VOCÊ…
Desci para o café sem muita vontade. Só o fato de poder te encontrar no restaurante era motivo para ficar na cama o dia todo, mas precisava sair, andar pela praia, pensar em tudo o que estava acontecendo, no porquê desta minha fuga, desta minha rejeição a você. Já me dirigia para o local quando vi a agitação do lado de fora. As batidas de meu coração denunciavam a tragédia. Corri como louca em direção à aglomeração de turistas, atravessando-os sem muitos modos, e te vi numa maca com sangue na cabeça, próximo ao olho esquerdo, o braço imobilizado. Não pensei duas vezes e me agachei, toquei de leve seu rosto e disse a única coisa que poderia no momento.
— Estou aqui, Endless. — percebi o movimento de teus olhos fechados como se estivesse querendo abri-los. Falei com o pessoal da ambulância e te acompanhei ao hospital.
EU…
A dor era insuportável e ao abrir os olhos devagar, vi uma mulher sentada numa poltrona, lia uma revista, absorta, não percebeu meu despertar. Falei em árabe.
— Perdona-me, no entiendo. És brasileña, si? — perguntou vindo em minha direção.
— Si. Dónde estoy? — ela abriu um sorriso largo.
— Tu veniste a magullarse. Ayudaste me hija, mi Nina. Estás en el hospital.
Tentei levantar um pouco sem muito sucesso. Senti uma dor terrível nas costas e no braço esquerdo quando o usei para o intento. Ela percebeu e ajudou-me a recostar na cabeceira da cama colocando o travesseiro como apoio.
— Necesitas de algo? Estàs bien?.
Sorri um pouco constrangida com a pergunta. Claro que não estava bem, só queria voltar pra casa, pros meus filhotes. Senti vontade de chorar e deixei uma lágrima escapar. A mulher preocupou-se e chamou a enfermeira num escândalo que só os ehóis sabem fazer. Ficou lá olhando a enfermeira trabalhar me dando um analgésico, quando a mesma saiu, a ehola se aproximou de novo.
— Entonces… Su amiga dejoute a mi cuidados.
Franzi a testa. — Quem?
— Su amiga, Cris. Coitada, ella ha salido muy triste y cansada. Muy inquieta. Yo hay tenido que expulsá-la de a cá, pero que no lo queria .
E pôs-se a falar do acidente e da filha e eu fui adormecendo sem perceber. Três dias depois obtive alta, e, nestes dias, você não apareceu. Sempre a mãe da menina, nunca você. Cheguei ao hotel ainda com dores não tão fortes, mas incômodas de qualquer jeito. Na portaria perguntei por você e disseram que havia saído bem cedo e ainda não retornara. “Melhor assim…” pensei.
Subi com dificuldade para meu quarto. A cabeça doía um pouco e o sono ainda me perturbava. Deitei e acabei dormindo. Parecia que breves segundos tinham se passado, quando ouvi batidas na porta. Olhei pro celular: 15:00h! Levantei rápido demais sentindo as dores de volta. As batidas eram contínuas quase me tirando do sério. Consegui chegar à porta e, ao abri-la, surpreendi-me: Nina e sua mãe estavam ali. A menina disse que bateu muito na porta, a mãe se desculpava pela filha dizendo que ela havia insistido pra me ver. Conversamos um pouco, até que a menina pegou algo em sua bolsa e me ofereceu. Era um cavalo de plástico com a orelha roída. A mãe toda envergonhada explicou que era o brinquedo favorito dela e era uma forma de agradecer. Despediram-se e foram embora. Fiquei olhando para o brinquedo e lembrei-me de um mocinho que iria adorar mordê-lo. As dores ficavam cada vez mais fortes, então me lembrei dos remédios. Tomei e peguei minhas malas, pois precisava sair imediatamente. O peito se comprimia a cada vez que pensava em você e meu punho esquerdo latejava a cada esforço, mesmo eu utilizando a mão direita. As costas também sofriam a cada agachar para pegar os objetos espalhados pelo quarto. Já eram dezoito horas e eu ainda não tinha terminado de arrumar tudo. Fiz algumas paradas para descansar e acho até que, algumas vezes, eu cochilei. De repente o aparelho começa a tocar a música… Lembrei-me que programei a hora em que ele deveria ligar automaticamente e ao contrário do que pensei deixei a música tocar. Tentei continuar a árdua tarefa de aprontar as malas, mas agora a dor era outra, bem mais forte e, nem remédio, nem descanso a fariam parar.
VOCÊ…
Soube que teria alta através da mãe da menina, então resolvi sair para pensar um pouco mais sobre tudo o que já vinha pensando nestes últimos dias. Fechei os olhos e lembrei-me de teu acidente, do quanto temi te perder, o quanto me assustou a ideia de nunca mais te ver. Um pássaro soltou seu som de caça e mergulhou no mar. Era preciso coragem para arriscar num mar cheio de perigos, mas ele precisava sobreviver. Ele não tinha medo do fracasso, não tinha medo da dor, precisava caçar para não deixar morrer, para não morrer, e eu, o que fazia? Nada. Primeiro pensei que havia encontrado a pessoa ideal, mas era só uma ideia. Ideia de segurança, de normalidade, sem ter que enfrentar a sociedade, sem ter que enfrentar meu preconceito. Mas não foi nesta pessoa que encontrei a paz, a segurança, a cumplicidade e a dor necessárias para viver. Sim, dor. Ela faz parte da vida. Vida sem dor é vida não vivida, é fuga. Não foi nesta pessoa que encontrei a dor assentida, a dor confortada, a dor encarada juntos e esmorecida no amor. Amor ideal não existe. É isso. É só uma ideia. O amor que vivi contigo. Eu nunca fiz ideia deste amor. Sempre me escondi dele. Não fazer ideia de teu amor fez com que eu o rejeitasse e agora? Como te trazer de volta, Endless?
EU…
A música obteve seu término e, mesmo eu estando muito cansada, continuava a arrumar minhas malas. Por último peguei o cavalo de plástico que ganhara de Nina. Veio-me nitidamente os seus olhos e os dela. Poderia ter sido nossa. Pus o objeto em minha bolsa, ainda faltavam algumas roupas e objetos no banheiro. Quando ia buscá-los ouço batidas na porta. “Meus remédios…”, pensei, pois os tinha pedido por fone. Abri sem interesse e o que vejo? Você parada em frente a minha porta. Controlei ao máximo minha vontade de te abraçar forte e pedir socorro, pedir colo, mas mantive a frieza que não sentia.
— Em que posso te ajudar?
A pergunta tinha duplo sentido: o primeiro era o que eu pretendia fazer valer, a indiferença, a frieza, o segundo era mais sincero, queria mesmo a resposta. O que fazer por você, para que eu não visse em seus olhos a dor e o sofrimento que eu via.
— Precisamos conversar.
Você disse e quis jogar-lhe na cara que não foi por falta de oportunidade, mas me calei. A emoção de te ver assim perto deixava de lado todas as mágoas que sentia. Pedi que entrasse e sentasse na única poltrona dentro do quarto. Você recusou o acento, olhou pra mim.
— Então? O que quer me dizer? — fiquei esperando uma resposta. As dores voltaram, e eu tencionava os músculos involuntariamente.
— Endless, eu…
Não terminou. Minha resistência havia se acabado e aconteceu.
VOCÊ…
De volta ao hotel, decidi te ver, ir até você e que fosse o que tivesse de ser. Eu só sabia de uma coisa: precisava de seu amor mais que tudo na vida. Minha chance de ser feliz estava em suas mãos e, incondicionalmente, nas minhas. Não queria mais pensar em como você reagiria. Levar um “não”, não poderia seria pior do que o que já estava sofrendo. Quando percebi, já estava na frente de seu quarto batendo na porta. Houve certa demora, talvez não estivesse e um resquício de covardia ainda tentava me desviar da atitude, mas permaneci ali, esperando. Então você abriu. Vi em tua testa o curativo onde se podia perceber que sangrava, teu antebraço esquerdo com uma proteção negra de velcro, o olhar misturado com emoção e frieza, tua voz segura ao me perguntar em que podia me ajudar tirou-me do propósito. Vieram todas as dúvidas novamente, todo o pavor de ser abandonada, de não ser aceita. O que queria, na verdade, era me atirar em seus braços e implorar que me protegesse, que cuidasse de mim. Recusei a oferta da poltrona para me sentar e disse-lhe, apenas, que precisávamos conversar. Senti que as palavras incomodaram e um trajeto de dor e mágoa passou por teus olhos, quando me perguntou o que eu queria dizer-te. Percebi certo desconforto físico, mas não imaginaria nunca a tua reação naquele momento.
EU…
Olhando pela janela do avião não dava para distinguir o que era terra e o que era mar. Nuvens densas se apoderaram da imagem maravilhosa que se poderia ter dali, daquela altura. Suspirei relembrando de tudo o que acontecera. Estava voltando para casa, pros meus filhotes, para uma vida nova, deixando para trás todo o sofrimento vivido. Havia fechado uma porta dentro de mim e aberto outra, não saberia prever o que viria agora, mas estava pronta para enfrentar o que quer que fosse. Minhas lembranças se fixaram nos últimos momentos naquela ilha, naquele quarto de hotel.Foi impossível não deixar cair uma lágrima de emoção.
VOCÊ…
Ia sentir falta daquele lugar, principalmente do mar que me aconselhava todos os dias. Eu, finalmente, havia encerrado uma fase má de minha vida. Tudo o que pude fazer foi feito, agora era respirar fundo e partir para o novo, o indefinido. Isso me assustava um pouco, afinal, o medo me fez refém por muitos anos e, agora que estou livre, não sei bem por onde ir, mas sei muito bem onde quero chegar. Os momentos passados naquele lugar me amadureceram muito, principalmente o último, quando você reagiu daquela maneira tão surpreendente, me fazendo entender que nem tudo é como esperamos que seja. Ali, naquele quarto, estava nascendo uma nova mulher que teria que batalhar por felicidade todos os dias de sua vida. Agora era voltar à vida real, sentia falta do trabalho e trabalharia muito. As lembranças dos últimos momentos naquele quarto de hotel me fizeram ter a certeza do que estaria por vir em minha vida.
EU…
No hotel, antes do vôo…
Minhas forças para te ignorar e manter a distância foram desabando uma a uma. Parei o que fazia e te olhei, a tua voz dizendo meu nome. O nome que nos apresentou uma a outra. Meu verdadeiro nome, porque era assim que me sentia: preenchida por um amor sem fim, sem começo. Ali, naquele espaço pequeno em que nos encontrávamos, percebi o quanto precisava de ti, o quanto senti tua falta e o quanto eu queria teu abraço, teu conforto. Então não pude mais conter toda a emoção guardada há muito custo e deixei que as lágrimas te avisassem de minha fragilidade e pus em meu olhar todo o amor, toda a paixão, todo o cansaço, e te pedi, pela primeira vez, teu carinho, teu apoio. Não queria mais ser forte e aceitar. Queria implorar teu toque, implorar tua presença, e, sem perceber, fui me aproximando devagar de teu corpo até estar colada a ele, recostando minha cabeça em teu ombro, te abraçando devagar.
— Não me deixa… Fica comigo, Love. Eu não posso mais… Estou tão cansada. Preciso de você.
Neste momento senti teu estremecimento e o abraço se tornar mais forte. Então fiz o que há muito precisava fazer: chorei muito. Do nada o aparelho de som começa a tocar a música novamente.
— Sei no que pode me ajudar. — Ouvi tua voz em meu ouvido, calma, suave. — Deixa eu cuidar de você… Cuida de mim.
Ergui o rosto para poder ver teu rosto que também estava molhado pelas lágrimas. Encostei minha testa na tua. Olhávamos-nos. Olhávamos para nossos lábios próximos demais. Minha respiração, tua respiração, teu cheiro me dando a certeza de estar em casa. Teu hálito, o ar que precisava para respirar, tua voz trêmula e carinhosa, tua mão erguida num carinho revelador em minha testa no local em que o curativo ficava.
— Não quero começar o que sei que você não pode terminar. Te quero inteira.
Passou a mão sobre a proteção que eu tinha no braço. Entendi e amei tua atitude, estava me protegendo, preocupada, gentil. Extremamente gentil, como eu havia sonhado muitas vezes. Então desandei a falar.
— Vamos começar do zero, vida. Eu sei que posso conquistar seu amor, eu… — você me silenciou com o dedo indicador.
— Você já me conquistou, meu amor. Eu sou sua, sempre fui, só precisava enxergar. Você me ajudou muito nisso, me libertou de uma falsa vida para uma vida nova que não conhecia, mas que vou adorar conhecer ao teu lado. Agora vem. — Me levou até a cama. — Deita aqui um pouco. O corte parece que está sangrando.
Eu continuava calada, assimilando suas palavras como se não acreditasse nelas. Então a ficha caiu, você disse que estava me amando. Mais lágrimas.
— Eu te amo… Te amo, Love Forever… — acariciei teu rosto com carinho e você deitou comigo, me envolvendo em seu abraço de polvo. Que sensação indescritível de paz. Adormecemos, ambas merecedoras de um longo descanso.