Na cabana, nos amamos mais e desfalecemos, exaustas, felizes, sabendo que havia um significado em nosso amor, do qual, não entendíamos muito bem, mas certamente preenchia, com beleza e força, todas as nossas lacunas.
Acordei com meu corpo dolorido. Uma dor que, de maneira nenhuma, me incomodava. Sorri, ao lembrar da noite anterior e ao olhar o corpo de Arítes, nu, ao meu lado. Os cabelos espalhados sobre o travesseiro e o braço pousado sob meu abdômen, indicava que ela me reivindicou e eu a ela. Nos pertencíamos.
Não consegui conter minha vontade de tocá-la. Acariciei seus cabelos, de leve, pois não queria que ela acordasse. Beijei seu rosto e, cuidadosamente, retirei seu braço de mim. Vesti uma bata e saí para o lago. Queria tomar um banho frio para despertar e preparar nosso lanche matinal, pois o jantar havia sido esquecido na lareira, e hoje, se encontrava ressecado pelas brasas. Mergulhei sem piedade e quando vim à superfície, senti minha cintura segura por mãos amadas. Sorri, antes mesmo de limpar meu rosto, retirando a água com as mãos, e abrir meus olhos.
— Te acordei?
— Não e sim.
Sorri.
— Você poderia me explicar, pois não entendi. Acordei ou não acordei?
— Você não me acordou, mas eu acordei, quando senti que não estava comigo.
Ela sorriu para mim. Beijou meus lábios amorosa e, novamente, meu corpo reagia aos toques dela.
— Arítes, se não parar de me provocar, voltaremos para o castelo acabadas e muito mais magras, se a gente não fizer nem a refeição da manhã. Esqueceu que não jantamos ontem?
— Eu jantei. – Falou cínica. – Como você não jantou? Jurava que tinha conseguido alimentá-la, quase a noite toda.
— Muito engraçadinha, é você. Desse alimento, vou exigir mais tarde, por agora, quero algo sólido no meu estômago.
— Está bem. – Falou num tom de falsa contrariedade. – Vamos tomar banho rápido, pois se demoro com você nua, assim, na minha frente, vai ter que me alimentar de outra forma.
Terminamos de nos banhar entre brincadeiras bobas e carícias. De fato, tínhamos que comer algo. Enxugamos, cada uma o corpo da outra, entre as brincadeiras que continuavam. Parecíamos duas crianças que não tinham qualquer preocupação com a vida. Voltamos para a cabana, refeitas.
Recomeçamos a ler os “Escritos”, após o lanche da manhã. Arítes estava deitada sob a relva e tinha a cabeça apoiada em meu colo, enquanto lia em voz alta. Mais uma vez, a beirada do lago acolhia nossas conversas, leituras e contemplações. Eu estava apoiada em uma pedra e fazia um carinho leve no rosto de Arítes, enquanto a outra mão segurava o pergaminho. Eventualmente, ela suspirava e quando a olhava, ela permanecia com os olhos fechados, não sei se para prestar atenção no que eu lia, ou para apreciar essa carícia que eu fazia.
Não resisti. Deixei de lado o pergaminho e baixei meu rosto até ela. Beijei seus lábios, sorvendo apreciativa seu sabor. Peguei-a de surpresa, pois ela gemeu, segurando minha nuca, não permitindo que o beijo findasse. Quando nos separamos, ela me olhou com intensidade. Nossos rostos estavam próximos e pude vislumbrar o verde de seus olhos, num tom lindo, refletindo a luz da manhã.
— Eu poderia viver nessa cabana, a minha vida toda, se você estivesse a meu lado.
Sorri com as suas palavras. Eram lindas, mas acho que ela estava envolvida pelo momento, tanto quanto eu. Retruquei.
— Você se entediaria em viver o resto da vida nessa cabana. Ama o exército, com todas as responsabilidades que tem, e eu, surtaria se não tivesse uma confusão para me enfiar. – Sorri descarada. – Acho que podemos vir aqui, sempre, quando a gente sentir vontade.
Ela parou, um momento, olhando para o céu.
— Tem razão. Mas no momento, sinto que poderia viver aqui com você. Não seja sem-graça, tirando meus devaneios.
Ela virou para mim sorridente e me derrubou, segurando meus punhos. Não ia deixar passar, não é mesmo? Estava amparada na pedra e desloquei meu pé, apoiando no joelho dela. Empurrei tirando seu apoio do chão e ela perdeu o equilíbrio, caindo sobre mim. Minha chance de prende-la. Girei meu corpo, mudando nossas posições. Segurei Arítes e agarrei seus braços sobre sua cabeça. Estávamos desajeitadas. Ela fazia força e eu sentia que ela se soltaria. Comecei a mover sobre ela, encaixando minha pelve na sua, estreitando nossos sexos. Ela gemeu forte, mas não mais que eu. Por minha garganta, sons desconexos ganhavam o ar. Ela amoleceu colada a meu corpo. Não havia mais disputa.
Nos deliciávamos na tarefa de extrair prazer dos movimentos da outra. Ela segurou minha cintura, não tinha percebido que já havia soltado seus braços. Ela puxou com força para que nossos corpos se colassem mais. Não estava aguentando tê-la embaixo de meu corpo se movendo tão sensual e gemendo de forma tão agoniada. Elevei meu tronco, atrevida, e desembaracei com rapidez os laços que prendiam sua calça de montaria. Ela me ajudou a livrar da calça com destreza e, sem qualquer sutileza, arrebatei seu sexo com meus lábios. Estávamos ávidas. Eu estava ávida por vê-la derramar seu amor em mim.
Senti o gosto acre-doce envolver minha boca e o bulbo de nervos que comecei a burilar, rígido na ponta de minha língua.
— Tália…
Seus gemidos aumentaram e, novamente, molhava meu sexo naquele momento. Como era bom sentir a forma que ela reagia comigo! E meu corpo? O que dizer do estado que ficava, ao escutar os sons que ela emitia?
Ela segurou meus cabelos e seu tronco elevou. Senti o líquido derramado em minha boca e lutava para não me deitar sobre ela e aplacar a minha vontade de me satisfazer. Não foi preciso. Ela me puxou com uma força incomum, levantou minha bata, afastou minha roupa íntima e alojou seus dedos dentro de minha cavidade, buscando o meu prazer. Gritei. Não havia medida na delícia que seus dedos proporcionavam. Entrei num estado eufórico, no momento de meu gozo, para depois relaxar em seus braços.
— Pela “Divina Graça”! Se a gente fica uma semana aqui, acho que eu morreria.
Ela gargalhou com as minhas palavras.
— Se a gente fica uma semana aqui, a gente volta mais magra, como você já falou antes, e com um sorriso que não caberia em nossos rostos. Não daria para disfarçar, caso sua mãe quisesse esconder nosso relacionamento.
Essas palavras me gelaram. O que seria pior do que esconder que nos amávamos?
— Você acha que ela pediria isso? Não posso acreditar que, com toda a luta que temos, para manter a nossa cultura e nossa forma de liberdade e igualdade, ela possa sugerir isso.
— Não sei, Tália. – Arítes falou preocupada. – Estamos lendo os “Escritos” e ali – ela apontou para os pergaminhos – diz que tempos escuros virão. Depois de tudo que lemos, não acha que você é a “guardiã da indulgência”?
Me choquei.
— Do que você está falando? Entendo que estamos passando por conflitos e…
— Tália.
Ela segurou meu rosto e me fitou séria.
— Por que sua mãe facilitaria tudo isso para nós e se preocuparia em tomar as rédeas das ações, agora?
Soltei um bocado de ar preso, desde a hora que ela insinuou o fato. No fundo também achava isso, mas não revelava, acredito que para me proteger. Acredito, também, que para negar e não tornar real.
— Além do que, não acho que conseguiríamos ver o outro plano, a troco de nada. Nosso amor é verdadeiro sim, mas…
Ela suspirou quase resignada.
— Mas? – Perguntei.
— Mas ninguém com amor verdadeiro, nem mesmo a sua mãe com seu pai, presenciou o que nós vimos.
— E você é a que brandirá a “Espada Macha”? Se esse é o seu entendimento, me diga que sim, pois não dividirei o trono com mais ninguém, entendeu?
Falei imperiosa, porém confusa e começava e temer nosso futuro, ou melhor, meu futuro com Arítes, o futuro do reino e meu papel nisso tudo. A nossa brincadeira acabou. Fomos ao lago nos banhar mais uma vez, pois depois, iríamos caçar nosso almoço e dessa vez, eu estava incumbida do feito. Detestava matar qualquer criatura, mesmo que para me alimentar. Mas a “Divina Graça” havia dado essa benção para que nós sobrevivêssemos, então, o faria com reverência.
— Tália, nós já perdemos dois “tecugi” e um “certa”. Quando você vai acertar uma única flecha? Eu não acredito que sua habilidade com o arco tenha piorado, substancialmente, em dois dias.
— Odeio isso. Quando vou atirar, o bicho olha para mim.
Arítes gargalhou.
— E depois você ainda acha que não é a “guardiã da indulgência”. – Falou irônica, rindo.
— Ah, para!
Detestava quando ela mexia comigo. Peguei meu arco e mirei ao longe.
— O que você tá fazendo?
— Pegando nosso almoço. Não era isso que queria?
A flecha saiu segura de meu arco. Cortou o ar e as folhas que se transpunham à nossa frente. Caminhei na mesma direção da flecha e Arítes me acompanhou. Olhava-me interrogativa, mas nada falava. Depois que atravessamos os arbustos, ela viu um “aciori”, caído e alvejado no coração. Olhou incrédula a ave rasteira, caída e inerte.
— Você tinha visto essa “aciori” de onde estávamos?
Suspirei.
— Vi.
Falei, encolhendo e relaxando os ombros, não dando importância ao fato. Na verdade, queria implicar com ela, afinal não era só ela que tinha habilidades. Ri internamente. Peguei a ave, retirei a flecha e caminhei de volta à cabana.
****
— Tália, estou começando a ficar com muito medo de ler isso. Os “Escritos” falam de pessoas que estarão ao lado do trono e da “Espada Macha”, sem terem condições de entender a verdade. Tá certo que meu tio é conselheiro, mas… não sei mais o que pensar.
Escutamos cascos de cavalo se aproximar. Arítes se levantou de prontidão e pegou a sua espada, indo em direção à janela da cabana. Vi seu rosto se transformar em espanto e empalidecer.
— O que foi, Arítes?
Perguntei assustada, pegando meu arco. Eu falava baixo.
— Shhhh. Fala baixo.
— Já tô falando baixo. – Sussurrei.
Ela fez sinal para que eu me aproximasse da janela devagar. Fui chegando pé-ante-pé, tentando olhar pelo pequeno vão, entreaberto, fazendo o que Arítes me pediu. Fiquei sem palavras. Era a criatura mais magnífica que eu já havia visto. Um cavalo branco imponente. Seguramente, seu dorso era meia cabeça mais alta que eu e não me considerava uma mulher baixa.
— É lindo, Arítes, mas certamente é de alguém. Está selado.
— Observe melhor, Tália. – Falou sussurrando.
Eu não compreendi a princípio e olhei novamente o animal. Ele batia com o casco de uma das patas dianteiras no chão e soltava pequenos relinchos. Foi quando eu vi as asas encolhidas por debaixo da sela e acomodadas no dorso. Se ele não estivesse movendo-as, certamente nem conseguiríamos reparar. Eu estava atônita e maravilhada. Busquei a mão de Arítes para sairmos de encontro ao belíssimo animal.
Fui chegando de mansinho, deslumbrada com aquela visão. Paramos a poucos passos para não o assustar, mas parecia que ele estava cônscio de que não lhe faríamos mal. Aproximou de nós, soltando pequenos ofegos pelas narinas e esticou seu focinho para cheirar meu pescoço e resfolegar. Senti cócegas e comecei a rir, afagando suavemente sua bochecha. Arítes ria da cena e estendeu-lhe a mão que foi cheirada, dando a certeza de que aceitava nossa presença e nossos carinhos. Fomos acariciando seu corpo e nos assustamos quando passamos a mão por onde achávamos que tínhamos visto as asas. Ele as abriu majestosas. Como conseguia esconder, tão bem, um apêndice tão grande? Conseguia camufla-lo sem que se fizesse ver. Rodeei-o todo, admirando. Sorri.
— E agora, menina? O que veio fazer por essas bandas? — Perguntava inebriada.
— É uma fêmea?
— É. – Afirmei.
Quando cheguei à sua frente, novamente, ela empurrou meu ombro, delicada, com o focinho e se virou relinchando para o alforje que estava sobre seu dorso. Fui até ele e reparei um pergaminho saindo pela abertura.
— Ah, menina! Mais pergaminhos?
Peguei e o abri. Arítes se postou a meu lado.
““Guardiã da indulgência” e detentora da “Espada Macha”, venham até mim. Épona trará vocês em segurança. Mas lembrem-se, quando ultrapassarem o reino da “Divina Graça”, assumirão a responsabilidade por vontade própria, pois o destino de seu mundo será depositado em vossas mãos. Pensem, pois nenhuma divindade tem o direito de decidir sobre a vontade de vocês. ”
— Que bom saber disso! Agora fico mais tranquila sabendo que posso decidir se quero ou não esse encargo. — Exclamei irônica, bufando.
Arítes riu sem muito ânimo, pois entendia perfeitamente o que sentia nesse momento. Tudo bem que a gente poderia nem ligar para as coisas que estavam acontecendo e decidir seguir com nossas vidas, mas depois de tudo que lemos e soubemos que estaria por vir? Achei que a “Senhora das Águas” estava fazendo piada com a nossa cara. E piada de muito mau gosto.
Arítes se virou e começou a andar em direção da cabana, com a cabeça baixa, e sem muito entusiasmo. Eu a segui, calada. Intuía o que girava em torno de seus pensamentos. Era chegada a hora de acabar com a diversão e levantar acampamento. Eu tinha vontade de esganar minha mãe. Lá no fundo, achava que ela sabia disso. Me deu o doce para depois cobrar a obrigação. Era bem a cara dela, isso.
Arrumamos rapidamente a cabana e pegamos nossas armas. Fomos até a égua alada e quando Arítes fez menção em subir, ela relinchou e saiu de lado. Arítes tentou novamente e outra vez a égua não deixou que ela montasse.
— Deixa eu tentar, Arítes.
Ela me deu passagem. Coloquei meu pé no estribo e a égua abaixou completamente deitando no solo. Eu sorri ao ver o rosto de Arítes contrariado. Acho que minha namorada não gostou de ser rejeitada. Montei e estendi a mão para ela. Arítes tomou minha mão e quando a conduzi para minha garupa, Épona aceitou tranquila. A égua levantou do chão e começou um galope contornando o lago.
— Não se acostuma.
Arítes falava baixo em meu ouvido, num tom desgostoso. Comecei a gargalhar.
— Não é você que tem que me defender? Assim você fica com a atenção toda voltada para isso, enquanto conduzo. – Mexi com ela.
— Sei.
À medida que íamos entrando na mata, começamos a ver o caminho mover, como se estivéssemos tontas. Na verdade, acho que o chão não estava movendo de verdade, mas a sensação que dava era de vertigem. Eu olhava para o lado e parecia que ainda estávamos beirando a margem do lago, porém a mata ficava mais fechada e as árvores ficavam cada vez mais frondosas. Desde criança, eu cavalgava por essas matas e a conhecia como a palma da minha mão, mas nada era igual ao que eu costumava ver por essas paragens. A percepção da vertigem não passava e eu começava a sentir náuseas.
— Espero que não demore a chegar. Estou enjoada.
— Eu também, Tália.
Épona aumentou o galope e meu enjoo piorou. De repente, uma clareira se abriu e a égua alçou voo. Inspirei fundo e segurei o ar. Ela sobrevoava um vale maravilhoso do qual nunca havia visto em minha vida. O lago que estava embaixo de nós era tão cristalino que, de cima, podíamos ver peixes e outras criaturas das quais não identificávamos. Olhei para trás para falar com Arítes e, em seu rosto, também se estampava o assombro pela linda visão. Percebi que meu enjoo havia passado, quase no mesmo momento que começamos a voar.
Sobrevoamos um lago, diferente do que estávamos e Épona iniciou uma descida suave, próximo à base do penhasco em que a uma cachoeira caía, alimentando o lago. Quando pousamos, ela se aproximou da boca de uma gruta, abaixou, deitando no chão. Era a nossa dica de que o passeio havia acabado. Desmontamos do animal. Estávamos de frente para a gruta. Era um convite tácito de que deveríamos entrar. Arítes tomou a frente, segurando minha mão. Olhei e ela deu um pequeno sorriso.
— Vamos?
— Tem outro jeito?
Respondi a sua pergunta com outra, mas sorria também. A beleza do local era indiscutível. Estava feliz por estar ali. Estava feliz por ver que, eu e ela, fomos agraciadas com tamanha confiança. Caminhamos, lado a lado, para dentro e assim que entramos, vimos sentinelas guardando a passagem, e fizeram uma reverência para nós. Eram mulheres que trajavam protetores de tronco em couro, saias curtas e botas em couro também, mas traziam espadas nas mãos e seus adornos em metal, nos braços e pernas, tinham o símbolo das águas, o símbolo da floresta, e ainda alguns outros adornos, traziam o símbolo do metal e do fogo. O povo da linhagem do metal e do fogo não tinham cidades próximas a nós. Eram de terras distantes mais à oeste e ao norte das nossas terras.
Reparei que cada uma dessas mulheres, trazia no semblante, os traços da linhagem que marcava seus adornos. As águas, com os cabelos tão loiros, que chegavam a ser confundidos com branco-prata, A floresta com os cabelos castanhos, o metal com os cabelos negros e o fogo, com seus cabelos ruivos. A cor da pele, não importava. Existiam pessoas de todas as cores de pele em todas as linhagens. As peles brancas, negras, vermelhas, amarelas, se confundiam nas cores de cabelo de seus clãs.
A primeira das sentinelas se adiantou e nos cumprimentou.
— Sejam bem-vindas a Tir. A Senhora das Águas está aguardando vocês. Sigam-me.
Ela sorria enquanto falava, dando leveza a nossa chegada e nos distraindo de nossa tensão. Seguimos, até que o corredor da gruta se abriu em um salão. Havia uma lareira simples em um canto, uma mesa em madeira antiga ladeada por seis cadeiras. Em frente à lareira, se dispunham um grande sofá em couro gasto e três poltronas, também em couro, que devia datar da mesma época que o sofá, de tão gasto que o couro se revelava.
— Aguardem aqui. A Senhora das Águas já vem.
A sentinela nos deixou à sós. Olhávamos tudo à volta.
— Surpresa pela simplicidade?
Perguntei a Arítes, que não deixava de mirar um único canto.
— Me alegrei com isso. O que percebo é que vivemos com muito mais do que necessitamos.
— É, eu também me alegrei. É mais aconchegante, mas a verdade, é que nós evoluímos nos nossos costumes. Não dá para voltar atrás.
— Concordo, mas dá para darmos mais valor as coisas.
— É. Tentar resgatar o que é essencial para a vida.
— Interessantes pensamentos os de vocês.
Ouvimos uma voz suave, porém firme e olhamos na direção. Ela era uma mulher alta, morena de pele e de cabelos loiros-prateados. Seus olhos eram num tom de azul tão cristalino, que beiravam o transparente. No rosto, uma fisionomia de mulher madura e belíssima. Nunca tinha visto uma mulher tão bonita como ela. Ficamos, momentaneamente, sem fala e não sabíamos como nos portar diante dela.
Ensaiamos uma reverência, mas ela se aproximou e nos segurou para que não nos curvássemos.
— Não há necessidade dessas formalidades. Exijo esse tipo de reverência para com meus opositores, não com meus amigos. – Ela sorriu. — Venham, sentem-se comigo. Estão com fome?
— Não, Senhora. – Falei.
— Me chamem simplesmente de Bonan. Esse é meu nome.
Assentimos com a cabeça. Em nenhum “Escrito” que havíamos lido, não constava os nomes das “Senhoras” dos quatro reinos. Éramos novamente pegas de surpresa em nosso passeio.
Ela olhou para Arítes atenta, deixando minha namorada ligeiramente desconfortável. Rodeou a general, como que avaliando seu aspecto.
— Você ainda rende tributos, general?
Não entendi a pergunta e percebi que nem Arítes.
— Sim, Senhora. – Respondeu.
— Não falo a mim e sim, a Senhora da Floresta. Arítes, apesar de viver em uma cidade onde é comum a reverencia a mim, você é da linhagem da floresta. Alguns andam esquecendo seu clã. Quando veio a “guerra do caos”, seu povo ficou estigmatizado. Muitos deixaram de reverenciar a Senhora da Floresta.
— Mas não eu, Senhora. Sei de onde eu vim.
Bonan deu um pequeno sorriso.
— Sei que não deixou de reverenciar e não pense que pergunto isso, por achar necessário os tributos que nos prestam. Muitos o fazem por medo. A verdade é que não faz a menor diferença para nós. Os tributos, fazem mais falta para vocês do que para nós ou para a Divina Graça.
— Então, por que pergunta? – Arítes inquiriu.
— Por que quando prestam tributos, seus pensamentos se elevam. O egoísmo permanece de fora de seus corações. A energia que envolve seus corpos, expande em luz. Esse é o verdadeiro sentido. Mas deixemos isso de lado por agora. Essa compreensão se fará com o tempo… Bem, gostaria que jantassem conosco.
— Conosco? – Perguntou Arítes.
— Sim, conosco. Eu, Badotê, que é a Senhora do Metal, Bridma, que é a Senhora do Fogo e Fidae, Senhora da Floresta. Vocês, ou melhor, o povo da outra realidade, chegou no ponto em que a Divina Graça havia previsto. É chegada a hora de ajudarmos a trazer a harmonia aos reinos.
— Então, os reinos estão definitivamente separados. A nossa realidade é uma e o reino da magia é outro, ou não? — perguntei.
— Sim e não. Sim, pois nunca mais estaremos no mesmo plano e não, pois o que acontece em qualquer plano, afeta diretamente o outro. Se o nosso plano for dizimado, toda natureza no seu plano morre e vice-versa. Eles são uma coisa só, apesar de vocês não terem mais a permissão de verem o lado de cá.
— Foi uma proteção mútua que a “Divina Graça” concedeu à todos, então. – Afirmei.
Ela assentiu com a cabeça, enquanto se sentava em uma das poltronas.
— Sentem-se. Vamos conversar enquanto minhas irmãs não chegam.
Sentamos no sofá de frente para ela.
— Outra coisa que não devem saber e que lhes falarei agora. Nós, “Senhoras dos Reinos”, não somos imortais como imaginam. Ou melhor, somos imortais enquanto energia, assim como vocês, mas morremos para esse mundo. Nosso cargo é passado por hereditariedade e competência. Apenas vivemos muito mais anos que vocês e, no nosso plano, detemos o poder da magia muito mais elevado que outras pessoas. Por isso, somos as zeladoras da natureza, por assim dizer. Nosso poder é extraído de cada reino ao qual somos ligadas.
Outra grande surpresa permeou os meus e os olhos de Arítes.
— Então, por que precisam de nós?
— Porque podemos atuar em seu plano, mas não podemos interferir diretamente nas decisões que vocês tomam. Se o fizéssemos, seria escravidão e não evolução. De qualquer forma, seu reino morreria.
Uma luz de entendimento passou por meus pensamentos.
— Aí todos morreriam… Inclusive seu reino e todos que vivem nele.
— Bem compreendido, Tália. – Ela sorriu.
A sentinela que nos recebeu, entrou pelo corredor anunciando.
— As “Senhoras” chegaram.
— Venha aqui, Veras. – Falou a “Senhora das Águas” – Esta é minha filha.
Olhamos e ela novamente sorriu. Retribuímos seu sorriso aberto.
— Muito prazer, Veras. – Falei.
— O prazer é todo meu, Guardiã. – Ela olhou Arítes. – A você também, “Protetora”. Vou conduzir as “Mães” dos reinos, com licença.
— Aqui não há homens?
Perguntei confusa e Bonan riu, diante de minha pergunta.
— Claro que há. – Continuou rindo de nossa curiosidade. — Desculpe, mas é que vocês vieram diretamente para minha casa então, não puderam ver o nosso reino todo. Somos um povo e não uma sociedade divina, à parte de tudo.
— Então por que as guardiãs e protetoras são todas as mulheres? Por que não há homens carregando esse destino?
— Pela característica de personalidade. Nós mulheres, somos compreensivas, delicadas, mas talvez mais bélicas que os homens, quando afrontadas nas convicções. Somos capazes de dar a vida por ideais, mas também por amor. Os homens, são guerreiros valorosos, são diretos e práticos, porem tem a força bruta. É fácil se perder, achando que pode subjugar o outro pela força. No entanto, há um equilíbrio, pois se eles podem ser assertivos, nós podemos ponderar e perdoar com mais facilidade. Não é uma disputa de quem é o melhor, e sim, diferenças que tem que ser respeitadas, aceitas e equilibradas, numa convivência comum e harmônica. Cada qual com suas características, seus papeis e suas responsabilidades para o engrandecimento.
— Entendo. Mas mesmo assim, não entendo por que não existem homens de sentinela? – Arítes inquiriu.
— E não existem nem mulheres sentinelas. Essas sentinelas que vocês veem aqui hoje, só foram escolhidas para recepciona-las e tornar a sua chegada menos tensa. Na verdade, não tenho sentinelas e nem guardas.
Ela sorriu deixando o entendimento no ar para nós. Para que guardas em um reino em paz?
Bonan se levantou e foi até a entrada da sala. Por ela, vimos passar três mulheres lindíssimas. Imaginava se a energia desse lugar fizesse com que todos os seres resplandecessem. A primeira que passou, tinha os cabelos até a cintura, num ruivo brilhoso e ondulado. Quando abraçou Bonan, nos olhou. Seus olhos eram de uma cor que eu quase não conseguia definir. Era como se fosse amarelo mel, ou por vezes se confundia com a cor de seu cabelo avermelhado, intenso e brilhante. Abriu um sorriso alegre e olhou diretamente para Arítes. Se desvencilhou, falando algumas palavras para a anfitriã e veio de encontro a nós. Levantamos para recebe-las.
— Que alegria, tê-las aqui. Pena que numa situação complexa, mas não tira o brilho do momento. Venham me abraçar, meninas!
Puxou Arítes para um abraço apertado e eu não consegui conter meu riso. A general estava desconcertada. Com toda a certeza não esperava, em sua vida, ser abraçada de forma tão efusiva, por uma daquelas que sempre prestou reverências.
As outras “Mães” dos reinos abraçaram Bonan e vieram de encontro a nós, também. Recebi a “Senhora do Fogo” em meus braços. Eu estava emocionada. Depois fui abraçada pela “Senhora do Metal”. Uma mulher alta, morena como se seu corpo fosse banhado pelo sol todos os dias. Olhos negros como a noite e cabelos também negros, num tom de ébano reluzente. E, por fim, olhei para meu lado e vi uma mulher negra, de cabelos castanhos, da cor dos de Arítes, a abraçando com extremo carinho. Trajava um vestido de couro colado, dando a visão de um corpo rígido de musculatura avantajada. Quando se separou do abraço, pude ver os olhos verdes escuros intensos e semblante risonho. Falou algumas palavras para Arítes que não pude ouvir e virou-se para mim.
— Venha, minha querida. Me dê um abraço.
A mulher me envolveu em seus braços fortes e pude notar que a semelhança de Arítes com a “Senhora da Floresta”, não era apenas os olhos e cabelos. Trazia em seus gestos a mesma segurança que sentia, quando Arítes me abraçava.
Estas, seguramente, eram as mulheres mais lindas que eu havia visto em minha vida. Não só a beleza física, mas a força, a atitude e a graça que traziam em seu gestual.