O general estreitou os olhos e pediu para o coronel Calligan, que eu não conhecia, entrar na arena e pegar a arma escolhida. Parece que eu surpreendi a todos e inclusive a mim mesma. Não imaginava que a minha habilidade poderia melhorar sensivelmente, só por utilizar a arma que era minha conhecida de muito tempo e cujo esforço de minha mãe, me fez resgatar. Não treinava há mais ou menos um ano com o “takubi”, mas depois dos exercícios intensivos com minha mãe, só me fez lembrar do quanto gostava dele. Passei pelo coronel. Eu definitivamente não acreditava. Lutaria com um general de esquadrão à tarde.
Fui impedida de ver qualquer pessoa ligada a mim, intimamente, até a hora do combate. Eram as regras, nesta fase, para quem nunca tinha ingressado no exército. Se eu tinha chegado até aqui, tinha que lidar com as pressões também. Fiquei apreensiva, mas vi que poderia ir a general de esquadrão quando passei pelo coronel. A minha luta fluiu com o “takubi”. A facilidade com que eu o manejava, não foi nem um pouco inferior a do meu oponente, muito pelo contrário. Esperava, agora, que os demais oponentes não fossem adeptos da utilização dessa arma em combate.
A tarde chegou e com ela, a minha luta. Novamente, minha habilidade no “takubi” me pôs na frente e mesmo perdendo na espada, outra vez, fui para o arco com tranquilidade. Passei pelo general de esquadrão.
A noite veio e me preparava para me recolher cedo e acordar bem, mas não sem antes falar com minha mãe, Arítes e Tétis. Todas estávamos eufóricas.
— Minha filha, sabe o que isso significa?
— Que vou me dar mal quando estiver na escola militar e que tem um monte de oficiais me odiando?
Ri sem muito ânimo, mas Tétis, minha mãe e Arítes riam frouxo.
— Não, minha filha. Não são todos que estão te odiando, na verdade, meus espiões ouviram muitos falarem bem de você e se admirarem com seu feito. Várias pessoas vieram me perguntar se a treinava. Falei que eventualmente, para não levantar suspeitas de nosso treinamento intensivo no último mês, mas dei o crédito a quem merecia. Disse que o grande detentor da proeza foi Deitônio, ao longo dos anos. E isso é um fato. Para falar a verdade, eu também estou admirada pelo seu feito.
— Tália, eu estou me sentindo ridícula pensando que eu estava te protegendo por esses dias. – Tétis falou, rindo abertamente. – Sinceramente, acho que quem precisava de proteção contra você era eu…
Ela olhou para Arítes rindo. Envergonhei-me, pelas vezes que ataquei Tétis com olhos de ciúme.
Arítes permaneceu depois que todas se foram. Ela me abraçou, me beijando ternamente. Eu precisava dela e ela sabia. Seus lábios acariciaram minha boca e meu corpo foi relaxando em seus braços. Enlacei sua cintura, trazendo-a, mais próximo que podia. Era incrível o que meu corpo experimentava com ela. Tentava descrever as sensações e não conseguia entender, a quantidade de coisas que eu sentia. Um calor me dominava, ao mesmo tempo que, eu estremecia em seus braços. Arítes gemeu em meus lábios, fazendo com que um fluxo escorresse meu prazer. Pela Deusa! Eu estava enlouquecendo com ela. O gemido agora brotava de minha garganta. Ela desvencilhou suavemente de meus lábios.
— Você tem que descansar. O dia amanhã será muito duro para você.
— Depois de amanhã, independente do que ocorra, será um dos melhores dias de minha vida.
— Em sua reclusão pós-teste?
— Sim. Acredite, Arítes. Você verá.
Falei sorrindo, sabendo que ela não entendera.
— Se está falando… Quem sou eu para lhe contestar.
Ela se foi, após nos beijarmos novamente, e me senti apreensiva outra vez.
****
Não pensei que fosse ver o general Gwinter, tão cedo. Pelo visto, ele tinha sorte nessas escolhas, “aleatórias”, dos sorteios para os combates.
Fiquei feliz por ter escolhido o takubi. Deu-me segurança e quando mais precisei, consegui lembrar de meus treinamentos com mestre Deutônio e com minha mãe. O general tinha muita força e quando eu via que iria ter que segurar algum golpe, tentava me esquivar. Era cansativo e permanecemos, nessa luta de gato e rato, por muito tempo. Num dado momento, ele se desequilibrou, quando me esquivei de um golpe agressivo perpetrado por ele. Vi ali, minha oportunidade. Agachei girando meu corpo e arremetendo com força, os dois bastões do takubi em suas pernas. Vislumbrei ira nos olhos do general, quando jazia caído sob minhas armas cruzadas em seu pescoço. A multidão se levantou aclamando e nesse momento, senti que havia ganhado um inimigo no exército.
Meu combate com espada me rendeu uma derrota e um corte extenso no antebraço esquerdo. Ele foi perverso. Tive certeza que ele quis me inutilizar no combate com arco, depois que perdeu para Arítes, nesse quesito. Eu sangrava e não deixaram que ninguém ligado a mim, fosse a meu encontro. Estava numa ala onde ficávamos para nos recuperar. Permaneci isolada, com uma curandeira que cuidava das tropas. Doía muito. Tinha que estancar o sangue e imaginava que não conseguiria segurar o arco, quanto mais disparar uma flecha.
— Seu orgulho está mais ferido que seu braço.
A curandeira me falou e olhei-a em seus olhos. Eles não me eram estranhos…
— Diga isso para meu braço.
Ela conseguiu estancar o sangue com uma compressa que continha um pó e eu a olhei mais uma vez. Eu estava assombrada, em como ela conseguiu parar o sangramento.
— Ele vai sarar.
Ela falava despreocupadamente, limpando meu antebraço. O sangue havia secado e ela sorria. A princípio, ela parecia ser uma velha senhora sob um manto, assim que entrou na sala, mas quando voltei a olha-la, sem o capuz que cobria sua cabeça, vi que era uma mulher madura de semblante sereno, não uma velha.
— Se vencer, está preparada para suas responsabilidades?
— Nunca fugi delas, apenas nunca confiaram em mim para me darem qualquer responsabilidade.
Depois de limpar com calma, ela passou um unguento e cobriu com uma atadura. A dor dissipou quase que instantaneamente.
— O que…
Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa a ela, pois meu braço não doía mais nada, segurou minhas mãos e me encarou. O azul de seus olhos era tão cristalino que chegavam a ser transparentes.
— Tália Renoi de Cadaz e Eras, filha de Êlia Renoi de Cadaz e Astor de Eras, após vencer a luta e ir para seu recolhimento, você terá responsabilidade no exército de Eras e o compromisso de lutar pela Divina Graça. Proteja com sabedoria, os “Escritos Sagrados”, assumindo seu lugar na casta das guardiãs. Que a Senhora do Lago lhe abençoe.
Eu estava chocada. Ela largou minhas mãos. Quem era essa mulher e o que ela sabia dos “Escritos Sagrados” e da casta das guardiãs? Um pajem veio me chamar para que fosse para a área de combate. Quando me voltei para a mulher, ela já havia saído. Ainda vi seu manto, farfalhando, na beirada do portal da outra saída.
Caminhei até a área, onde estavam as marcas. Meu antebraço estava envolto na atadura e tinha manchas de sangue. Quando passei pelo general, o encarei. Ele não desviou o olhar, não sorriu e nem fez nenhuma expressão de contrariedade também. Não dava para perceber, se ele estava intrigado com meu retorno à arena, depois do corte que ele me perpetrou.
A parte dos alvos fixos foi fácil. Vieram as passagens com os cavalos. Fizemos quatro passagens cavalgando e pelo que vi, dessa vez o general escolheu as flechas corretas, bem como tomou cuidado com a pontaria. Ele partiria para mais uma passagem e, dessa vez, os alvos estavam em movimento.
Três alvos haviam sido presos no dorso de três javalis e soltariam os animais, que correriam pelo campo. Este sim, seria um desafio. Tínhamos que acertar os alvos, antes que ultrapassasse marcas, que foram colocadas como limite. Também não poderíamos machucar os animais. Se acaso os machucássemos, seríamos desclassificados. Soltaram os javalis e ele foi no encalço. Conseguiu acertar dois alvos, mas perdeu o ritmo e o último javali ultrapassou a marca.
Agora era a minha vez. Ajeitei-me no dorso de meu cavalo e acariciei o seu pescoço. Segurei o meu arco com a mão esquerda e peguei uma flecha com a direita. Sinalizei para que soltassem os animais. Parti em galope. A primeira flecha saiu segura, antes que o alvo se distanciasse. Rapidamente peguei outra na aljava, em minhas costas, e disparei no segundo alvo, que estava mais próximo a mim, não perdendo o terceiro alvo de vista. Peguei a terceira flecha na aljava e vi que meu alvo se distanciava. Diminui o galope fazendo a mira. Sabia que o alvo se distanciaria mais, em compensação, eu teria mais estabilidade para disparar a flecha. Estiquei bastante a corda do arco, para lançar igualmente distante, e soltei. Ela cortou o ar firme, se alojando logo em seguida no centro do alvo. Vi os pajens pegando os cavalos para caçar o javali e retirar os alvos de seu dorso. Esses javalis seriam soltos. Fim de combate.
Eu não cabia, em mim, de tanta felicidade. Muitos invadiram o campo vindo em minha direção. Foi difícil retornar. Olhei a tribuna e meu pai estava de pé, aplaudindo sorridente. Agora eu era general, não de esquadrão, mas de exército. Comecei a tremer. Não pensei antes sobre isso, mas essa ideia me assustou além da conta. Não cursei a escola militar e, apesar de ter as habilidades específicas de luta, teria que me esforçar muito, para alcançar o que todas essas pessoas levaram anos para galgar. E qual o propósito? Mostrar a um bando de inconsequentes que eles estavam acabando com a equidade em nosso reino?
“Divina Graça, me ajude!”
Arítes logo reuniu um esquadrão para chegar até meu cavalo e afastar a multidão, escoltando-me. Nessa confusão, ela teve medo que alguém, com pouco senso e más intenções, fizesse alguma besteira. Independentemente de qualquer coisa, eu ainda era a filha do Rei e da comandante-general. Para complicar a história, agora havia mexido com brios de pessoas traiçoeiras, e que ainda não sabíamos quem eram. O esquadrão conseguiu chegar ao cavalo, fazendo um bloqueio da multidão para que eu passasse. Cheguei à tribuna, apeei e fui de encontro aos meus pais.
Meu pai me abarcou em seus fortes braços, beijando-me a cabeça e minha mãe esperava sorridente a seu lado.
— Minha filha, estou tão orgulhoso de você… perdoe-me esses últimos tempos. Andei conversando muito com Êlia, esses dias, e sinceramente, me sinto envergonhado pelas minhas atitudes com você.
— Não tem importância, pai, estou feliz que tenha lhe dado felicidade, hoje.
Desvencilhei-me e minha mãe veio a meu encontro. Minha mãe, minha amiga e agora, minha companheira de armas.
Ela me abraçou e beijou, e vi uma lágrima descer de seus olhos sorridentes. Estava com a voz embargada pelo choro. Comecei a chorar também, copiosamente.
Uma fila de pessoas veio subindo e passando pela tribuna para me cumprimentar. O regimento de Arítes continuava de prontidão, fazendo a guarda. Olhei seu rosto e ela estava tensa, olhando tudo à minha volta.
— Tália! Que grande surpresa! Venha me dar um abraço.
O general Galian me abraçou com um enorme sorriso.
— Eu sou um tonto. Imagina que Êlia Renoi de Cadaz, não faria de sua filha uma aguerrida general.
— Na verdade, Galian, Tália deve muito mais a Deitônio e a ela mesma, do que a mim.
— Mas tendo sua benção, comandante. Não poderia ter feito melhor.
Os conselheiros se aproximavam e fui cumprimentada por cada um. Tórus e Vergás foram os últimos.
— Parabéns, princesa. Surpreendeu a todos.
Vergás falou sorrindo, me abraçando e logo atrás vinha Tórus. Este, não estava com a cara muito boa. Seu sorriso era fraco e parecia forçado.
— Meus parabéns, princesa, mas tenha mais cuidado daqui por diante.
— Ãh?
Minha cara de espanto se fez visível aos olhos de minha mãe e de Arítes. Assim que ele falou, rapidamente se desvencilhou e desceu da tribuna, se misturando com a multidão.
No dia seguinte, seriam as festividades na praça central do castelo. Não era costume fazer festa na corte. Era uma festa do exército. Tinha que participar, em uniforme de gala, condizente com a minha recente patente. A loucura do trabalho árduo, se espalhava pelas inúmeras costureiras do reino. Este ano, elas tinham muitos uniformes para fazer até à noite do outro dia.
****
Com todo o reboliço que houve quando derrotei o general Gwinter, não consegui estar com minha mãe e Arítes a sós no dia de ontem. Fui arrastada a um turbilhão e logo o dia acabou. Depois do café da manhã, minha mãe e Arítes me acompanhavam pelo corredor para podermos conversar rapidamente, pois havia muita coisa a ser feita, por elas e por mim.
— Filha, o que Tórus falou na tribuna à você, ontem?
— Ele me parabenizou e disse para eu ter mais cuidado, daqui por diante.
— O quê? — O rosto de Arítes se transformou em revolta. – Ele te ameaçou? Eu não acredito que meu tio tenha feito isso!
— Calma, Arítes. – Minha mãe pediu. – Ele não se arriscaria a confrontá-la desta forma. Alguma coisa não está encaixando.
Minha mãe tinha os olhos cansados e a tensão se estampava no rosto dela, novamente.
— Mãe, coisas estranhas andam, realmente, acontecendo. Ontem lá no reservado, que ficamos para nos tratar depois dos combates, uma curandeira do exército veio cuidar de mim.
— Uma curandeira do exército? Não temos nenhuma mulher curandeira no exército. São três curandeiros, mas todos homens.
— O quê? Mas foi uma mulher de seus trinta e poucos anos que veio me ver. Ela colocou um pó na minha ferida e conseguiu estancar o sangue. Depois, colocou unguento em uma atadura e envolveu meu braço. A dor passou na hora. Por isso, pude fazer a prova do arco.
Minha mãe olhou meu braço e pediu para remover a atadura. Quando a tirei, restava uma fina linha, onde achava que ficaria uma cicatriz feia, pelo tipo de corte que o general havia feito.
— Ela não lhe falou nada?
Contei a minha mãe o que ela havia dito e, mais uma vez, o espanto estava visível nos semblantes de minha mãe e de Arítes.
— Pela Divina Graça! Ao menos, contamos com a proteção dela. Você recebeu uma mensageira da “Senhora das Águas”, minha filha.
— O quê?
— Mais adiante lhe contarei sobre tudo que envolve os “Escritos Sagrados”, mas, por agora, aproveite sua conquista. Vá para a festa na praça. Já comunicou ao comando onde quer fazer seu recolhimento?
Eu sorri, mordendo meu lábio levemente.
— Sim.
— Aliás, eu gostaria de conversar com você sobre isso, Tália. Que loucura é essa de se recolher na cabana do lago? – Perguntou Arítes, alarmada. – Você ficará desprotegida. Ninguém pode ficar com você. Eu não vou permitir que vá. Falarei com o comando.
— Eu já resolvi isso, Arítes. – Falou minha mãe. – Conversei com o comando. Não poderá ser negado a ela, o direito de se recolher onde é seu desejo, mas também não vou permitir, que a minha filha fique sem a sua guarda pessoal em um local desprotegido.
Minha mãe piscou para Arítes. Eu nunca tinha visto minha amada tão vermelha como hoje. Abri um enorme sorriso.
— Para chegar a cabana, é preciso passar pela floresta e pela boca da encosta. Terá uma guarnição que ficará de guarda na entrada da floresta. Não se preocupe. Vocês estarão seguras.
Assim que minha mãe falou, cumprimentou-nos com um aceno de cabeça e se retirou. Estávamos caminhando pelo corredor real para chegar até meu quarto. Arítes me acompanhou em silêncio e achei que ela não havia gostado da surpresa. Cheguei ao meu quarto para encontrar a costureira que estava fazendo meu uniforme. Iria prova-lo, antes que ela fechasse a costura. Arítes parou de frente para mim na porta do quarto.
— Você armou isso, Tália?
Olhei-a inquisitiva, pois não compreendia a reação de Arítes. “Será que ela não gostou da surpresa? ”
— Você não gostou da surpresa? – Meus olhos transpareciam decepção. – Pensei que gostaria de passar um tempo comigo à sós.
Minha voz saía embargada pelo presente desapontamento e meus olhos estavam carregados de tristeza.
— Não é isso, Tália. Eu gostaria que tivesse me participado. Ontem, tive muito medo daquela multidão a cercando. Não pelo povo em si, mas porque estamos vivendo tempos de tensão. Qualquer um, com más intenções, poderia tê-la atingido facilmente. Eu tenho medo de perder você e acho perigoso ficarmos isoladas.
Fiquei aliviada com suas palavras, por não ser algo relacionado a nós pessoalmente, mas ao mesmo tempo, Arítes tinha que começar a me ver como uma pessoa que sabe se defender. Fiquei furiosa.
— Arítes, será que, nem com todo esse circo, que foi galgar essas drogas de postos no exército, você vê que posso me defender? Ainda me vê como uma princesinha boba, general?! – Acentuei o tom de minha voz, quando me referi a ela com sua patente. — Poderia pelo menos fingir felicidade, por saber que minha mãe nos apoia, e que ela dá valor a essa droga que sinto por você!
Virei-me para entrar em meu quarto. Vi a mão de Arítes segurar forte meu braço.
— Para, Tália. Não é nada disso. Só que… – Ela inspirou fundo e exalou com força. – Desculpa, eu…
Deixou que seus ombros caíssem em desolamento. Segurou a trava da porta e empurrou. Entrou, me deixando à beira do portal. Olhou a senhora que me esperava sentada num canto.
— Pode nos deixar um momento, por favor? Já, já a chamamos.
A velha costureira acenou com a cabeça e passou por mim, fazendo uma mesura. Entrei, fechei a porta e fui arrebatada, rapidamente, pelos braços de Arítes. Estreitou-me e não tive tempo de reagir ou me aborrecer com ela. Beijou meus lábios com força, violência até, para depois aninhar seu rosto em meu pescoço.
— Você não sabe o quanto é cara para mim, Tália. O quanto tenho medo de que algo aconteça a você. Entende porque me afastei todo esse tempo de você? Eu não consigo pensar que, um dia, eu possa te perder. Imaginar que existem pessoas tão próximas, tramando contra o reino, me deixa tão furiosa quanto em alerta.
A voz saía com dificuldade e ela respirava pesado em meu pescoço. Desabriguei-a de seu esconderijo, puxando seu queixo para que ela me encarasse.
— Arítes, o perigo é real e nos espreita a todo momento. Não podemos deixar de viver, por conta disso. A única coisa que podemos fazer, é ficarmos atentas e sermos mais inteligentes. Só não podemos nos deixar levar. — Beijei seus lábios suavemente. — Não estaremos em perigo. Só o comando e a guarnição que nos acompanhará, saberá onde estamos. Seria muito arriscado, para quem quer que seja, nos atacar ali.
Ela se recompôs e meneou, levemente, a cabeça. Parou um tempo e sorriu.
— Você é terrível! – Deu uma pausa, me mirando divertida. — mas acho que posso suportar, prazerosamente, essa pequena reclusão na cabana do lago.
— Na verdade, esse ardil não foi meu. – Sorri. — Foi minha mãe, que me lembrou, que poderia fazer meus três dias de recolhimento na cabana. Ela que também falou que exigiria do comando minha escolta pessoal.
A general gargalhou diante da revelação.
— Sua mãe está saindo melhor que uma fada.
Arítes me puxou novamente para um abraço apertado e, logo em seguida, me beijou novamente.
— Vou sair para que faça a prova da sua roupa. Vou fazer a minha também, a costureira já deve estar em meu quarto.
— Nos encontramos à noite na praça?
— Claro que não. Venho te buscar. Ainda sou sua guarda pessoal, ou não?
— Arítes, teremos que conversar sobre isso. Daqui a cinco dias, quando estarei efetivamente em meu posto no exército, sabe que não será minha guarda, não sabe?
— O quê? Por quê?
— Arítes, já viu minha mãe com escolta? Já viu qualquer nobre que compõe o exército com escolta?
Questionei com naturalidade. Não havia qualquer motivo plausível, para continuar sendo escoltada para cima e para baixo por alguém. Principalmente, uma pessoa no cargo que hoje ela e eu ocupávamos.
— Pois eu vou continuar fazendo. Não vou abrir mão, Tália. Sabe que estamos numa época perigosa. Posso argumentar com o comando e não me impeça.
Ela falava aflita e de forma imperiosa. Sacodi minha cabeça, sorrindo desanimada. Conversaria com ela depois e não hoje. Já havíamos tido muitas mudanças por esses dias e não queria entrar em outra discussão. Beijei brejeira seus lábios.
— Vai para seu quarto, que estamos nos atrasando.
Ela me beijou rapidamente e se foi.
****
As batidas na porta me tiraram a concentração. Estava há algum tempo tentando prender o protetor de tórax, sem sucesso.
— Quem é?
Falei irritada.
— Sou eu. Arítes. Não está pronta, Tália? Estamos atrasadas uma hora. Todos já devem estar na praça.
Abri a porta agastada com a porcaria que não conseguia prender.
— Ótimo que chegou. Assim pode me ajudar com essa coisa. Não consigo prender.
Ela entrou, enquanto eu virava de costas, retornando na direção do meu espelho. Senti seus olhos sobre mim e olhei para trás, para ver o que estava fazendo, que não vinha me ajudar. Eu estava surtada com esse colete. Ela sorria e me olhava de cima a baixo.
— Você está linda, Tália!
Quem ficaria irritada com uma namorada elogiando desse jeito? Sorri também. Fiz um gesto, com a cabeça, para que viesse ao meu encontro.
— Me ajuda aqui, Arítes. Já estou surtando com isso.
Ela se aproximou, tirou o cordão de minha mão e foi desfazendo o enlace que tinha feito na parte de baixo.
— Olha aqui. Ele prende assim. Você tem que passar primeiro nessa casa de baixo para depois cruzar pela parte de trás. – Foi passando o cordão delicadamente pelas casas e explicando como fazia. – Prendendo na parte de baixo, você sobe até a casa de cima, na parte de trás também, e cruza por dentro, prendendo na presilha do ombro. Pronto. “Tá” incomodando?
Ela me perguntou, com um pequeno sorriso em seus lábios. Olhei o efeito no espelho. Gostei de me ver naquele uniforme. Nos olhamos através do espelho. Ela estava a poucos centímetros de minhas costas. Estava maravilhosa também. Me abraçou por trás e apoiou sua cabeça em meu ombro.
— Vai ter um monte de gente te olhando com cobiça. Não sei se vou gostar disso.
Eu a olhei por cima de meu ombro, novamente. Capturei seus lábios, que estava a centímetros da minha boca e ela me virou de frente. Nosso beijo aprofundou, arrancando suspiros de nós duas.
— E você acha que gosto quando te olham, também? Não pense que não observei as pessoas, quando você estava na arena de combate. Você tem muitos admiradores, sabia?
— Então a gente combina assim. Eu não saio de perto de você e nem você sai de perto de mim.
— Combinado.
****
A praça estava cheia, mas ainda faltava muita gente. As barracas dos comerciantes vendiam de tudo. Comidas, doces, bebidas. Me senti um pouco tímida, pois muitas pessoas do povo vieram me cumprimentar e demonstravam alegria por minha conquista. Fomos nos misturando com a multidão. Outros oficiais estavam circulando também, assim como soldados que haviam acabado de ingressar no exército. Todos os anos, observava essa confraternização, mas nunca havia participado. Ficava triste, eu acho. Meu sonho era poder participar como integrante do exército e pensava que nunca alcançaria esse sonho. Bem verdade, que também não esperava que o dia que participasse, estivesse na posição que alcancei e namorando a mulher que amei tanto tempo calada.
— Por que nunca quis vir a festa do exército nos outros anos?
Arítes perguntou, quase lendo meus pensamentos.
— Você sabe a resposta. Eu queria estar aqui como integrante do exército.
— General…
Escutei uma voz atrás de mim.
— Como vai, coronel?
Retruquei Tétis, no mesmo tom jocoso. A festa não era para oficializar nada. Era apenas apresentação dos novos oficiais e confraternização de todos, como uma comunhão com a população. Não havia programação oficial do exército, além das canções e danças, nas quais, todos participavam livremente. Resolvemos brindar e fomos procurar uma barraca de bebidas.
— Querem cerveja? – Perguntou Arítes.
— Para mim, sidra. – Respondi.
— Vou acompanhar Tália. — Tétis falou.
— Então, nosso brinde será com sidra. Vamos procurar quem está vendendo.
Fomos caminhando até que vimos uma barraca, mas Arítes parou estanque.
— Acho que tem uma… ah… para lá.
Ela apontou em outra direção. Foi quando reparei nas cores da barraca. Era de Kamar. Olhei para dentro e havia uma moça muito bonita e um senhor atendendo. Segurei Arítes pelo braço. Tétis nos olhava confusa.
— Pode deixar que eu compro para nós e trago até aqui.
— Tália…
Quando Arítes me chamou, já me encontrava à três passos da barraca. Encostei no pequeno balcão improvisado e me dirigi diretamente a garota que terminava de servir um cliente. Queria olhá-la de perto.
— Quanto é a sidra?
Seu olhar era firme e sua atitude segura.
— Um dakman pela caneca e três dakmans pela jarra, senhora.
Peguei o valor na bolsa que trazia presa ao cinto.
— Uma jarra e três copos, por favor.
Ela encheu uma jarra e me entregou sorrindo. Seu rosto era delicado e o sorriso aberto. Ela era muito bonita. Me odiei por ter ido até ali.
— Aqui está o dinheiro.
Entreguei o dinheiro, peguei as canecas e a jarra, e tratei de sair dali o mais rápido que pude. Minhas entranhas estavam em reboliço e meu estomago revirado. Quando cheguei, vi o rosto de Arítes vermelho e os olhos baixos, demonstrando preocupação. Eu queria bater em Arítes. Precisava ter sua experiência sexual com uma mulher tão bonita?
— Encontrei vocês.
O noivo de Tétis chegou nos cumprimentando, efusivo. Era visível que estava muito feliz por sua noiva. A abraçou e começou uma conversa animada com ela. Entreguei a caneca para Tétis.
— Deixe-me ajudar com isso.
Arítes se prontificou. Eu tinha um sentimento intruso que se alojou em meu peito. Era uma mistura de raiva e aflição. Arítes falou baixo e próxima a mim, para que só eu ouvisse suas palavras.
— Tália, isso aconteceu há tempos e não fazia ideia que eles montariam barraca na festa. Por favor. Eu não fiz segredo a você e não sinto nada por ela.
Eu sabia que não podia cobrar nada. Isso não queria dizer que não sentia ciúmes ou contrariedade pela situação. Também não era justo, com Arítes, estragar a noite. Suspirei, desalentada.
— Não estou cobrando nada, Arítes, só que… ah, deixa para lá.
Senti Arítes chegar mais perto. Ela quase me abraçou, mas desistiu. Suspirei novamente.
— Vamos para o outro lado da praça. Não quero passar a noite olhando aquela barraca. – Falei.
— Vamos, então. – Ela se apressou em caminhar.