Eras

Capítulo 1 – Eras

— Tália! Tália!

Eu queria ficar só. Não queria ser vigiada o tempo inteiro. Era um verdadeiro tormento, as amarras imaginárias encobertas pela beleza do reino! Sim, meu pai era o soberano e vi minha mãe perecer num amor prisioneiro. Minha mãe era tão linda e cheia de vida…. Pergunto-me, se acaso consentir fazer tudo que ele quer, minha chama interior se apagaria como a de minha mãe?

— Estou aqui, Arítes!

Eu amava olhar a corredeira do rio e deixar que o vento bagunçasse meus cabelos, deixando-os com uma aparência revolta. Havia-os cortado, desde que meu pai me censurou por treinar com o mestre de armas. Disse-me que nunca teria habilidade, se ficasse o tempo inteiro e a cada investida de meu oponente, consertando os cabelos. Lógico que sua intenção era que eu parasse de treinar e não que eu os cortasse. Parar de treinar com espada, com arco e na disputa corporal nunca o faria! Por conta disto, passei duas semanas sem poder sair além das muralhas do reino, sem treinar e sem falar com nenhum de meus amigos. O castigo foi ruim, mas a liberdade depois foi melhor.

Eu tinha vinte e um anos e neguei todos os pedidos pela minha mão. Não queria me casar e acabar como a minha mãe, tolhida de sua magnitude. Ela havia sido uma exímia amazona arqueira no exército de meu avô. Meu pai se apaixonara por ela, enquanto eram companheiros de esquadrão. Meu avô morreu, meu pai assumiu e desposou minha mãe, que agora se encarregava das questões “gerenciais” do castelo, apesar de ser a “comandante oficial” dos exércitos.

Um dia, quando treinava sozinha no jardim particular, próximo ao meu quarto, minha mãe veio me ver. Em dado momento, se aproximou me ensinando as malícias e técnicas para empunhar um arco. Fiquei fascinada como ela conseguia enxergar até a mais delgada folha e atirar uma flecha tão certeira, que mal rasgava o pequeno apêndice, antes de prendê-lo no tronco robusto da macieira. Desde então, não passava um só dia em que não treinasse o arco. Queria atingir a mesma perfeição e graça com que ela o utilizava.

— Tália, vamos, antes que seu pai mande procura-la.

Arítes era a minha guarda pessoal. Na verdade, crescemos juntas e ela era a neta do conselheiro e comandante de meu avô. Não posso dizer que somos exatamente amigas, pois sempre que tentei estreitar nosso relacionamento, ela sempre se distanciava. Nunca entendi porque, pois quando crianças, brincávamos juntas, mas quando fez doze anos e optou por uma educação militar, afastou-se aos poucos.

— Arítes, meu pai tem coisas mais importantes para fazer do que me procurar no meio do dia.

— E é por isso que eu lhe acompanho.

— Ah, obrigada! Certamente ao fim do dia, ele deve receber um relatório completo de minha interessante vida pastoril.

— Não falo a ele tudo que você faz, mas deveria. Sabe que estamos em um momento politicamente delicado contra o reino de “Terbs”. Você não deveria se expor tanto, saindo a toda hora, para além das muralhas de “Eras”.

— Essa agora! Não acredito que você seja uma destas pessoas, que acham que ficaríamos bem, se meu pai “me oferecesse” em casamento para aquele nojento do filho do Rei Badir!

Nesta hora, Arítes me olhou de uma forma que não consegui decifrar. Era um misto de repulsa e choque.

— Como é? Quem quer lhe dar em casamento a Belard?

— Vai me dizer que você não sabe? Acho melhor falar com o conselheiro de meu pai.

Dei a notícia ironicamente, pois, sinceramente, não acreditava que ela não soubesse.

— Meu tio cogitou isso?

Ri, novamente, cínica, pois não acreditava que ela havia sido pega tão desprevenida assim com aquela notícia. Ela se voltou, andando pelas pedras vagarosamente, até alcançar o caminho estreito encoberto pelas árvores.

— Vamos, Tália. Está na hora.

Arítes tinha uma personalidade estranha, pois quando pensava que iria se posicionar em algo, ela se resguardava e ficava totalmente calada. Às vezes me surpreendia. Estive em situações com meu pai, em que ele me repreendia por ter feito algo e ela me defendia, tranquilamente, como se eu não tivesse feito nada. Era dois anos mais velha que eu e tinha os cabelos castanhos da descendência do povo da floresta. Seus olhos também tinham a marca de seu clã, eram verdes. Eu levava em meus cabelos o sinal do povo do lago. Eram loiros-cinza, quase brancos. Já meus olhos eram ligeiramente puxados, azuis e tão claros, que chegavam à transparência.

A mudez em que ela se colocava nessas situações, me incomodava terrivelmente. Tinha um apreço por ela e uma necessidade que me olhasse que eu mesma sequer entendia. Queria que ela me visse como eu realmente era e não como todos me viam.

Caminhávamos, lado a lado, em silêncio. Costumeiramente, ela retardava seu passo, para ficar ligeiramente atrás de mim, como convém uma escolta, mas não o fez. Fiquei intrigada e comecei a olhá-la. Parecia se debater, internamente. Parou por um momento e eu a acompanhei.

— Acha que seu pai fará esse acordo?

Perguntou um tanto inibida, mas a postura rígida militar permanecia.

— Não sei. Sei apenas, que, na última vez que neguei casar com um candidato escolhido por ele, disse-me que meu estoque de negativas estava chegando ao fim.

— Não posso acreditar que ele faria isso. Em Eras, não se faz escolhas por outra pessoa em relação a casamentos. É errado. Conheço a história dele e de sua mãe. Meu avô me contava quando eu ainda era criança. Era a história que eu mais gostava de ouvir.

— E por quê?

Eu estava apreciando, demasiadamente, este momento compartilhado com Arítes. Depois de nossa infância, ela não trocava comigo mais que duas ou três frases ao longo do dia. Em todas às vezes, eram ordens ou coisas relacionadas à minha segurança.

— Porque se tratava de uma incrível história de amor.

Pela primeira vez em muitos anos, ela me sorriu e não consegui me conter, sorrindo-lhe de volta. Ela abaixou o olhar e voltou a caminhar lentamente. Parecia que queria demorar em nosso retorno. Seu sorriso gravou em minha mente e meu coração aqueceu.

— Conte-me o que seu avô contou.

— Nada de mais. Apenas que sua mãe era uma amazona incrível e além de excelente arqueira, era ótima no combate e brilhante comandante. Contou-me que na investida de “Natust” contra “Eras”, seu pai estava na linha de frente comandando uma das tropas e ela liderava o bloqueio do castelo. Em dado momento, ela viu seu pai sendo derrubado do cavalo e capturado. Os Natustianos sabiam que ele era o filho do rei. Após prendê-lo, recuaram possivelmente para negociar a nossa rendição.

— Seu avô presenciou quando meu pai foi capturado também?

— Sim. Todos que estavam nas muralhas no combate viram. Mas contam as lendas, que sua mãe na calada da noite, sem que ninguém soubesse, saiu sorrateiramente e logo ao amanhecer seu pai se encontrava nos braços do rei.

— Como?

Arítes sorriu.

— Dizem que ela observou o acampamento Natust por algumas horas, mergulhada nas águas do rio e quando o acampamento tinha alguns poucos vigias, conseguiu penetrar, matar as sentinelas sem fazer barulho, chegar à tenda em que seu pai havia sido preso e libertá-lo. Contam também que, na fuga, ela deixou um bilhete falando que “o coração do lago o levou para seu legítimo lugar”.

Escutei a história fascinada. Eu sorria, pois tinha em minha mente que minha mãe era uma linda ninfa e não uma mulher tão aguerrida.

— Por que nunca me contaram a história deste jeito?

— Talvez para não “dar ideias” a você, mocinha!

Arítes parou e falou, tocando com seu dedo indicador, jocosamente, em meu nariz. Colocou-se a caminhar novamente e eu me aborreci como uma leoa selvagem!

— Gostaria que as pessoas não me vissem como uma “garotinha”, como você mesma insinuou.

Apressei meu passo e a deixei para trás. Mais tarde me arrependi dessa atitude, pois Arítes retornou ao seu estado de “guarda pessoal real”.

………………

— Mãe.

Entrei no quarto de minha mãe e fechei a porta. Sabia que lá, Arítes não entraria. Encontrei minha mãe sentada de frente à janela, bordando um vestido. Ela olhou para mim sorrindo. Deixou de lado os apetrechos e se levantou para me abraçar.

— Olá, meu amor! Voltou cedo de sua caminhada.

Aninhei-me em seus braços e suspirei com o acalanto. Não sei por que eu estava tão inquieta. Minha mãe era especial. Ela incrivelmente conseguia decifrar meus gestos e meu rosto.

— O que foi, meu amor?

— Por que nunca me contou como salvou meu pai na batalha contra Natust?

— Andou escutando contos de fada heroicos por aí?

— É sério, mãe. Por que nunca me contou?!

— Porque há coisas que devem ser esquecidas. A batalha de Natust não foi nada bonita. Perdemos muita gente. Nosso reino se enfraqueceu, mesmo depois da vitória. Muitos companheiros leais à coroa morreram e muitas famílias sofreram com isso.

— Você realmente resgatou papai?

— Vejo que Arítes andou abrindo a boca.

— É. E depois de me chamar de “mocinha”, voltou a fechar.

Minha mãe gargalhou ainda abraçada a mim.

— Vejo que seu aborrecimento, não foi por não saber esta história “fantasiosa” e sim por Arítes te achar uma menina!

Meu coração disparou e mais uma vez não sabia por quê. O que minha mãe estava insinuando?

— O que? Claro que me aborreci! Todos acham que não posso lutar, cavalgar, caminhar pelas terras e, além de tudo, acham que sou uma princesinha boba! Arítes mal conversa comigo, e éramos amigas quando crianças! Meu pai vive me arranjando pretendentes que nem conheço. E você… Vejo o quanto você era ativa, livre e hoje, passa o dia vendo o que vai ser servido para almoço, jantar e…

Deixei que meus ombros caíssem.

— Não quero isso para mim, mãe. Quero participar. Quero saber o que está havendo com o reino. Não vou me casar para que o meu marido assuma o que é devido a mim. Eu sou do povo do lago! Eu sou uma Eriana! Por que ninguém enxerga isso?

— Vem cá, amor.

Minha mãe me conduziu até as poltronas, perto da lareira. Sentamos uma em cada poltrona e minha mãe permanecia com as mãos em minhas pernas. Olhou-me com ternura e o azul de seus olhos, reluzia refletindo a claridade da janela.

— Seu pai a ama muito, filha. Ama tanto que, às vezes, perde a mão e a sufoca, mas tudo por medo de lhe perder. Eu, muitas vezes, converso com ele e sinto que ele compreende que não pode lhe proteger sempre. Digo, também, que sua educação deveria ser militar, como foi a minha, a dele e a de muitos Erianos.

Minha mãe suspirou, passando as mãos pelos cabelos.

— Talvez esteja na hora de interceder e lembra-lo de nossas origens e nossa cultura. A paz está estremecida. Eras tem sido um reino próspero, mas não como nossos vizinhos acham. Estamos conseguindo produzir nossos alimentos por conta da proximidade do rio e do lago, mas Terbs tem sofrido pelas secas há alguns anos. O rei Badir acha que deveríamos ajudá-los mais do que temos feito. Acha que estamos estocando e não queremos comercializar. Não é verdade. Ajudamos na medida em que podemos, mas…

— …mas eles não podem ver se é verdade o que falamos, não é mesmo? A confusão aumenta na medida do desespero. Mãe, eu não quero me casar com Belard!

— Casar com Belard? Quem lhe disse isso?

— Ninguém. Escutei o conselheiro Tórus falar com meu pai…

— Estava, novamente, atrás da porta da sala do conselho?

Minha mãe sorriu acariciando meu rosto, mas sua expressão era intrigada. Depois se levantou e ficou olhando pela janela.

— Muito bem, filha. Chegou a minha hora de participar das audiências. Se o que disse é verdade, acredito que o conselheiro Tórus está se distanciando de nossas tradições. Ou ele amoleceu e se rendeu aos costumes “Serbes”, ou está com medo da guerra! Em qualquer dos casos, ele se engana achando que eu daria minha filha ao sacrifício, para manter a paz. Mesmo se essa paz fosse sólida.

— E o que a senhora vai fazer? Eu não quero que a senhora e o papai brig…

— Brigar? Eu e seu pai? Não, minha filha, eu nunca brigaria com seu pai, até porque, sei que ele perderia.

Minha mãe olhou para trás, sorrindo e piscando um olho para mim. Nesse momento entendi que minha mãe nunca se anulou, apenas fazia o que deveria ser feito.

— Vem, filha. Ajude-me a me trocar.

Eu não entendi muito bem porque minha mãe queria se trocar àquela hora da tarde, mas aprendi que minha mãe nunca falava as coisas de uma só vez. Levantei e fui ajuda-la. Pediu para que eu esperasse e entrou no quarto da rouparia. Quando retornou, trazia em sua mão um conjunto negro em malha e couro. Logo percebi que era um uniforme do comando. Fiquei maravilhada. Sempre o vira pendurado em sua rouparia e ela me contava que até casar com meu pai, era assim que se vestia, mas raramente a via vestida com ele.

— Por que agora? – Inquiri.

 — Porque é a hora… É hora do rei Astor ter a sua comandante-general a seu lado.

Meneei a cabeça e me calei, ajudando-a a se vestir. Acho que papai se encrencou dessa vez. Contam as lendas do reino de Eras, que quando uma mulher de poder reivindica o comando de forma legítima, a engrenagem do destino se põe a mover e a magia do povo antigo vem à superfície.

Depois de ter posto os braceletes, pediu-me ajuda para colocar as ombreiras e o corpete em metal. O adorno, além de proteção para o tórax, apontava sua posição como comandante-general, pelo símbolo do arco e da lâmina forjados transversalmente.

Olhei-a pela primeira vez assumindo o seu posto de comandante do exército, bem como o posto de guardiã do rei. Neste momento, esta não era mais a minha mãe, era a comandante Êlia Renoir de Cadaz.

Ela apreciou seu corpo diante do espelho. A calça justa e maleável, a bota pesada em couro com as tachas em metal e a blusa, também justa, coberta pelo colete deixavam-na imponente e majestosa! Meus olhos se encheram de lágrimas, pois sempre fantasiei em vê-la vestida assim assumindo, realmente, seu posto e agora, a via em carne e osso.

Ela se virou para mim serena, mas com uma aura de austeridade que, possivelmente, até o mais alto conselheiro, poderia desviar o olhar em sinal de temor. Puxou-me para um abraço apertado.

— Filha, a audiência da tarde deve começar em minutos. Tenho que me apressar e gostaria que fosse com Arítes. Vou dar instruções a ela e quero que a obedeça.

— Mãe…

— Não discuta agora comigo, Tália. As coisas para acontecerem da forma correta, tem um tempo certo de se realizar. É a minha hora de ir e a sua de obedecer.

Acenei com a cabeça. Tinha certeza que se eu a contrariasse nesta hora, pela primeira vez, minha mãe imporia sua vontade sobre mim.

— Vamos.

Minha mãe caminhou até a porta e como eu já previa, Arítes estava de prontidão. Se não estivesse tão atordoada com a atitude de minha mãe, eu riria muito da cara de minha guarda pessoal. Seus olhos arregalaram e imediatamente se pôs em posição de sentido.

— À vontade, Tenente-Coronel. Tenho uma ordem para você e quero que cumpra com perfeição.

— Sim, Senhora!

— A partir de hoje, você tomará Tália para o treinamento militar. Irá treiná-la no combate corporal, arco e espada, de manhã até a noite. Ela lhe obedecerá em tudo dentro do campo de treinamento. Começará com o uniforme de aspirante, mas sei que ela já tem técnicas mais avançadas. Em um mês, quero-a apta a fazer o teste para ingressar no esquadrão. Por que quero que a treine? Porque no teste, quero que ela vença, pelo menos, os primeiros desafios que impuserem a ela para combate, entendeu?

— Sim, senhora!

Arítes assentiu novamente se colocando de prontidão, ainda impactada com a visão de minha mãe. Amei! Minha mãe nos deixou e se dirigiu ao corredor que levava à sala do conselho. Arítes me olhou confusa e eu encolhi os ombros.

— Acho que ela está próxima do sangramento mensal…

Virei-me e caminhei em direção ao meu quarto, rebocando Arítes que ainda estava atordoada. Tinha que vestir algo, dando início aos meus treinamentos. Eu estava com o coração palpitando. Apesar de sempre ter reivindicado entrar para o exército, de ser o que sempre quis, sabia também que esta atitude de minha mãe, denotava que algo muito sério estava para acontecer. Fiquei apreensiva.

****

Minha mãe chegou à porta do conselho, pouco antes de começar a audiência. Parou, momentaneamente, acho que para harmonizar a sua própria segurança. Enquadrou os ombros, levou a mão até a maçaneta e entrou.

Quando adentrou o ambiente, todos os conselheiros e até o comandante-general substituto fixaram os olhos, na figura que caminhava resoluta até a cadeira de meu pai. Ela postou-se ao lado direito da cadeira destinada ao rei em posição de sentinela.

— Êlia…

— Meu soberano, deseja alguma coisa?

Ela o olhou no fundo de seus olhos e fez uma reverencia lenta. Meu pai meneou a cabeça, entendendo que algo havia ocorrido. Nem ele próprio poderia interferir, na decisão de reinvindicação do posto que era legítimo. Elia Renoir de Cadaz havia se afastado, através de um acordo, apenas para que ela tomasse a posição de rainha.

— Senhores, podemos começar a audiência de hoje.

Meu pai falou, formalmente, se encaminhando à sua cadeira. Tórus percebeu que o tema que levaria hoje ao rei, estaria sob o forte escrutínio de minha mãe. Galian, o substituto de minha mãe, teve a hombridade de se dirigir a ela e pedir a dispensa. Não era de bom tom afrontá-la permanecendo no recinto.

— Senhora, se me permite.

Fez uma mesura e permaneceu com a sua cabeça baixa até que fosse autorizado a falar.

— À vontade, general.

— Peço permissão para me retirar.

— Permissão negada. O reino está ameaçado. Toda segurança para o rei e cabeças inteligentes para pensar, são necessárias. Tome seu lugar à esquerda do rei.

Galian se curvou, novamente, se dirigindo logo depois para onde foi indicado.

— Então. Podemos começar?

Os quatro conselheiros sentaram.

— Senhor… — Tórus iniciou a sessão. – Estamos em uma situação instável com Terbs, mas não creio que seja para tanto. A Senhora Elia… – Tórus se dirigiu à minha mãe, pois não gostaria de ser mal interpretado. –… não precisaria…

— Eu não preciso, Tórus, mas o farei. Por acaso, o conselho esqueceu quem comanda os exércitos? Eu nunca deixei meu posto, conselheiros, apenas o cedi para melhor servir ao reino e ao povo, mas em qualquer tempo e a qualquer hora eu poderia reassumir. Em meu entendimento, esta é uma boa hora. Apenas isto.

Elia olhou de rabo de olho para seu general e havia um leve esgar em seus lábios. Algo muito sutil, mas que transmitia prazer, ao ouvir as palavras de Elia. Minha mãe se conteve, para não transparecer que se satisfazia com a reação dos homens sentados à mesa, ao se deparar com a situação que ela impusera.

……………

— Tália, o que está acontecendo?

Eu não deixei que meu rosto transparecesse o grande sorriso que trazia dentro de mim. Falei serena, mas estava exultante com a atitude de minha mãe e mais ainda por, finalmente, a “dona da imparcialidade Arítes”, ter ficado atônita.

— O que está havendo é que nem todas as decisões cabem somente ao rei e ao conselho. Somos uma monarquia democrática e há questões que devem ser discutidas com as bases. Parece que minha mãe acha que o rei e o conselho estão esquecendo toda a ordem estabelecida, na cultura de igualdade de nossa nação.

— Parece-me que ela acha que estão esquecendo mais que isso…

Parei de repente. Olhei direta e profundamente nos olhos de Arítes e ela sabia que não poderia mentir para mim. Se algo que o povo do lago ainda possuía, apesar da “Senhora das Águas” nos ter castigado retirando toda a nossa magia, era conhecer a verdade sobre o escrutínio das manchas da íris de outra pessoa.

— O que quer dizer, Arítes? E não minta. O que sabe sobre o que minha mãe pensa?

Arítes me olhou, travando um combate interno. Ela era obrigada a responder ao questionamento. Era a lei. Como minha guarda pessoal e pelas regras, nem que houvesse um pedido direto do rei, ela poderia negar a resposta. Essa norma foi instituída há muitos anos. Fazia com que, ninguém pudesse se infiltrar, com o intuito de tirar a vida de qualquer um que tivesse sendo protegido por um guarda. A punição para tal infração era a morte. Finalmente, Arítes se decidiu e caminhou a passos firmes para dentro de meu quarto. Fez a inspeção habitual e pediu que entrasse.

— Então?

Perguntei, resoluta. Ela suspirou.

— Poderíamos tomar um cálice de vinho? Gostaria que me dispensasse das formalida…

— Arítes, por favor! Pegue o vinho e sente-se! As formalidades quem utiliza é você e não eu. Nunca impus isso, mas parece que você se incumbiu de fazê-lo, ao longo destes anos, por nós duas.

— Era preciso, Tália!

— E por quê?

Ela suspirou novamente, foi até a mesa ao lado da lareira, pegou dois cálices, derramou o vinho e sussurrou mais para si do que para eu ouvir.

— Que a grande “Senhora das Águas” me proteja.

Veio de encontro a mim, oferecendo-me o cálice.

— Não quero vinho. Quero que me conte tudo que sabe e porque sabe o que minha mãe pensa. Nunca fui invasiva com você. Nunca exigi muito de nossa relação “protegida-protetora”, respeitando a sua decisão de se apartar de mim. Mesmo me magoando, pois éramos amigas, tentei compreender, mas chega. Quero respostas! Não sou uma menina tola que não percebe nada à volta.

Exasperei-me, pois estava cansada de, sempre, esconderem coisas de mim. Arítes me olhou entristecida, acredito que pela agressividade de minhas palavras, mas continuei a falar. Não aguentava mais a indiferença de todos com relação a minha opinião diante das coisas.

 — Aliás, se não sabe, minha mãe tem um papel muito importante nisso, me ensinando todos estes anos no silêncio da tarde. Sei cada prego que existe nesse castelo. Conheço cada estaca posta nos currais. Conheço cada vila além das muralhas, quem são nossos aldeões, os quais temos o dever de proteger. Sei o nome de quase todos os homens da infantaria e a maioria, de que família veio. Tenho em minha mente, o nome de cada um que morreu defendendo Eras desde que nasci. Fossem mortes por doença ou mortes em combate. Sei exatamente quem está nas cozinhas, neste momento, fazendo o jantar de todo o castelo, assim como, o nome de cada família que produz nossos grãos e alimentam nossas mesas, com a carne de seus rebanhos. Tenho, na minha cabeça, uma planta detalhada deste castelo e de todo o reino!



Notas:

Testando essa bagaça.




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