— Então…. Você escolheu essas duas, por quê?
— A primeira, realmente, não me lembro bem. Na verdade, nem me lembro se cheguei a me relacionar. Eu estava muito bêbada. Era minha folga e fui a uma taverna. Lembro que comecei a beber para ter coragem de chegar em alguma mulher. Essa garota se aproximou e nem lembro seu nome… que seja, não lembro de praticamente nada. A segunda conheci na rua do comércio. Era filha de um feirante e cheguei a me relacionar com ela durante um tempo, depois que a conheci, mas não me sentia preenchida. Não me bastava ter algo com uma pessoa que eu não amava. Algum tempo depois, deixei de procura-la quando ia a Kamar.
Inspirei fundo.
— Tudo bem. Entendo. – Coloquei meu dedo em riste no seu rosto. — Não que tenha gostado. Elas eram bonitas?
Perguntei brava e, dessa vez, Arítes riu de mim.
— Por que está rindo? É uma pergunta séria, sabia? Tenho que saber com quem estou lidando.
— Elas eram da linhagem do lago, mas não tão bonitas como você.
Se Arítes queria fazer graça comigo, conseguiu. Quase me derreti e quase esqueci meu propósito de arreliá-la.
— Você não fará mais diligência para Kamar e não discuta. Dê seu jeito de mudar de rota.
— Não vai ser problema. Eu não faço mais diligência há três anos. Desde que saí da patente de tenente.
— Você aumentou a patente a cada ano, não foi?
— Sim. Faço o teste sempre que tem e para falar a verdade, já poderia ser general, mas não seria bom para mim.
— Pretensiosa. – Sorri diante de seu orgulho. — Você perdia no teste deliberadamente? Por quê?
— Porque, mais vale ficar bem com seus companheiros, do que despertar a inveja nas tropas. Galgar postos, gradativamente, não é mal para a imagem. Apenas um pouco da estratégia que aprendi com sua mãe.
— Mmm. Só que ela quer que eu já entre arrebentando.
— É diferente. Você nunca esteve no exército e isso mostraria o quanto estavam enganados com você. Servirá para calar a boca de alguns e mostrar que sua mãe nunca deixou de lhe educar. Demonstrará também, que não sabem o que esperar de você e o que você aprendeu ao longo desses anos, sem que eles tivessem conhecimento.
— Bom, vou me banhar e colocar uma bata. Daqui a pouco a audiência pública terminará e meu pai deve vir me ver.
****
Mais uma noite e minha mãe me dava outra surra daquelas. Arítes ficou sentada nos observando e quando tentava falar algo para me ajudar, minha mãe ralhava com ela. Êlia queria que eu pensasse por mim, nas coisas que havia me instruído. Minha vontade de fazer bonito perante Arítes, me atrapalhou inúmeras vezes, até que em uma investida de minha mãe com o “takubi, ela lançou um golpe por sobre minha cabeça. Nunca me atacou agressivamente de forma a me machucar, caso não conseguisse defender. Esta foi a primeira vez, que me senti ameaçada de verdade. Reagi rapidamente tentando proteger minha cabeça. Quando parei seu golpe, deslizei a arma para que a parte com a pequena foice, enganchasse na haste do “takubi” dela. Tracionei fortemente e consegui arrancá-lo de sua mão, lançando-o longe. O “takubi” era uma arma tradicional de Eras. Se compunha de dois bastões de tamanho médio, que numa das extremidades de um deles, tinha uma lâmina como uma ponta de faca, e o outro, tinha uma pequena lâmina em forma de foice. Era uma arma em que podíamos utilizar para defesa, mas também era extremamente mortal.
Minha mãe me parabenizou e me abraçou. Eram duas horas da manhã e para a felicidade minha e de minha mãe, iríamos dormir mais cedo. Seguimos conversando abraçadas para dentro do quarto.
— Seu pai estava preocupado quando viemos ver você. Espero que esses dias passem rápido. Não gosto de esconder coisas de Astor.
— Também não gosto, mãe. Fico imaginando quando ele souber.
— Eu não falarei que a treinamos por esses dias. Ele pensará que assumi a sua educação ao longo dos anos. Eu, sinceramente, agradeço por você nunca ter desistido. Foi negligência minha. E vocês? Como ficaram ao longo do dia?
Olhei Arítes. Queria contar para minha mãe, mas não sabia se Arítes se sentiria inibida. Não tinha conversado com ela sobre isso.
— O mal-entendido, de hoje cedo, foi resolvido, comandante.
Olhei para Arítes sem compreender o que ela falava.
— Completamente resolvido?
Minha mãe perguntou para Arítes com um largo sorriso em seus lábios e as sobrancelhas arqueadas.
— Sim. Eu e Tália conversamos e nos entendemos, mas acredito que a senhora já devia desconfiar que isso pudesse acontecer, não é mesmo?
— Ei! A senhora sabia o que Arítes sentia por mim?
— Sim, assim como eu conversei com você sobre isso ontem.
— E por que não falou antes?
— Porque vocês duas são cabeças de cabra que se negavam a escutar. Além do mais, eu não poderia interferir, se vocês mesmas não queriam encarar. Podia aconselhar, como fiz. O que eu poderia fazer além disso? Rachar a cabeça de vocês? Bom, me digam que eu não precisarei me preocupar com o que farão hoje à noite.
— Mãe!
— Eu estou falando sério, Tália. Arítes tem que se recuperar muito bem e quero que ela descanse até depois de amanhã.
Minha mãe falava tentando transparecer seriedade, mas o rosto dela dizia o contrário. Ela estava feliz e eu fiquei radiante.
— Mãe, eu te amo muito.
Abracei-a mais apertado. E ela puxou Arítes para o abraço.
— Eu estou muito feliz por vocês.
Minha mãe era pouca coisa mais alta que eu e Arítes, e despedindo-se beijou nossas cabeças.
— Bom, vou me banhar e irei dormir com seu pai. Disse-lhe que estaria revendo a nova formação das tropas e se for hoje para o seu quarto, acho que ficarei com créditos.
— Mãe, como papai está? Hoje me pareceu muito mais tranquilo e mais aberto nas ideias também. Pareceu meu pai de antigamente.
— Parece que o antídoto que a sacerdotisa curandeira nos deu, está fazendo efeito, filha. Quem quer que seja, que o tenha envenenado com a poção que a sacerdotisa falou, deve ter ficado em alerta depois da reunião de hoje do conselho e após a audiência pública. Ele expressou genuíno arrependimento de nunca ter lhe incentivado a ingressar no exército. Disse que se tivesse feito, não estaria se preocupando tanto com sua segurança. Disse que começaria a chama-la para as audiências públicas, para que começasse a se inteirar das necessidades do reino.
— Mãe, isso é maravilhoso!
–Também acho, filha. Astor está voltando para nós.
Minha mãe nos beijou novamente e saiu, nos deixando a sós. Olhei Arítes e fui de encontro a ela. Abracei-a mesmo suada.
— Ei! Já tomei meu banho.
Ri de sua reação. Estava feliz. Fui para o quarto de banho e disse para ela se deitar.
— Você não dormiu nada hoje. E fica forçando o ferimento da perna e só tem mais um dia para começar a andar direito.
— Eu vou deitar agora e amanhã tenho o dia inteiro para não fazer nada, novamente.
Falava aborrecida com a sua condição.
— Pobrezinha. Não pode brincar de lutar e está entediada. — Mexi com ela.
Depois do banho, deitei a seu lado. Ficamos de frente uma para a outra e Arítes começou a acariciar meu rosto.
— Sabe, eu te amo tanto que não conseguia sair de perto de você. Um dia, o General Hian se ofereceu para falar com sua mãe, para que ela colocasse outra pessoa em meu lugar como sua escolta. Disse que eu poderia crescer muito no exército, se estivesse mais livre e que gostaria que eu o acompanhasse em reuniões estratégicas.
— Ele que se atrevesse a te tirar de mim.
Falei rindo e ouvi uma gargalhada sonora de Arítes.
— Não precisaria que você falasse nada. Eu neguei. Eu não suportaria ficar sem te ver. Apesar de algumas vezes você fazer da minha vida uma cova do demônio Tevé.
— Ei, já conversamos sobre isso. Você não dava nem um tempo para mim, nem quando não saía daqui das muralhas da cidade. Você não me deixava sozinha um minuto.
— E para que você queria ficar sozinha, einh?
— Que eu saiba, guarda pessoal é para quando estivesse além das muralhas e não quando andasse pela cidade.
— Então você não gostava da minha presença? – Ela perguntou com um sorriso irônico.
— Sempre gostei da sua presença, mas não quando ficava fofocando coisas para meu pai.
Ela continuava rindo e me provocando.
— Eu nunca fofoquei nada para o rei Astor. Na verdade, não sei como ele sabia das coisas que fazia, pois nunca falei nada para ele. Nem quando você roubou da corda de secar o vestido novo da filha de Vergás. Ela tinha comprado para a festa de aniversário de casamento de seus pais. Por que fez aquilo naquele dia? Só para se divertir?
— Ela me irrita. “Ah, pai isso, ah, pai aquilo… Tenente-Coronel Arítes, quando Tália vai liberá-la para você me acompanhar num passeio? – Falei com voz de remedo. — Você pensa que eu não escutava? Se ela continuar atormentando, pode ter certeza que, a próxima vez, não roubarei só o vestido dela.
Arítes gargalhou mais alto e começou a gemer de dor logo em seguida.
— Para, Tália. Eu ainda estou dolorida.
O riso dela foi cessando e o meu também.
— Pois eu vou te contar um segredo. – Ela falou baixinho, ainda acariciando meu rosto. – Acho Distêmona uma chata. Não consigo ficar perto dela dois minutos.
— Eu sei. – Eu não conseguia parar de rir.
— Como você sabe?
— Já vi inúmeras vezes você correndo dela nas recepções e o pior, já ouvi você dizer a desculpa mais ridícula do mundo para isso. Uma vez, você disse que me procuraria, pois não podia se descuidar da minha segurança. Como assim se estávamos numa festa aqui dentro? Só sendo muito imbecil para acreditar nisso.
— Como você sabe disso?
— Porque, minha amada guarda pessoal, eu estava de costas para vocês, conversando com o pai dela, Vergás. E o pior, acho que o pai dela ouviu.
Soltei mais uma gargalhada, fazendo Arítes me acompanhar.
— Você não é fácil, Tália. E eu que achei que nem me reparava.
— Pois saiba que tudo relacionado a você sempre me interessou.
Ela passou seus dedos pela minha face chegando até meu queixo e puxando de encontro a seu rosto. Acariciou meus lábios com os seus, antes de pousar um beijo suave. Entrelacei minha mão em seus cabelos entreabrindo minha boca arfante, para que ela invadisse. Não demorou para que o beijo ganhasse força e logo ela girava seu corpo sobre o meu. Arítes começou a mover sua pelve encaixada na minha e eu senti algo escorrer pelo meu sexo. Gemi entre seus lábios, não conseguindo segurar a forte contração em meu ventre. Ela parou seus movimentos e senti o abandono de seu corpo. Ela voltava a deitar a meu lado e em seu rosto vi gotas de suor escorrer.
— Desculpe, Tália. Mas ainda está doendo muito.
— Shhhhh! Ainda teremos tempo para isso. Você tem que se curar primeiro.
****
Nunca pensei que seria tão difícil dormir ao lado de Arítes. Passei parte da noite a observando dormir. Ela estava ali e nós estávamos namorando, mas não podia avançar mais que umas carícias para não machuca-la. Por fim o sono me venceu e só acordei quando escutei Arítes me chamar.
— Tália…Tália. Sua mãe trouxe o café.
— Hum! E você atendeu?
— Não precisei. Ela tem a chave do seu quarto e entrou. Disse para me preparar para me apresentar hoje ainda. Um camponês chegou logo de manhã e a procurou, falando que era um assunto particular. A sorte é que sua mãe nunca deixou de atender, pessoalmente, ao povo que lhe procura. Ele contou a ela, que uma caravana havia passado na cidade e tinha encontrado todo um grupamento de Eras morto no caminho de Terbs. Ele lhe explicou que a caravana era de comerciantes de Kamar. Ela pediu que guardasse silêncio por enquanto, mas ele já havia falado para algumas pessoas. Sua mãe teme que a notícia se alastre. Agradeceu a ele e pediu novamente sua discrição. Ele disse que não comentaria mais.
— Mas ela tinha dito que havia enviado alguns homens de sua confiança para retirar os corpos na mesma noite que você chegou. Ela não fez isso?
— Fez, mas parece que a caravana passou antes de conseguirem chegar e retirá-los. Vou me aprontar.
— Mas você ainda não está andando direito.
— Já estou bem melhor. A cabeça não dói quase nada mais, e os cortes superficiais também não. Só a perna que está incomodando. Vou levar apenas mais uns três dias até estar inteira.
— Irá atrapalhar os planos dela…
— Talvez, mas a comandante deve ter pensado em outra saída, pois diante dessa notícia, a sua mãe não tem muito o que fazer, a não ser, me apresentar e soltar a bomba antes que saia do controle.
****
O conselho estava pronto para se reunir pela manhã, quando Arítes passou ao lado da comandante Êlia, pelo corredor que dava acesso à sala de reuniões. Os guardas olharam a cena com espanto, mas se mantiveram em suas posições de prontidão.
— Arítes, falarei que você chegou ao castelo apenas ontem à noite pelas condições que se encontrava e veio direto a mim. Fiz seus curativos e disse para descansar para apresenta-la ao conselho hoje.
— Está certo, comandante.
— O restante da história, conte exatamente como foi, só diga que não tinha mais o seu cavalo, por isso demorou a chegar.
— Ainda bem que deixei meu cavalo no meu rancho. Não quis vir para o castelo com ele, pois não sabia em quem confiar. Só queria falar com a senhora, naquele dia.
— Fez bem, Arítes. Fez muito bem.
Minha mãe abriu a porta e entrou com uma postura imponente, sendo seguida por Arítes, que tentava em vão, caminhar com segurança. Meu pai e os conselheiros olharam a cena com espanto.
— Mas o que é isso, Êlia?
Meu pai questionou, aturdido.
— Senhores, creio que temos uma situação delicada. O esquadrão da tenente-coronel Arítes foi atacado no caminho para Terbs. Perdemos todo o esquadrão.
— Mas isso é uma declaração de guerra!
O conselheiro Vergás exclamou alterado.
— Calma, conselheiro. – Disse minha mãe. – É uma declaração de guerra, mas contra quem?
— Ora, contra Terbs. Quem mais poderia fazer tal agravo?
— Deixe que a tenente-coronel conte o que houve e depois discutiremos. Não podemos simplesmente supor que Terbs tenha feito a investida sem provas.
— Eles já estão nos provocando a tempos. Certamente foram eles!
Minha mãe olhou o conselheiro e entendia sua exaltação, mas não poderia lhe dar crédito naquele momento. Todos estavam visivelmente chocados e poderia ocorrer uma sessão de injúrias injustificadas contra Terbs.
— Os terbeanos não sabiam que tínhamos enviado um esquadrão para fazer um convite ao rei.
Defendeu Tórus, se dirigindo a Vergás.
— Algum guarda patrulhando poderia ter visto o esquadrão se aproximar e pediu reforços para poder atacar.
Minha mãe interrompeu a discussão antes que saísse do controle.
— O esquadrão estava com a bandeira de paz e todos os componentes vestidos de gala, demonstrando que não éramos uma ameaça. Será que eles arriscariam uma guerra por conta de um pequeno esquadrão a caminho de seu reino? Ainda temos relações comerciais com eles. Acredito que isto estaria um pouco além da nossa tensão político-econômica.
A comandante olhou para Arítes e pediu que ela se adiantasse.
— Apresente-se, tenente-coronel e conte à mesa o que ocorreu com detalhes.
Após a exposição de Arítes, ela foi dispensada e voltou para o meu quarto.
****
— E aí? Como foi?
— A coisa está tensa, Tália. Todos ficaram indignados e Vergás está exaltado. Disse que devemos ir à guerra e meu tio defendeu Terbs, principalmente depois do meu relato.
— O que acha da posição do seu tio?
— Eu não sei, Tália. Apesar de concordar com ele nessa investida, ele foi muito passivo. Mas sua mãe deu razão à ele, talvez para acalmar os ânimos. Não sei mais o que pensar.
— Entendo. Vem aqui, deixe eu ajudar a tirar essa roupa. Você ainda está se recuperando e deve se esforçar para melhorar.
— Tália, não sei se devo ficar aqui, no seu quarto, depois que anunciei meu retorno.
— Como assim? Será muito mais fácil se permanecer aqui.
— Você quer dizer que será muito mais prazeroso para mim e para você, mas isso não significa que seja o melhor, por enquanto. Sua mãe disse que gostaria que não anunciássemos nosso namoro, antes do seu exame para o exército. Além do que, esse fato poderia alertar quanto a sua capacidade bélica, assim que você se inscrevesse. Ela gostaria que você pegasse as pessoas desprevenidas.
— E você voltará a dormir com Tétis?
— Pela Divina Graça, Tália! Tétis está noiva.
— E daí? Vai que ela nutre algo por você e está enrolando o coitado.
— Tália!
— Está bem, está bem. Mas eu não gosto de uma mulher estar dormindo com você e eu ficar aqui no quarto, sozinha. Isso não é justo.
— Tália, vem cá.
Arítes me chamou suavemente, puxando-me para abraça-la. Passei meus braços por sua cintura, enquanto ela colocava os seus sobre meus ombros acariciando minha cabeça. Recostei-me sobre seu ombro. Estava insegura. Tudo tinha acontecido tão rápido durante o dia de ontem, que não conseguia me segurar com minha ansiedade.
— Você sabe quanto tempo eu sonhei em ter você nos meus braços? A emoção que sinto com você, não tem comparação com nada que, algum dia, já senti. É como se estivesse diante da mais bela paisagem, que sempre esteve perto, mas eu não conseguia alcançar, e um dia, caminhei para o abismo e me deparei com toda felicidade que o mundo pudesse me oferecer. Estar com você me faz feliz, me dá prazer e, acima de tudo, faz tudo à minha volta ter sentido.
Emocionei-me com o que ela falou. Era como se, o que dizia, fosse tudo o que eu sentia em relação à ela. Como se agora, minha vida tivesse alcançado a luz. Elevei meus olhos na direção dos seus. Me perdi na doçura que deles derramava. Aproximei meus lábios e depositei um beijo delicado. Ela sorriu e voltou a me beijar com mais intensidade. Nossas línguas principiaram a descobrir o sabor de nossas bocas e, mais uma vez, meu corpo acendia com o dela colado ao meu.
— Humm… Tália… – Ela gemeu rouca entre nossos lábios. — Vamos parar por aqui. Infelizmente, ainda não tenho condições. Minha cabeça apesar de ter melhorado, ainda dói com o esforço e minha perna voltou a sangrar ainda a pouco. Ficando tão perto de você, eu me descontrolo.
Sua voz saia rouca e tremula. Eu já estava em meu limite também. Cada vez mais, eu me sentia impotente diante de minha vontade de tê-la. Escondi meu rosto em seu pescoço, tentando refrear a energia que precipitava pelo corpo. Inspirei fundo para me balizar, mas a ação causou um arrepio sobre a pele de Arítes.
— Pela deusa, Tália.
Arítes me segurou pelos braços afastando o meu corpo do seu. Coloquei meu braço em seu peito, colocando uma distância maior. Eu não dormiria tranquila aquela noite. Ansiava por ela.
— Vou chamar Tétis para leva-la. Não pode andar sozinha pelo castelo nestas condições.
Caminhei até a porta escutando sua aquiescência. Tétis entrou e vi Arítes sair apoiada naquela que me revolvia o ciúme.
****
Os sete dias até meu teste, vieram recheados de treinos cada vez mais intensos. Eu me dedicava ferrenhamente à causa. Após a revelação ao conselho da emboscada que o esquadrão de Arítes sofreu, muito mais vigilância e muito mais patrulhas circulavam por todo o reino. Todos estavam tensos inclusive minha mãe, porquanto não havia avançado na descoberta de quem fizera a insídia sobre a tropa. Pela manhã, eu treinava a luta corporal com minha mãe em meus jardins internos. Ela achou mais seguro e reservado. Ninguém questionaria suas visitas, acaso vissem ela entrando em meus aposentos. Mesmo assim, se cuidava para vir até mim para não suscitar desconfianças. Nas tardes treinava arco por mim mesma e para o meu prazer, pois amava essa arte. À noite, treinava a espada com minha mãe novamente. Mesmo com tamanho esforço, meu corpo adquiriu resistência e não doía mais.
Um dia antes de meu teste, minha mãe veio ter comigo uma conversa e me dispensou dos treinos naquele dia. Disse que deveria descansar bastante antes da prova. Todos já sabiam que prestaria o exame, porque as inscrições ocorreram dois dias antes e um burburinho tomou o castelo. Mais tarde, vim a saber que o burburinho se alastrou ao longo de todo o reino. Assustei-me ao descobrir que minha imagem de “princesinha delicada”, no entanto rebelde, ia além dos muros nobres do castelo. Vi muito pouco Arítes e nas raras vezes em que estava sem atividade, conseguimos trocar algumas palavras, mas soube que, após três dias de convalescência, ela voltara à algumas atividades e até treinava.
Para minha surpresa, meu pai, além de adotar a vestimenta de oficial do exército como parte de seu vestuário cotidiano, ao tomar o café da manhã com ele, me encorajou na minha atitude de fazer o teste para o exército. Minha mãe chegou ao meu quarto pela manhã e estranhei, pois ela usava um protetor peitoral dentro das paredes do castelo. Atitude que normalmente não adotava.
— Tália, não quero que se sinta na obrigação de vencer quem quer que seja. Apesar do que temos feito, sei que essa foi uma medida desesperada que tomamos. Realmente, não faço sua a responsabilidade por minha negligência ao longo dos anos com a sua educação. Faça o melhor, pois sei que tem capacidade. Ontem me derrubou duas vezes e me finalizou no combate com espada uma vez. Eu a observei, um dia desses, com o arco e devo dizer que me orgulho do seu estilo. Você estava perfeita. Quando estamos sendo avaliados, tendemos ao nervosismo e isso também é treinável, mas não tinha tempo para isso. Só quero que saiba que, independente de resultados, sei que se esforçou com toda a sua vontade e me alegro por isso.
— Obrigada, mãe. Ao que parece, você e Arítes são as únicas que acreditam que seja possível. Posso até imaginar as apostas, entre as tropas, de quando cairei. Se no primeiro teste, se no segundo…
— Para mim, não importa quando cairá.
— Se você apostasse, em qual patente acha que eu conseguiria me encaixar?
— Minha filha…
— Não. É sério, mãe. Me dê seu palpite.
Minha mãe sorriu. Entendeu meu ponto.
— Quer focar em um objetivo?
— Também, e saber sua opinião.
— Está bem. Acho que alcançaria a patente de tenente, mas não pela habilidade, e sim, pela inexperiência com exames. Se fosse pela habilidade, poderia se tornar uma capitã.
— Bem… – Inspirei fundo.
— E você? No que apostaria?
— Mãe, francamente. Se eu passar um soldado, um cabo e um sargento, do jeito que estou tremendo, a patente de subtenente estará de bom tamanho para mim.
Minha mãe me abraçou me confortando e tentando tirar a ansiedade de meu peito.
— Agora quero lhe falar outra coisa. Passando para qualquer posto, você será obrigada a se recolher três dias, em qualquer lugar que escolher. Mas será obrigada a ficar esses três dias sozinha, estudando as obrigações e a responsabilidade de suas funções. Isso é válido para quem nunca ingressou no exército.
— Vou ter que prestar outra prova?
— Não. Isso é apenas para que tenha consciência da responsabilidade que estará prestes a assumir. É como se tivesse um tempo para pensar se quer realmente a vida militar, ou não. É mais um recolhimento espiritual e que faz parte de nossa tradição no exército. E aí, quero que escolha ficar na cabana do lago.
— Mãe, aquela cabana deve estar abandonada há anos.
— Não está. Sempre mandei limpá-la e consertá-la quando houve necessidade. E mandei limpá-la, novamente. Eu e seu pai, passamos todos os aniversários de casamento lá. Depois que as festividades terminavam, pegávamos nossos cavalos, e íamos para lá. É o nosso segredo e nossa diversão, pois saíamos do castelo e, no dia seguinte, retornávamos, sem que ninguém nos descobrisse.
Minha mãe falava como se estivesse contando uma travessura, da qual, se fosse descoberta, seria severamente punida. Ri igual a uma boba. Meus pais continuavam românticos e se amando; e eu achando que iam dormir depois de toda aquela festa. Também achava que não tinham ânimo para nada, depois que terminava as festividades. Descobria um lado de meus pais que, nunca imaginei, e me enchi de felicidade por eles.
— Vocês são demais, einh?
— Enfim, filha. Escolha a cabana do lago. Você não poderá ir sozinha, apesar das regras. Pela situação que nos encontramos, não será permitida sua saída sem alguém para fazer sua segurança. Pela lógica, sua guarda pessoal deverá ser sua escolta.
Abri um enorme sorriso.
— Arítes?
Perguntei, tolamente.
— É o que deseja?
Minha mãe replicou sorrindo.