígida ou só conseguiria ser feliz na cama, quando amasse a pessoa que ali estivesse. Justo naquele dia, Marcelo, seu namorado, resolveu “pegar no seu pé” e viera com ela pra casa. Não gostava de trazê-los pra casa. Sentia-se invadida.
– Ora, meu bem, não é por aí. Estamos namorando há 8 meses, você não me traz na sua casa, não quer transar como todo mundo, não liga pra mim, não demonstra o menor ciúme ou interesse…
– Tá, Marcelo. Desculpe. Só um minuto, vou trocar os sapatos e já volto.
– Está vendo? Vai trocar sapatos quando estou falando sério.
– Olhe, já tive o dia cheio hoje, com três audiências. Só estou pedindo um minuto.
Ela foi para o quarto e ele a acompanhou. Ficou irritadíssima quando o viu em seu quarto.
– Já estou colocando os chinelos, está vendo? Por favor, me espera na sala.
– Qual o problema de eu estar no seu quarto? Sou teu namorado!
A janela!… o pensamento passou pela sua cabeça. Desde o dia … Quando fora mesmo? … dez dias passados que se vira nua frente a janela, sempre que entrava em casa, era a primeira coisa que fazia agora, fechá-la.
– Não por muito tempo.
– O quê?
Fechou a janela. Do outro lado, Valquíria estava de folga e fora fechar as cortinas da sala, já que resolvera ver um pouco de televisão, percebeu que a vizinha estava irritada. Foi ver o telejornal.
– O que “o quê”?
– O que você disse?
– Não por muito tempo.
– Você é irritante, sabia? Não demonstra nenhum respeito pelas pessoas e quando a gente exige isso, simplesmente dispensa.
– Eu respeito as pessoas, sim. Por isso nunca te menti, não te “cantei”, não disse que te amo, nada dessas coisas. Não está funcionando, eu continuo gostando mais da minha privacidade que das tuas invasões. Procure alguém mais “normal” e seja feliz. Boa noite.
Enquanto dizia isso, andara até a porta e a abrira, ficando de pé ao lado, esperando ele sair. Marcelo queria estrangulá-la, contudo, fungando saiu. Ela trancou a porta e foi tomar banho.
No dia seguinte, assim que entrou em sua sala para trabalhar, foi avisada.
– Sua mãe ligou. É pra ligar pra ela assim que chegar.
Fechou os olhos e segurou a cabeça. Vai ser um dia longo, pensou.
– Oi, mãe.
– Menina, o que aconteceu? Por que acabou com Marcelo? Ele é uma ótima pessoa, de excelente família, amigos nossos, bonito e gosta de você. Como pode?
– O que ele é? É um fofoqueiro. Ligou ontem mesmo pra você.
– Ligou porque sabe que o namoro é de nosso agrado e…
– É do seu agrado, mas não é do meu, mãe. Ele é tremendamente chato, quer ficar grudado e eu gosto de espaço. Preste atenção, mãe. EU NÃO GOSTO DELE. Desculpe, mas tenho que trabalhar.
– Você vai se arrepender, filha. Pense bem, antes que ele arrume outra mais esperta que você.
Desligou pensando “tomara que já tenha arrumado”.
No sábado, acordou cedo e resolveu ir à padaria comprar pão e alguma coisa para um sanduíche, embora não tivesse tal hábito. Na rua, o cheiro de pão quente tomava conta do ar. Estava contente. Sentia-se livre. Havia uma pequena fila. O pessoal chamava os balconistas por nome, conversavam entre si. Aquilo lhe fez bem.
– Oi!
Virou-se para quem a cumprimentara. Era uma mulher bonita, com olhos negros e sorridentes. Exalava simpatia.
– Oi!
– Está estranhando? Desculpe perguntar, mas nunca a vi aqui antes e olha à sua volta como uma criança que estivesse entrando, pela primeira vez, em um local assim.
– Dá pra notar é? Não, é que tenho pouco tempo, compro tudo no mercado e hoje me deu vontade de um sanduíche com pão fresco.
– É nova no bairro?
– Já moro ali – apontou -, há três anos, só nunca tinha vindo à padaria.
– Já que quer ser diferente hoje, eu te pago o café. Pão quentinho não é bom pra sanduíche. Leve tudo para mais tarde, mas agora vem cá. Me chamo Valquiria.
Marina apresentou-se e a acompanhou, sentaram-se em bancos altos no outro balcão e ela pediu.
– Bom dia, Bigode! Dois pães quentinhos com pouca manteiga e dois chocolates quentes. Com açúcar ou adoçante?
– Pode ser açúcar.
– Taí da saúde!
– Obrigada, Bigode.
– Da saúde?
– Sou enfermeira. Também sou sua vizinha. Como moro em frente – apontou -, pensei que tivesse se mudado há pouco tempo, porque só a vi há poucos dias atrás.
– Só estou em casa à noite e às vezes, final de semana. Sempre toma café aqui?
– Não, só às vezes. Na verdade, só ia comprar pão, entretanto resolvi te mostrar o melhor jeito de comer pão quente. Na minha opinião, é claro.
– Parece um pouco cansada.
– Tirei plantão noturno. Ainda tenho mais esta semana agora, trabalhando à noite. Daí volto pro dia.
Conversaram amenidades e se despediram.
Passada a semana, no domingo às 10:30 h., tocou a campainha no apê de Marina. Foi atender.
– Valquiria! Oi! Entre.
– Não, obrigada. Desculpe incomodá-la, mas tem um evento na praça hoje e como você mora aqui, queria saber se não quer ir. Leve um pouco de dinheiro. É beneficente. Se quiser ir, é claro.
– O que é?
– Tem música, dança, bingo, é meio quermesse.
– Espere. Entre, sente-se. Vou me trocar e desço com você.
Eram coisas simples, todavia divertidas. Passou alegremente o dia.
– Faz exercícios?
– Faço na academia aqui perto.
– Também faço lá. Com o tanto de porcaria que comemos hoje, aconselho-a a caprichar nos aeróbicos esta semana.
– Quais os dias que você frequenta?
– 2ª, 4ª e 6ª. E você?
– Não tenho muito ânimo em ir sozinha. Deveria ir também três vezes por semana, mas tenho ido quando estou disposta. Acho que vou começar a ir no seu horário, aí vou ter companhia.
– Tá bom. Eu vou às 19:30 h.
– Por isso não te encontrava. Eu ia mais cedo.
Começaram a frequentar juntas a academia e Marina achou que tinha uma nova amiga. Portanto, quando resolveu ir ao teatro ver uma peça que queria, comprou um ingresso a mais. Na sexta-feira, quando estavam de saída da academia, fez o convite.
– Valquiria, amanhã vou ver aquela peça que a gente comentou e queria saber se pode ir comigo?
– Você tem muitos amigos?
– Alguns. Por quê?
– Talvez seja melhor convidar outra pessoa. Não sou a melhor companhia para você.
– Pensei que a gente se dava bem, que fossemos amigas.
– Venha até em casa, por favor.
Entraram.
– Sente-se, por favor. Aquela é a janela que dá pro teu quarto. À primeira vez em que eu a vi, você estava nua bem em frente. Cheguei a pensar se alguém mais a vira, porém devido a hora, eu duvido. Normalmente os apartamentos estão vazios naquele horário. A segunda vez, você discutia com alguém.
– Justamente as duas únicas vezes que aconteceu alguma coisa de janela aberta, você tinha que ver?
– Não foi proposital, posso te garantir.
– Sei que não.
– Quando falei com você na padaria, não sabia que estava lá até ter entrado. Queria saber a cor dos teus olhos.
– E qual é? – Marina fechou os olhos.
– Mel.
– E por isso você não quer ir ao teatro comigo?
– Não. É que já faz algum tempo que vivo só; você é uma mulher agradável, inteligente e muito bonita e eu sou homossexual. Por isso tudo, não sou a melhor companhia pra você.
– Tenho amigos homossexuais!
– Estão sós?
– Não, mas gosto de você e só queria ir ao teatro. Qual o problema?
– Tá bom.
– Amanhã, às 18 horas, a gente se encontra. Vamos jantar calmamente e depois teatro. Anote meu telefone e me dê o seu pra alguma eventualidade.
Daí pra frente, sempre que o trabalho de Valquiria permitia, saiam juntas para shows, cinemas, teatros ou só para andar um pouco. Até que, num final de semana, sete meses depois daquela conversa, Marina convidou-a para ir pra praia.
– Não, obrigada.
Marina a havia chamado à sua casa. Valquiria estava sentada e ela na sua frente, em pé.
– Por que não? É só um final de semana, me deu vontade e todo mundo tá ocupado, ou viajando. Não tem graça ir sozinha.
Valquiria suspirou, colocou o cotovelo no braço da poltrona e o dorso da mão na boca e apenas olhou para Marina. A blusa justa de Marina erguia seus seios e o decote, mostrava-os sensualmente. Insistiu.
– Por que?
Valquiria levantou-se de repente, colocou as mãos na cintura de Marina, o rosto em seu colo, aspirou com suavidade seu cheiro e delicadamente beijou a pele de um e do outro seio.
– Por isso. Desculpe. Adeus.
Saiu. Marina ficou estática, com os pelos das costas e pescoço arrepiados, sentindo a ternura do ato. Sem ação. Alguns minutos depois, correu para o quarto para verificar pela janela se Valquiria já chegara. Esperou. Assim que ela entrou, telefonou.
– Alô!
– Sou eu.
– Desculpe. Tá muito difícil pra mim. Te preveni, não foi?
– Ainda quero ir com você
– Tá muito doído, não quero sofrer mais que isso, não.
– Por favor! Eu não entendo determinadas coisas muito bem, no entanto neste exato momento, não sei por que, preciso estar com você. Posso ir aí?
– Se quiser.
Foi o mais rápido que pode.
– O que você quer Marina?
– Não sei. Sensações. Algo que nunca senti. Preciso saber.
– Não posso te ajudar.
– É a única que pode.
– Tua mãe não aceitaria. Você não aceita.
– Como não! Já te disse que tenho amigos…
– Amigos, não pra você. Vá embora, por favor.
– Não estou dizendo que quero um caso com você.
– Quer experimentar. É isso?
– Não vou mentir. Talvez seja.
Despiu-se devagar, sem pensar no que fazia, sentindo o olhar de Valquiria queimando sua pele inteira. Aproximou-se. Valquiria permaneceu imóvel. Com as mãos trêmulas, começou a despi-la. Encostou-se no seu corpo, tentou beijá-la, ela virou ligeiramente o rosto. Segurou-o com as duas mãos e suavemente virou-o de volta. Beijaram-se. Sentiu-se enlaçada; mãos em suas costas, descendo até as nádegas, apertando-a e subindo até o pescoço. Afastado o corpo, as mesmas mãos seguraram seus seios, espremeram, acariciaram, brincaram com os mamilos, então os lábios se desprenderam dos seus e percorreram o caminho das mãos e as mãos tomaram outros caminhos, às vezes com força, às vezes com suavidade e a boca, invejosa e ciumenta, percorria seu traçado. Em troca, outras mãos tocavam o corpo das mãos andarilhas, com estranho êxtase, extrema curiosidade, um pouco desajeitadas, inexperientes, mas ávidas, atrapalhadas por um corpo fremente que se desmanchava, perdendo qualquer controle. Manuseado até sua profundidade que clamava por elas, retribuiu abrindo suas comportas, terminando com a seca, há tanto instalada.
Estavam no sofá. Estavam no tapete. Marina pensava, tentando recuperar o controle do corpo. Estava meio no tapete, meio … sobre Valquiria. Isto dificultava a reação de seu corpo, aquela metade sobre o outro corpo. Esforçou-se para separar o toque. Foi ajudada.
– Você está bem?
– Hum, hum.
Bom, agora já sabia o que era se “sentir completa” no sexo, mas será que era isso? Ela era diferente? Tinha que ser com … uma mulher? Não quis pensar mais nisso. Não agora. Abriu os olhos. Valquiria olhava-a preocupada. Voltou a perguntar.
– Você está bem? Te machuquei?
– Não, eu estou bem. Posso ficar aqui um pouco?
– Em casa pode, mas não no chão. Venha pra cama.
Valquiria ajudou-a, levantou-se, deitou na cama, ainda sentindo-se bamba. Gemeu e dormiu.
Acordou de madrugada. Tinha um abajur aceso, o que indicava que Valquiria se preocupara. Sentou-se na cama e ficou olhando-a. Teve vontades estranhas, mas ficou quieta para não acordá-la. Ela se virou, dormindo, e um seio ficou à mostra. Marina ia cobrí-la, contudo aquelas vontades estranhas estavam presentes. Acariciou-lhe o rosto e este demonstrou um meio sorriso. Descendo a mão pelo pescoço, acariciando toda a extensão até tocar-lhe o seio. Aquele corpo dormente reagia, mexia sensualmente, provocava. Puxou a coberta, deixando-o totalmente à vista, encostou-se nele, deslizou por ele, tocou com o corpo, com as mãos e boca cada parte que se contorcia, menos o rosto. Observava-o. As mudanças de expressão; parecia que sonhava e a boca gemia acompanhando o sonho. Quando passou a língua pelo monte de Vênus, um lampejo passou-lhe pela mente, nunca pensara em fazer nada disso, mas continuou descendo e ao sentir e ver quão molhado estava, parou de pensar e agiu. Quando parte de sua mão entrou, seguindo a trilha da língua, o corpo acordou e seguiu seu ritmo. Nunca impusera um ritmo antes. Adorou aquilo e mais ainda, quando soube que aquele corpo chegava ao clímax, com ela. Terminando o gozo, uma mão daquele corpo procurava o outro para terminarem juntas. Sorriu e murmurou.
– Não precisa, não agora!
Não precisava mesmo. Olhava o resultado de suas carícias e reagia da mesma forma. Descobriu que o que lhe fizera falta até então, era o sentimento para chegar à emoção maior. Deitou-se sobre Valquiria. Esta abraçou-a.
Acordou, olhou o relógio no criado-mudo. 6:00 h. O primeiro pensamento foi terrível. “O que eu fiz, o que aconteceu? Como vou explicar pra minha família? Que sou anormal?” Ficou apavorada com seus próprios sentimentos. Levantou-se sem fazer barulho, cobriu Valquiria evitando olhá-la, vestiu-se e saiu. Trancou a porta e passou a chave por baixo. Entrou em sua casa, foi direto para o chuveiro. Tomou um banho prolongado, todavia seu corpo parecia marcado pra sempre. Quando se ensaboava, sentia a sensação de outra mão e viu-se masturbando, sentindo a outra. Apressou-se, vestiu-se e saiu.
Tocou a campainha várias vezes. A porta foi aberta finalmente.
– Que foi? Entre. Estourou a guerra ou o quê? Pra me tirar da cama de madrugada, no meu dia de folga?
– Desculpe, Simone. É que estou desesperada. Podemos conversar?
– Claro, mas deixa eu acordar primeiro. Vou tomar um banho, vai fazendo o café.
– Que aconteceu? Quem era?
– Era, não. É Marina.
– Oi, Claudia. Desculpe por tê-las acordado.
– Você está bem?
– Não. Mas vai passar. Quanto de pó?
Fez o café. Claudia arrumou a mesa.
– Pronto. Tô acordada. Enquanto tomamos café, pode começar a falar. – Disse Simone.
– Talvez ela não queira que eu ouça. – Ponderou Claudia.
– Pode ouvir sim. De qualquer forma, ela iria te contar depois. – Argumentou Marina.
– Vai, Marina, desembucha. E nada de linguajar de tribunal, por favor, me cansa. – Emendou Simone.
– Você se lembra daquela minha amiga, que também é minha vizinha?
– Ah! A sapata por quem você tem uma queda…
– Si, não fale assim. – Claudia interveio.
– Não ligue, Marina, você a conhece.
Contou o ocorrido, sem detalhes íntimos, é claro.
– E você gozou e gostou. Este é o problema? – Simone indagou.
– Por que escolhi você pra conversar sobre isto? – Marina se questionou em voz alta.
– Porque somos o único casal gay de suas relações. As bichas que você conhece são fofoqueiras. – Simone respondeu.
Claudia ria.
– Marina, o importante é como você se sentiu, qual o sentimento que rolou. Foi forçado ou natural? Só que a Si gosta de resumir.
– Foi natural, com muita emoção. Acho que foram meus primeiros orgasmos na vida, mas…
– Foi com ela, e não com o futuro marido perfeito. – Simone comentou.
– É. Já vi mulheres nuas e não me diziam nada, não sentia nada, mas olhar pra ela, passam umas ideias absurdas pela cabeça. – Marina divagou.
– Por que absurda? A gente ama alguém, o gênero que esse alguém pertence é detalhe. – Simone falou.
– Detalhe? Você acha que minha família vai concordar? – Marina estava indignada com a amiga.
– O problema não é tua família, menina. Ela tinha razão quando disse que você não aceitava. Só não aconteceu nada antes, porque ela respeitou seus medos. Por isso ela pediu pra você sair e esquecê-la. Se, ao invés dela, fosse um homem que tua mãe detestasse, por não ser da mesma classe social, você a enfrentaria? Porque é só tua mãe, o resto da família não se incomodaria, se fosse uma pessoa decente. E, pelo que tenho ouvido, ela é das mais decentes. – Simone desembestou a falar.
– É a mais gentil, a mais decente, a mais amiga e eu… – Marina não conseguiu concluir.
– Diga – incentivou Simone.
– Diz, Marina. – Claudia insistiu.
– É absurdo. Por que tinha que ser assim? – Marina estava desesperada.
– Você recebe na tua vida alguém desse quilate e ainda reclama? Você foi criada pela mamãe, para encontrar o príncipe encantado, ter muitos filhinhos e ter um porre de vida. Bom, bem-vinda à vida real, com alguém que pode te fazer bem mais feliz e você não consegue dizer que a ama. – Simone deu a real.
– Não percebeu nada antes Marina? Nenhum indício desde que começou a encontrá-la direto e não ir a lugar nenhum se ela não pudesse ir, ou nas raras vezes que saiu com outros amigos, sentir tremendamente a falta dela? – Cláudia inquiriu.
– Eu não queria que fosse assim. – Marina respondeu.
– Você não queria ver que é assim. O que pretende fazer agora? – Simone emendou.
– Marina, não temos a resposta pra você. Você tem que decidir sua vida, sua felicidade. Pra nós é diferente, nos amamos e não somos bitoladas, preconceituosas, nem temos famílias tradicionais, centenárias. – Cláudia tentava dar outra perspectiva.
– Posso ficar aqui? – Marina pediu.
– Tá fugindo dela?
– Si, por favor. O tempo que quiser. Não pretendemos fazer nada hoje. – Cláudia falou.
Passou o dia com as amigas.
Valquiria estava preocupada. Ligou para o celular e caía direto na Caixa Postal. Marina deixara-o em casa, desligado. Assim que retornou, Valquiria viu pela janela e foi falar com ela. Marina abriu a porta, mas não olhou para ela.
– Está tudo bem com você?
– Hum… – respondeu balançando a cabeça afirmativamente.
– Onde você esteve? Fiquei preocupada e…
– O fato de termos transado, não lhe dá o direito de me controlar, não acha? – Marina disparou.
– Acho. Desculpe, não está mais aqui quem falou. – Valquíria recuou.
Virou-se e saiu. Marina teve vontade de chorar, de se estapear. Correu para alcançá-la, mas não conseguiu. Voltou, fechou a casa e foi atrás dela. Bateu na porta. Valquiria a abriu e não esperou que entrasse, deu-lhe as costas e foi para o sofá. Entrou, fechou a porta, respirou fundo e se virou.
– Desculpe. Foi uma atitude horrível. Estive na casa de Simone e Claudia. Estava me sentindo perdida, precisava conversar com alguém… com… – Marina tentava se explicar.
– Com alguém do meio?
– É.
– Disseram alguma coisa diferente do que eu te disse? – Valquíria perguntou.
– Não.
– Então fugiu de mim, o dia todo. Não podia nem ligar e dizer que estava bem e que tinha saído; ou deixado um bilhete?
– Me perdoa e … me ajude. – Marina implorou.
– Eu sou a última pessoa no mundo que pode ajudá-la, sou a maior interessada, se lembra? Não vou incomodá-la novamente, não se preocupe. Tem todo o tempo que quiser pra pensar e resolver sua vida.
– Não vou mais te ver? Por quê? – Marina não entendia.
– Eu te pedi pra não ultrapassar o limite imposto; você ultrapassou e, pelo que senti, não foi por simples curiosidade, mas você provou que eu estava certa. Você não aceita e, se eu receber outra resposta, como a que você me deu há pouco, não vai prestar. Embora não gostasse de alguns amigos teus, que te abraçavam e ficavam com a mão no teu ombro ou cintura, enquanto falavam, jamais disse nada. Eu até me afastava quando nós encontrávamos qualquer amigo teu. Eu não mereço, não admito e não sou obrigada a ouvir o que ouvi hoje. Quando você se resolver, conversaremos. – Valquíria determinou.
– Não posso resolver sozinha. Eu preciso da tua companhia.
– Amanhã, a gente se vê na academia.
Marina tentou abraçá-la em vão.
-Não. Por favor, vá embora. – Valquíria pediu.
– Me desculpe.
Marina quase não dormiu. Foi trabalhar cansada, o dia foi horrível. À noite esperou Valquíria na esquina de sempre, para irem à academia. Queria, precisava vê-la. Observar principalmente seus olhos, que sorriam antes de tudo, depois o rosto e finalmente a boca. Isto acontecia sempre que a via, mas não desta vez. Havia uma sombra de tristeza, o que só fez piorar a sua angústia.
– Oi!
– Está melhor?
– Não.
– Pensou a respeito do que você sente e quer?
– É só o que tenho feito.
– E…
– Ainda não cheguei a nenhuma conclusão. O meu nível de aceitação dos fatos não se fortaleceu. Quero estar com você, porém algo me impede. Ouço a voz de minha mãe, “com uma mulher? Isto é indecoroso, é pecado”. Tenho muito medo. – Marina explicou.
– Vergonha?
– Não sei!
– Olhe pra mim e diga sinceramente o que sente. Pode fazer isso? – Valquiria pediu.
– …Não!
– Tudo bem. Tenho umas coisas pra resolver. Adeus.
Marina permaneceu ali parada. Queria ir atrás de Valquíria e dizer o que sentia, mas como, se não admitia para si, tinha medo e tinha …vergonha. E vergonha por isso.