Dizem que as mulheres gostam de flores. Isso é verdade. Pelo menos, para mim, isso é verdade. Sempre gostei das flores, da natureza e do outono. Gosto do outono e não da primavera, apesar de gostar de flores. O outono por ter dias claros, o céu luminoso, a brisa agradável, o calor brando e não ter demasiado pólen, porque tenho rinite alérgica e sempre me ataca na primavera. Não conheço nenhuma mulher que não aprecie ser presenteada com flores. Bom, até agora não conheci e sinceramente espero não conhecer, pois me decepcionaria se encontrasse alguma que não gostasse, a não ser que ela tivesse alguma doença que não pudesse ter um buquê de flores perto dela. Meu nome é Paula e tenho 28 anos e essa é minha história, na realidade esse é meu começo. Ah! Tenho um terrível defeito, pelo menos hoje chamam de defeito, pois na época do glamour do cinema, era charme. Eu fumo.
Fico pensando que quando acendo um cigarro hoje na rua, me olham como se eu fosse um estuprador. Isso mesmo, um fumante está tão fora de moda que um estuprador leva mais créditos do que eu. É bem capaz de ser parada por um senhor supostamente distinto, mas que quando quer “comer” menininhas, me desculpem o palavreado, vai a algum lugar de raros prazeres, paga por uma bem novinha, achando isso normal e ainda tem a audácia de me recriminar. Bem, isso não vem ao caso, pois fumar faz mal a saúde. Não quero me justificar, mas já justificando.
Na realidade, minha história não tem nada de mais, aliás, minha vida não tem nada de mais. Mas ela é muito importante para mim e aí eu resolvi contar. Sou da classe mais comum de gente que existe. A classe média. Aquela que pensa que tem alguma coisa, que almeja mais do que tem, pois conhece o que é bom, no entanto, nunca chega a realmente desfrutar, porque nunca alcança. Nunca consegue eleger os políticos que vota. É uma classe que sempre fala e nunca é ouvida, pois não elege os políticos que vota. Filosofa nos bares, tem papos cabeça com os amigos, gosta de churrasco com a galera, se rebela contra a economia, porém nunca elege os políticos que vota. Que adora falar criticamente das notícias, que saíram no jornal, adora uma boa piada enviada para seu email e nada muda, pois nunca elege os políticos que vota.
Não sou uma reacionária, anarquista, revolucionária que acha a vida uma droga, mas invariavelmente faço parte dessa massa que faz, trabalha, paga muito imposto, realiza coisas incríveis e nunca elege os políticos que vota. Enfim sou normal, em termos é claro. Na minha vida tudo é normal. Assim eu achava…
Vocês estão pensando que eu era hetero e de repente descobri que não era e, minha vida virou de cabeça para baixo. Não. Eu nunca fui hetero, apesar de ter entendido o que eu era só na adolescência. Por sinal, acho que é por isso que antigamente nós nos chamávamos de entendidos… Muito interessante… Nunca tinha pensado por esse lado.
Acontece que eu estava na minha, trabalhando no setor público, concursada e tendo o meu dinheirinho, mas um saco! Meu trabalho é um saco? Não! Mas o sistema público é um saco para quem quer trabalhar e depende da política vigente. Minha profissão, não posso dizer que é comum, porém não é nada de outro mundo. Sou pesquisadora e se pensam que pesquisador nesse país é alguma coisa demais, também estão pensando errado. Se for servidor público, é classe média e ganha só para sustentar a vida de classe média. Não tem carrão, é C3 mesmo. Meus colegas de trabalho têm palio, sandero… um comprou uma TR4 usada e não pode financiar mais nada, pois comprometeu boa parte de sua renda. Bem, era o sonho dele e ele não é casado, mora com os pais. Acho justo, pois quando quiser morar sozinho ele vai ter que fazer escolhas e provavelmente não vai querer escolher comprar o carro que sonha; vai querer mobiliar a casa, pagar as contas e poupar uma grana para comprar uma casa própria.
Pesquisador é uma raça boba mesmo, acha que estudando muito vai chegar o dia que vai descobrir algo que vai mudar toda a humanidade. Mentira! Isso hoje é uma mentira, pois tudo que você estuda e você faz é apenas uma pequena parte de algo maior, não é “o algo”. Não é mais como a descoberta da roda, do telefone, da célula ou do que gera a combustão. Isso foi lá no início. Hoje existem pesquisas em todas as áreas e compartimentadas. Então, em todas as áreas tem pesquisadores e eles fazem parte de uma engrenagem onde cada um descobre um pouco de cada coisa. Existem grandes descobertas? Sim existem, mas, provavelmente, só em lugares onde se subsidia grandes pesquisas sem prazo de validade. Isso definitivamente não é aqui. Pode acontecer? Pode. Mas só com um empurrão bem forte do destino.
Mas onde eu estava mesmo? Ah! Sou Paula, pesquisadora e servidora pública.
— Bom dia Paula! Vai fazer um cafezinho pra gente?
Meu sono me atormentava por ficar no computador noite adentro sem sono e, quando chego ao trabalho, o cara de pau ainda me pergunta se vou fazer o café! Era para ele ter feito há muito tempo.
— Gustavo me poupa! O secretario de ciência vem hoje visitar o laboratório?
— Mais uma vez, como sempre com cara de paisagem, às duas horas da tarde.
— Hoje não tô com saco.
— É, mas a gente tem que abrir as apresentações dos trabalhos nos computadores. Temos que mostrar o que fizemos nos últimos tempos, porque o chefe quer ver se descola uma grana para o projeto da comunicação por vibração.
— Vai esperando. Vou me trocar e Gustavo…
— Oi.
— Vê se pelo menos hoje você faz o café.
— Rebordosa de sono?
— É.
Fui para o vestiário colocar o jaleco. Isso deixa a gente esquisita e gorda, mas fazer o quê, né?! No nosso laboratório o chefe exigia que a gente usasse, mesmo que não fosse laboratório químico. O laboratório era de engenharia para desenvolvimento de novos produtos. Isso quer dizer que tinha de tudo, desde engenheiros eletrônicos, mecatrônicos, mecânicos, desenhistas industriais, técnicos de oficina, analista de sistemas e até gente da área de saúde, para auxiliar na interação dos produtos com o ser humano. Pois é, eu era uma dessas da área de saúde. Imagina o que eu não passava na mão deles, ainda mais que eu era formada em educação física, especialista em biomecânica e apesar de ter mestrado em neurologia eu nunca seria a médica neurologista que eles desejavam. Não mandei eles colocarem o perfil do concurso como: “Área de saúde, especialista em biomecânica e “neuro””. Acho que eles achavam que só médico teria a capacidade de fazer a prova. Ledo engano e grande imbecilidade. Vocês acham que um médico neurologista também faria especialidade em biomecânica? Neurologista era neurologista, cirurgião… Nunca vi um deles que quisesse fazer especialidade em biomecânica. Aliás essa é uma especialidade muito comum na educação física, por se tratar do estudo do movimento humano e, quando algum médico fazia, normalmente era ortopedista e não “neuro”. Acho que eles queriam fazer um concurso dois em um. Tinham apenas uma vaga e queriam dois especialistas. Sorte a minha! Concorri comigo e… Comigo. Mas não achem que foi fácil, pois tinha que fazer a pontuação mínima em todas as fases, que era de 70% e ainda, tive uma banca para apresentar uma aula, que se quisesse me detonar eu estava ferrada! Na realidade quase me ferrei. Eles tentaram mesmo me detonar, mas no final pensaram melhor e se me detonassem, perderiam a vaga e Deus sabe lá quando teria concurso novamente.
Apesar de, às vezes, eles titubearem nas opiniões que eu dava, no fundo a galera era legal. Quando eu dava bola dentro era “OOHH!!” Quando eu dava bola fora era uma cara de “tá vendo?” Coisa que não acontece com os marmanjos da engenharia e olha que têm muitos que dão bola fora direto! Mas tudo bem, eu sou lésbica e depois que eu escancarei para todo mundo ficou um pouquinho… Pior! Pelo menos, quando alguém vinha de gracinha falando alguma coisa do tipo: “Aí Paula, não sei o que vocês pensam! Vocês nunca vão fazer como um homem de verdade faz com uma mulher”! Eu respondia: “Graças a Deus e amém”! Eu acho que eles nunca entendiam.
Voltei para o laboratório, sentei na frente do meu computador e o liguei. Cacá sentou ao meu lado e queria mostrar o que ele tinha evoluído no sistema que estava desenvolvendo junto comigo. Cacá é analista de sistemas e como nós estávamos sem demanda de projeto, resolvemos “brincar de pesquisar” o que quiséssemos e estivéssemos com vontade.
Cacá não é gay. Por sinal um grande defeito seu, pois ele é um cara muito legal. Não que eu ache que uma lésbica tenha que andar sempre com um grande amigo gay a tiracolo, mas… É que na realidade, já tive um grande amigo hetero e andávamos muito juntos. Com o tempo, seus amigos heteros começaram a encher a cabeça dele no sentido de não entender a nossa amizade. Diziam que; ou ele queria me comer, ou que ele deveria me comer, ou que ele era gay enrustido. Ele não aguentou a pressão e acabou se afastando, pois sabia que uma hora ou outra acabaria cedendo e dando em cima de mim. Seria muito pior porque eu iria me decepcionar muito.
Se vocês acham que eu me acho linda, maravilhosa e irresistível, é verdade. Brincadeirinha! Não vou dizer para vocês que eu sou feia, pois isso eu não acho. Vejam bem, se eu não fosse eu e passasse por mim na rua, eu até me paquerava. Mas também não sou irresistível, pois se assim fosse, eu estava namorando e não sozinha. Acho que sou chata porque sou teimosa e acredito que no dia a dia sou tímida, também. Nunca consegui cantar ninguém de cara limpa. Ou eu tomo “umas” e fico soltinha ou sou cantada. Na minha vida acabei ficando com umas peças raras que só me trouxeram dor de cabeça, mas pelo menos o sexo valia a pena.
Voltando ao tema minha aparência, eu tenho um e sessenta e três de altura, ou seja sou baixa. Tenho os cabelos louros e curtos, andar leve, pois pratico Tai chi chuan, todos os dias. Já fiz judô e kung fu, mas não gosto de apanhar nem de bater e, quando me machucava, odiava sentir dor. Optei por algo mais sereno, ligado às artes marciais mesmo, porém não machucava ninguém e ninguém me machucava. Isso me trouxe suavidade nos movimentos, não sou do tipo “bofinho” apesar de ter o corpo delineado pela prática de atividade física. Tenho os olhos verdes e meu rosto aparenta ser mais jovem do que sou realmente. Poderia dizer que isso é uma característica boa se não fosse o fato de atrapalhar no meu trabalho. Todos acham que eu tenho um rosto de menina e acabam projetando isso, não dando muita credibilidade ao que eu faço.
Eu tenho uma teoria de que a maioria dos gays são muito bons no que fazem, pois tem sempre que se superar para provar a sua competência. Vocês imaginem agora uma mulher que é homossexual, pesquisadora e que sua formação primeira é a educação física, no meio de um monte de homens mais velhos e engenheiros e, ainda por cima, com rosto de menina? Somem isso ao fato de eu até ser bonitinha. Acabo no final do dia achando que matei um leão no grito.
Eles podem entender em como se constrói um equipamento, um robô, um sistema, mas no final sempre recorrem a mim para saber como dar fluidez ao movimento do brinquedinho deles, como fazê-lo interagir com o ambiente e, com o mais importante, como interagir conosco, seres humanos.
O Cacá é diferente, pois ele entrou depois de mim e é mais novo do que eu dois anos. Apesar de ser homem e analista de sistemas, ele é mais novo do que todo mundo, o mais novo também no emprego, também não é engenheiro, ou seja, ele é a bola da vez. Comigo ele é legal e nos damos muito bem. Só ocorreu um fato no início e que ele ficou constrangido comigo. Tudo por culpa do babaca do Gustavo. Quando ele chegou, estava meio deslocado e eu sabia bem como era aquilo. Fui simpática com ele e apresentei como as coisas ocorriam no laboratório. Já tínhamos tido bolsistas analistas de sistemas e sabíamos exatamente o que buscar do conhecimento dele. Começamos a interagir e acabamos nos dando muito bem, mas acho que nesse meio tempo ele interpretou mal a minha simpatia e começou a se interessar por mim. Tentei me afastar um pouco para não dar mais corda e um dia quando cheguei mais cedo no trabalho, peguei o Gustavo falando para ele que eu era “sapata”. Palavras do Gustavo. Foi mais ou menos assim:
— Cara, cai fora dessa. Você não viu que ela é sapata?
— O que?!
— É isso mesmo ô retardado de fraldas, ela é sapatão. Gosta de mulher, tá perdendo seu tempo.
— Olha Gustavo, eu não sabia disso, mas não quero que ela escute você falando assim dela, nem que ela pense que eu falei qualquer coisa desse jeito. Gosto da Paula e ela é uma garota legal, sempre me tratou muito bem e é muito inteligente. A gente trabalha muito bem junto. O fato dela ser gay, pra mim, não muda nada.
Acho que o mais legal foi ter escutado o Cacá me defendendo e dizendo que eu era gay e não falado “sapata”, “sapatão” “fanchona” ou algo do tipo. Mas voltando…
— Iiiii! Ficou irritadinho é? Só quis te alertar, ô garoto!
— Recado dado, mas fica por aqui. Não quero mais escutar alguém falar dela do jeito que você falou.
Cacá saiu irritado da copa voltando para o laboratório e eu me esquivei para ele não ver. Entrei na copa olhando de forma severa para o Gustavo. Não queria me estressar com ele, apesar dele ser fofoqueiro e intrometido, ele também era puxa saco de quem estivesse por cima; coordenadores, chefes e diretores… O problema é que o idiota sempre caia na graça de alguém. Mas dessa vez eu não aguentei.
— Tá satisfeito, Gustavo?
Ele me olhou com uma cara lavada e disse:
— Satisfeito de que? Eu não fiz nada! Só o alertei para não gostar de você. Você não gosta de homem mesmo! Ou mudou de ideia?
Riu um sorriso cínico e eu fiquei vermelha de raiva. Controlei-me para não esbofetear o idiota e ele acabar abrindo uma ocorrência contra mim por agressão dentro de órgão público. Inspirei fundo, enquanto ele ainda me olhava rindo.
— Na realidade, você tá com a razão.
— Estou? – Ele me olhou desconfiado.
— Está. Pois se um idiota como você sabe de minha orientação sexual, por que um cara legal como o Cacá não deveria saber, né?
Não dei chance dele retrucar. Saí da copa como um furacão em direção ao laboratório, pois não queria mais olhar para a cara do imbecil e queria conversar com o Cacá.
Quando eu cheguei ao laboratório, o Cacá estava com a cara enfiada no computador dele. Percebeu minha presença, mas fingiu que não me viu entrar. Cheguei perto dele, por trás, e coloquei a mão no seu ombro. Ele levantou o olhar com certa tristeza e eu percebi que o menino estava gostando de mim de verdade.
— Quer conversar? — Eu perguntei.
— Você ouviu a minha conversa com o Gustavo?
— Ouvi. Estava chegando naquela hora.
Eu estava nervosa e, ao mesmo tempo, triste, pois comecei a achar que realmente não tinha sido honesta com o Cacá.
— Vamos lá fora? Preciso fumar um cigarro…
Falei com um tom de súplica e acho que ele percebeu a minha angustia, pois seu semblante se suavizou e ele levantou me acompanhando.
Quando chegamos lá fora, fomos direto sentar no banco embaixo da árvore que tinha no jardim. Tirei meu cigarro do bolso do jaleco e comecei a acendê-lo, nervosa. Apesar te ter escutado o Cacá me defender, eu sabia que ele estava magoado.
— Por que você não me contou, Paula? Eu pensei que você confiava em mim?
— E confio, mas não achava relevante. Que relevância tem a minha orientação sexual para a nossa amizade?
— Para a nossa amizade, não. Mas acabou que comecei a gostar de você e para isso, acho que é relevante, não?
“Nossa! Que bagunça!” Eu pensei. Que droga também! Por que toda a vez que uma mulher é atenciosa e gosta da convivência de um cara, acaba sempre em confusão? Tem tanta mulher por aí, por que essa galera cisma de gostar de quem nunca vai gostar deles?
— Olha Cacá, não foi por nada. Apenas não achei que pudesse acontecer algo assim e, depois, o que você queria que eu falasse? Você chegou tem três meses. Você queria que eu me apresentasse como? “Prazer, meu nome é Paula e eu sou lésbica”?! Você se apresentaria “meu nome é Carlos Eduardo e eu sou hetero”?!
Eu olhei para ele e ele começou a gargalhar da forma como eu falei.
— Você realmente é demais, Paula!
Ele continuou a rir eu ri também, mas aliviada do que outra coisa.
— Não, acho que não.
Ele suspirou e eu coloquei a mão sobre o ombro dele.
— É, Cacá. Acho que esse babaca acabou nos fazendo um favor. Pelo menos as coisas ficam mais claras. Só não gostaria de perder sua amizade, não gostaria que você se afastasse de mim.
— Ei, Paulinha! Eu não sou preconceituoso, só que eu estava começando a gostar de você, mais do que eu devia. Também quem mandou? Se você fosse uma lésbica feia, eu te garanto que isso não ia acontecer.
Ele falou se protegendo, pois sabia que eu ia cair com uma chuva de tapas no braço dele. Esse ritual já fazia parte de nossas brincadeiras.
— Quer dizer que você só se interessou por me achar bonita. Se eu fosse só inteligente, simpática e divertida não ia servir? Que coisa feia de se falar, Cacá!
O repreendi com falsa indignação e ele continuou a rir. As coisas voltaram para o normal, acho que ele me esqueceu como mulher, isso já faz seis meses. Hoje em dia saímos juntos para beber, ele fica tentando arrumar uma garota para mim e eu fico tomando conta dele, pois sempre acaba caindo bêbado no meu sofá da sala. Sempre não, às vezes. Falando desse jeito, parece até que o cara é “bebum”. Só bebe assim uma vez por semana, normalmente sábado e ainda pergunta por que eu não arrumo ninguém! Às vezes, dá vontade de esganar ele.