Aghata
Tive muito medo dela largar tudo, depois que eu falei. Mas não poderia deixa-la sem saber de nada e correr risco por conta de minhas atitudes e decisões. Conversamos muito a respeito do que fazer e decidimos que eu seguiria com o que já estava planejado. Sinceramente, eu me surpreendi com a sua força e determinação. Eu tinha achado mesmo a minha cara metade, alma gêmea, ou fosse lá o que fosse. Ela era tudo para mim e eu queria me livrar de tudo que estivesse nos atrapalhando. Lógico que não queria nenhuma baixa, até porque essas pessoas eram tão inocentes, tão sofridas e tão carentes que não mereciam passar por mais alguma coisa. Contraditório o que estou contando a vocês nesse momento depois de tudo que sucedeu antes? Não é, e vocês vão entender por quê.
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Na noite anterior ao encontro com o comboio, aconteceu um fato em que o acampamento todo ficou perplexo. O Fingal saiu por algumas horas e retornou bêbado. Ele começou a dançar em volta da fogueira que o pessoal fazia a noite. Começou a afrontar todo mundo e a mexer com as mulheres. Paula me olhou contrafeita e Garnet se posicionou ao nosso lado. Estávamos sentados em “cadeiras” improvisadas de pedra e eu mexia com um galho no solo de cabeça baixa, pedindo mentalmente para ele não se aproximar. Não queria me confrontar com ele, não era prudente na nossa situação. Não adiantou muito meus pedidos aos céus, ele veio direto em nossa direção e puxou Paula pelo braço.
— Qual é, loirinha? O que ela te dá, eu posso fazer muito melhor.
O cheiro de bebida rescendeu no ar.
— Me larga, Fingal!
Paula se livrou de seu agarro e se colocou em uma posição de defesa. “A Paula sabia lutar”? Eu não sabia. Aliás, não sabia muita coisa dessa pessoa tão amada por mim. Garnet levantou e se posicionou ao lado da Paula. Eu apenas levantei a cabeça e olhei bem dentro dos olhos de Fingal. Ele queria me desestabilizar, queria me afrontar. Não gostou de que eu estivesse trabalhando junto com ele e isso o estava enlouquecendo. Bom, não era problema meu, que se danasse se ele não estava gostando, eu que não iria por tudo a perder a essa hora do campeonato.
— Fingal, amanhã temos que sair cedo.
Me levantei e virei de costas, me encaminhando para a cabana. Olhei novamente para trás e o fitei.
— Não acha melhor irmos dormir?
Voltei-me novamente, andando para a cabana. Escutei um urro de cólera e dei meia parada. Se esse cara perdesse a cabeça, eu cortaria os bagos dele sem a mínima pena. Logo percebi que Paula me acompanhava e Garnet também.
— Ele não gostou muito de sua atitude.
— Estou pouco me lixando para o que ele pensa.
— Vamos todos dormir que é melhor. – Falou Garnet.
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— Estou pronta, Fingal! Podemos ir.
Ele saiu da sua cabana com cara de poucos amigos e umas olheiras de fazer gosto. Bem feito, quem mandou ser criança e encher a cara com uma bebida de fundo de quintal? Ria por dentro, pois provavelmente seus reflexos deveriam estar péssimos.
— Vamos, já está na hora.
Foi a única coisa que disse durante o trajeto inteiro. Andávamos já há mais ou menos uma hora em uma estrada de barro esburacada e Fingal não estava suportando de tanta dor de cabeça.
— Será que não dá para acertar menos buracos?
Ele perguntou a Greg, o motorista. Greg deu uma olhada de rabo de olho e soltou uma gargalhada. Tinha um charuto fedorento no canto da boca e continuou sorrindo. Olhou pelo retrovisor em minha direção ainda sorrindo e disse.
— Sabe, Aghata, você deve se perguntar por que o Fingal está com tanta raiva de você.
— Não me interessa por que ele tem raiva de mim.
— Esse é o problema. Você não dá a mínima para o que ele pensa. O ego dele fica muito machucado, sabia? – Greg gargalhou
Se fosse outra pessoa, o Fingal teria tirado satisfações naquela hora mesmo, mas o Greg era o seu braço direito e um cara truculento, provavelmente já tiveram inúmeras vezes discussões a respeito das atitudes do Fingal.
Chegamos ao ponto marcado e o comboio já havia chegado também.
— E agora, vamos esperar?
— Disseram para eu deixar a negociação inteira por sua conta, estamos aqui só para escoltar! — Fingal falou contrafeito.
— Você já negociou com eles antes? Você já os conhece?
Joguei para massagear seu orgulho e estimular para que ele falasse algo.
— Claro que sim! Essas armas sempre foram negociadas por mim! Sempre dei os preços e sempre aceitaram. Mas parece não ser o suficiente para Padox e Hasnar. Querem você, agora!
Ele falava com raiva dissimulada.
— Entendo. *** Olha Fingal, nós dois erramos. Deveríamos ter conversado sobre isso antes. Padox e Hasnar me colocaram dentro por conta de outros contatos que eu tinha. Não era para eu vir negociar nada hoje. Talvez acompanha-los para saber o funcionamento, mas não negociar. Não tenho nada a ver com seus contatos. Eles só estão querendo ampliar os negócios comigo. Fazer novos contatos.
— Então, não está aqui para negociar com os Barhas?
— Não! Nem os conheço. Eu fazer isso, talvez venha a ser um grande desastre!
Fingal coçou a cabeça e olhou para Greg. Greg o encarou.
— Droga! Eles querem o dinheiro, mas falam tudo pela metade! Melhor deixar ela no caminhão, você sabe que os Barhas são desconfiados.
Parecia que eles tinham me esquecido ali e estavam discutindo entre si. Fingal estava em silêncio, como que analisando a proposta de Greg.
— Ok! – Ele se dirigiu a mim. — Você vai ficar aqui no caminhão, mas se esconda, não apareça, pois eles se melindram por qualquer coisa e não pensam muito bem. Se virem alguém diferente podem querer cancelar tudo.
Anuí com a cabeça. Era tudo que eu precisava. Eles saíram e foram ao encontro do comboio com as armas. Eu estava nervosa e apreensiva. Havia gravado tudo para a polícia internacional. Só precisava que acabasse logo. Vi três caminhões ao longe. Eram os compradores.
Estavam conversando há mais ou menos 10 minutos, quando tudo começou. Já havia estado em uma emboscada antes, no acampamento anterior, se lembram? Pois é. É um inferno de balas e granadas voando para tudo que é lado. Vi os coletes da Polícia Internacional e deduzi que eles haviam conseguido pegar Padox e Hasnar. Quando olhei para frente, vi Greg correndo de encontro ao caminhão onde eu estava, mas antes que chegasse, um tiro de fuzil atingiu em cheio a sua cabeça. Tive vertigem, pois apesar de ser médica e neurologista, aquela forma de ver o sangue, o cérebro de alguém explodindo, a vida se esvaindo, nada tinha de heroico ou nobre. Vi Fingal escapar pela savana, correndo. Eu o deixaria ir? Pensei que a vida de muita gente dependia de intercepta-lo ou não. Lancei-me para fora do caminhão e corri atrás dele. A corrida para alcança-lo foi difícil, mas ele era corpulento e pesado. O alcancei e me joguei em cima dele para derrubá-lo e pará-lo. Meus anos de artes marciais me ajudaram mais uma vez. Ele se desvencilhou e me deu um chute no rosto que só não pegou em cheio por meus reflexos apurados.
— Sua vagabunda traidora!
— Traidora?! Eu acho que você está invertendo as coisas, Fingal! Quem entrou para as forças de paz e traiu a confiança dessas pessoas necessitadas foi você, não foi?
— Agrrrr!
Ele partiu para cima de mim, com tudo. Tive tempo só de me esquivar e lançar um chute em seu traseiro. Se eu estivesse em outra situação até riria dele, mas o cara estava com o bicho no corpo e se voltou para mim no mesmo pé em que recebeu o chute. Dessa vez, ele me acertou em cheio. Uma nuvem povoou minha mente e eu enlouqueci. Não vi mais nada. Era um defeito meu que eu abominava e me acompanhava desde adolescente. Apanhei tanto na minha juventude nas ruas que aprendi a me defender, só que quando eu começava a apanhar, algo brotava em mim que era quase inconsciente… irracional. Uma raiva destemperada surgia e eu reagia da pior maneira, pois eu não via a hora de parar. Eu simplesmente deixava acontecer. Durante muitos anos fiz terapia, para acalmar esses meus demônios e finalmente, agregada às artes marciais, eu consegui controlar. Mas depois desses anos nessa terra em que muitas vezes só a força fazia você sobreviver, meus demônios retornaram. Meus punhos ardiam de tanto bater e meus olhos não viam nada a não ser um rosto desfigurado em sangue e carne na minha frente. Escutei dois estampidos e, nesse momento, meu corpo ruiu. Eu só senti frio…
Paula
Às vezes é difícil entender por que a gente ama alguém de uma forma tão intensa que não conseguimos raciocinar para onde nossos atos nos levam. Amor, decepção, sofrimento e alegrias incomuns… Depois de cinco anos vivendo no limbo e quatro meses de desespero, eu entrava em minha sala na universidade para voltar a atender meus alunos de mestrado.
— Bom dia, Ingrid.
— Bom dia, Srtª Atanar. Quer que leve um café para a senhorita?
— Não precisa, Ingrid. Acabei de tomar café na cantina.
— A senhorita não precisa tomar café lá. Sabe que é um prazer para mim, eu levar o seu café.
Eu inspirei fundo. Tentava ao máximo não constrangê-la ou causar nenhum desconforto entre nós, mas depois de tudo que me aconteceu, eu não me encontrava com humor ou disposição para relevar algo que somente cresceria se eu deixasse correr. Parei diante da porta da minha sala e sem me virar pedi que ela me acompanhasse.
Sentei-me e pedi que ela sentasse à minha frente.
— Ingrid, gostaria que você não me levasse a mal, mas…
Inspirei fundo, novamente. Percebi seu desconforto e intuía que ela sabia o que eu diria, pois ela baixou seu olhar, já marejado por lágrimas.
— Ingrid, eu não quero que você tenha falsas esperanças, só isso. Meu coração foi, é, e sempre será de uma só pessoa. Fico lisonjeada com a sua atenção, mas eu nunca poderei corresponder. Você me entende?
Ela começou a soluçar e isso quase me matou. Suas mãos estavam postas sobre a mesa e as lágrimas escorriam frouxas de seus olhos. Coloquei minhas mãos sobre as dela.
— Vamos fazer o seguinte. Você me promete que vai tentar encontrar uma pessoa que te ame de verdade e eu prometo que não vou mais tocar nesse assunto. Assim, você se livra de mim e eu ganho uma amiga.
Eu sorri para ela para tentar tirar a seriedade do assunto. Ela sorriu também tentando enxugar as lágrimas.
— Não seria você a se livrar de mim?
— Eu não quero me livrar de você, Ingrid. Eu só quero que você possa se livrar desse sentimento que você tem por mim e ter alguém que corresponda o seu amor, verdadeiramente. Eu não posso corresponder e isso vai te fazer sofrer muito. Eu não quero isso. Promete que você vai tentar?
Ela se recompôs e só sinalizou que sim com a cabeça.
— Muito bem, então vamos começar a trabalhar, ok?
Ela sinalizou novamente, já se levantando para sair, quando alcançou à porta ela voltou-se e me perguntou.
— É a senhora Munhoz, não é?
— Sim. — Foi a única coisa que eu disse. Ela se voltou novamente e saiu.