DJERBA – TUNÍSIA
Eu havia visitado vários países desde que me instalei na China, mas nunca imaginei que iria visitar país tão incomum quanto a Tunísia. Sim, meu amor, você veio para este país refugiar-se da dor, do medo, da insegurança. Cheguei muito tarde a Tunis, capital deste país pequeno, situado ao norte da África. O frio congelante não me desanimou. Ali, num hotel pouco confortável, eu dormiria para logo cedo pegar um vôo fretado para Djerba… “Ilha do Esquecimento” ou “Ilha dos Sonhos”. Quando soube que você estava nesta ilha, pesquisei sobre ela. Escolha perfeita para quem quer se isolar. A ilha tem este nome por causa da Odisséia de Homero. Diz Homero que Ulisses, personagem mitológico, e sua tripulação atracaram na ilha onde encontraram lindas sirenas cantantes. Isso por conta dele mesmo, na verdade encontraram uma ilha povoada por mulheres lindas que logo ofereciam aos marinheiros frutos de uma planta chamada Lótus, um alucinógeno poderoso, transformavam os homens em escravos fiéis de suas fêmeas, esquecendo-se de tudo que deixaram em seus lares, impedindo-os de voltarem para os mesmos. Eu me perguntava se você havia achado esse fruto e me esquecido, e esquecido nosso lar como os tripulantes de Ulisses. Precisava te resgatar deste encantamento falso e te mostrar que a dor poderia ser combatida de frente ao meu lado, e que eu poderia te mostrar o caminho, mas um medo gritante do fracasso se apoderou de mim. Pensei em desistir, em te deixar em paz como estava querendo. Não sabia exatamente como você reagiria a minha presença, então comecei a traçar estratégias para esta abordagem. Teria que funcionar. Fiz reserva no mesmo hotel que você e planejei alguns contatos sutis, teria que funcionar, pois nosso futuro, o meu, o seu e dos nossos filhotes, dependeria deste sucesso.
Coração à boca, senti um frio no estômago quando avistei o casario branco e azul de uma perfeição comovente. Apesar do sol estar num céu anil sem nuvens, o frio continuava firme. O Mediterrâneo rodeava a ilha num verde? Num azul? Numa mistura destas cores. A praia era enfeitada por palmeiras caudalosas. O avião pousou no aeroporto Mellita que fica próximo a capital Houmt-Souk , cidade tipicamente turística. O táxi atravessou o comércio local até que, enfim, pude avistar o estabelecimento. Tamareiras enormes rodeavam o resort extremamente branco onde todos os cômodos tinham vista para o mar. O meu quarto ficava bem ao lado do teu e eu sabia do perigo de te encontrar, mas munida de todos os detalhes do pacote que você comprou, sabia exatamente de todos os teus horários e que locais visitaria. Olhei o relógio. City tour. Era chegada a hora de me preparar.
ENQUANTO ISSO VOCÊ…
Mais um city tour, eu pensava enquanto me distanciava do grupo que seguiria para o passeio. Eu não iria, não. O primeiro passeio até me arremetia a alguma emoção, mas esta esvaiu-se em um segundo, este era absolutamente impossível de acompanhar. Não queria mais a emoção de ver o oleiro habilidoso transformar o barro em uma jarra lindíssima, ter a sensação do barro invadir a mão até quase se transportar a ele. Não me emocionavam mais os mergulhos, nem os mercados e suas cores e aromas, nada mais me emocionava, nem me atraia. Até o gosto da tâmara que me cativara já amargava na boca. Preferia caminhar longamente pela beira-mar. Estava frio, muito, mas deixava que a água gelada do Mediterrâneo tocasse meus pés. O mar era o único significado ali. Ouvir sua voz era meu passatempo, mas o tempo não passava, estava impregnado em mim com as lembranças duras dos últimos dias. Instintivamente passei a mão por meu ventre. Eu o perdi… “Te perdi, filho… Talvez tenha sido o medo do amor incondicional que teria por ti. Tua existência me afastou de tua essência e te rejeitei pelo medo do amor. Depois que já te queria você se foi…Minha culpa…” Parei e me virei de frente ao mar. “Rejeito a tudo que amo…” Não, não queria pensar mais em nada, queria apenas o esquecimento e a paz, não queria mais tomar atitude alguma, queria só permanecer até os dias se multiplicarem e a sensação da inexistência me fizesse, finalmente, descansar.
Caminhei mais alguns metros, quando avistei um barco em alto mar. Senti inveja dos velejadores que avançavam dias, meses, mar adentro, só o mar e o céu. Só queria estar comigo, dentro, sem medos, sem dor, sem sentimento. Voltei mais só do que triste. Na Ilha, só o francês, o holandês e o árabe eram as línguas faladas, mas eu não ligava, melhor assim, sem comunicação. Cheguei ao resort um pouco cansada, queria um banho quente e dormir. Na recepção um garoto se aproximou de mim.
— Senhorita! — me surpreendi, pensei ter ouvido errado e continuei andando para meu quarto. — Senhorita! — me alcançou com um papel na mão. — Recado, senhorita! Recado! — agitava o papel na minha frente e mais uma vez ignorei. Ele ficou em minha frente ainda agitando o bendito papel. — Senhorita! Recado…
Num impulso irritado peguei o papel e rasguei-o em pedaços, jogando-os no chão. O menino arregalou os olhos assustado e correu para fora do recinto. Pus as mãos na cabeça arrependida da atitude, não esquecia o rosto moreno do garoto com medo.
EU…
Vi a cena toda. A abordagem do garoto insistente, sua irritação e, por fim, meu recado estraçalhado na frente do moleque. Ele, assustado, veio correndo pra saída onde eu o esperava. Segurei-o pelo braço antes que chegasse à porta.
— Calma, menino. — ele ofegava.
O árabe foi uma das línguas que tive que aprender por causa dos projetos na China. A maioria de investidores era árabe e, lógico, eu queria impressionar e conseguia, fechei alguns negócios por causa disso. Acalmei-o e coloquei em sua mão uma nota de dez dólares. Abriu um sorriso do tamanho de um bonde e desapareceu em segundos pela praia. A primeira parte do plano não fora um total fracasso. O objetivo não era que lesse, mas que se surpreendesse por alguém ter mandando recado. Vi que, pela sua reação, a coisa ia ser bem difícil, mas eu estava pronta e a segunda parte do plano já estava encaminhada.
VOCÊ, NOITE…
Aquele menino me tirou do sério, mas não devia tê-lo assustado daquela maneira, pensava nisso deitada na cama, enrolada num edredom. Era quase hora do jantar e não estava animada. Nos últimos dias a única coisa que conseguia engolir era uma sopa à base de legumes, quente. Melhor ir jantar logo, decidi e me troquei. Muito agasalho.
No restaurante o garçon me sorria com entusiasmo como se eu fosse famosa. Olhei pra ele desconfiada, enquanto me levava até a mesa. Hiper gentil, me entregou o cardápio e começou a falar num francês terrível, mas consegui distinguir uma frase referente à dica do chefe para hoje: “Abraço de Polvo!”, falou num tom mais alto como se quisesse ser ouvido e em um português definitivamente ensaiado. Fiquei estática. O que era aquilo, pelo amor de Deus?
— Que disse? — meu francês era tão bom quanto o dele.
— Abraço de Polvo! — quase gritou desta vez e emendou dizendo que era o prato do dia indicado pelo chefe de cozinha.
“Abraço de polvo”, que coincidência. Olhei instintivamente para os lados, o coração foi batendo mais forte pela lembrança despertada, o nó na garganta provocado pelo choro reprimido. Deixei que uma lágrima rolasse fria. Havia perdido a fome. Subi imediatamente para meu quarto e, na cama, abracei o travesseiro querendo que uns certos braços estivessem ali pra me proteger. Adormeci assim.
EU…
Estava no restaurante te observando Você parecia cansada e em teu olhar não via aquele brilho desafiador que me encantava, que ainda me encanta. Ouvi o garçom fazer o estardalhaço e me perguntei o que aquele idiota tentava fazer. Queria estragar meu plano gritando igual palhaço! Você ficou confusa por um tempo, olhando pra ele. Disse-lhe algo em francês. Minha mesa ficava a poucos metros, mas escondida por uma planta artesanal. Vi quando o cretino desapareceu pra dentro da cozinha. Você ficou um tempo parada, vi tua lágrima escorregar pelo canto do olho e quis mandar os planos as favas correndo pra você, te abraçando, dizendo que estava tudo bem, mas queria que você pensasse em mim… Em nós. Queria que você tomasse a atitude antes. Foi quando te vi sair do restaurante sem ter comido nada. Preocupou-me, por teu estômago frágil. Estava mais magra. Quis te seguir até seu quarto, mas achei arriscado e me detive. Agora só me restava a última cartada.
VOCÊ
Acordei do mesmo jeito que tinha ido dormir. Sentia leve dor de cabeça, acho que era fome. Fui às rotinas matinais. Desci ao restaurante para o desjejum às oito horas. Pensava no que fazer enquanto mexia meu café, quando o garçom colocou uma flor azul em minha mesa.
— Flor de Lótus. — o português era fraco mas compreensível.
“Por que diabos todo mundo agora falava português?!”, disse pra mim mesma. Segurei a flor… Lótus… Esquecimento. Lembrei-me da história que o guia contara sobre a ilha. Lembrei-me de um tempo em que recebia rosas azuis, um tempo em que não queria esquecer. Uma vontade louca de ouvir tua voz. O aparelho jazia em cima da mesa, tentei pegá-lo, mas desistia. Pousei a mão sobre ele, tentando resistir ao desejo de discar teu número. Permaneci assim até que o garçom chegou com a comida e comi.
EU…
Oito horas… Onde você estava? Sei que viria direto pro restaurante. Não comeu nada ontem. Depois de cinco minutos te vi entrando. Apesar de abatida ainda estava linda, vestia um casaco preto de pelica, luvas, os cabelos estavam soltos caindo nos ombros, a cor branca de tua pele contrastava com a dos funcionários. Cedo demais pra turistas. Que mais podia fazer para que se lembrasse de tudo o que passamos? De toda a vida que construímos mesmo em pouco tempo?
Comeu pouco e saiu sem dizer palavra com alguém a caminho da praia. Te segui, não aguentava mais ficar longe, me deliciava ao ver os cabelos brigando contra o vento forte que vinha do mar. Você andava de cabeça baixa, vez em quando direcionava o olhar pro mar. Botou a mão no bolso e pegou algo de lá. Seria o celular? “Liga!” era meu pedido sofrido… ”Liga amor e vou ter certeza que você me ama… Liga…” Você se abaixou de repente e apanhou um graveto. Quis me aproximar, mas tive medo de por tudo a perder, pois sabia exatamente o que desenhava.
VOCÊ…
Pedi um chá de menta lavado com água de jasmim. Comi pouco, isso já estava virando rotina e não estava gostando muito disso, mas não me importava e isso preocupava mais. Partia pra mais uma de minhas caminhadas, parei um pouco me sentindo vigiada, coisa de filme de suspense? Ri da minha intuição e continuei adiante. O tempo estava menos frio que o dia anterior. Me dei ao luxo de soltar os cabelos e dispensar o chapéu. Parei e olhei para a areia. A água ainda não alcançava aquele ponto. Lembrei-me de teu desenho lá em Recife. “Por quê? Por que estava lembrando isso agora”? Pus a mão no bolso e puxei o celular esquentando minha mão. Desde ontem quis fazer a ligação. Não. Deixei o objeto onde estava. Vi um graveto próximo e desenhei. Fiquei olhando por vários segundos o coração inscrito na umidade daquela praia. Quinze segundos e o coração foi levado embora, apagado pelo mar que me dizia coisas que já sabia, mas que não queria ouvir. Não queria.
EU…
Depois do desenho na areia, você caminhou lentamente pelo caminho de volta. Ia me afastando a cada passo seu, no teu ritmo pra não te perder de vista e me livrar das suas. Você parou mais uma vez, fiz o mesmo. Pôs novamente a mão do bolso e desta vez o celular veio junto quando você a retirou de lá. Retirei o meu devagar, olhei-o com o coração aos pulos, pedindo, ele vibrou e quase que o derrubo do susto. Meus lábios se abriram num sorriso inimaginável… Era você.
VOCÊ…
Não podia mais resistir. O desejo de ouvir tua voz chegara ao extremo, que se danasse tudo! Precisava te ouvir um pouco. Disquei o número meio nervosa. Três toques e nada de você atender. Lembrei-me de tua displicência com o aparelho, de quantas broncas já tinha te dado por causa disso. No quarto toque você atendeu.
— Oi.
A voz estava calma, mas travada. Te conhecia. Era sinal da emoção forte, ficava assim sem saber como falar. Um barulho ao fundo me fez pensar que também estava no mar ou próxima a ele. Questionei e você confirmou, disse que estava na nossa praia desenhando um coração enorme. A informação me derrubou literalmente, te disse que também estava na praia longe, mas que era impossível não pensar em você vendo esta paisagem. Pensei que cairia. Lágrimas banhavam meu rosto, mas não deixei que percebesse meu choro e perguntei pelas crianças, se podia falar com elas.
— Não pode, agora estão em casa se alimentando.
A frieza me fez lembrar tua dificuldade e entoei um riso forçado já imaginando teu rosto neste momento.
— Não tem sido fácil, Endless… A batalha interior está sendo travada. É um bom combate, mas muito doloroso… Ainda bem que te tenho na minha tropa…
Já ia me entregando de novo e desliguei antes que um soluço pudesse ser ouvido por você. Fiquei olhando o aparelho. Quando fazia isso, desligar sem me despedir, você retornava me pedindo seu beijo de boa sorte, mas você não retornou. Entendi, devia estar magoada. Já era hora do almoço e não estava nem um pouco disposta a comer. No restaurante pedi uma água de coco, tomei e subi. Só queria dormir.