Camila acordou na ala médica da Agência de Inteligência.
Seu corpo inteiro doía e respirava com um pouco de dificuldade. Ergueu a mão com cuidado e observou a agulha conectada a uma mangueira que levava o soro até sua corrente sanguínea. Correu os olhos pelo quarto em que se encontrava, nada parecido com a cabana de madeira coberta com folhas secas de palmeiras e outras árvores que o Dr. Alvarez usava como consultório e enfermaria para os rebeldes. Não havia crianças remelentas e choronas, nem mulheres grávidas e em estado de parto, muito menos as moscas.
Observou tudo que pôde até que seus olhos encontraram os da mulher que a enviara para lá e permitiu que vivesse mais um pouco.
Parada à porta do quarto, ela a observava da mesma maneira intensa com o que fez na cela e, dessa vez, o brilho em seu olhar não desaparecera. Permaneceram nessa troca de olhares intensos por alguns segundos, até que a estranha que detinha o poder sobre sua vida aproximou-se da cama.
Usando um tom baixo de voz, começou a falar:
– Esta noite você irá… – a chegada de uma enfermeira a fez calar-se e, como esta se demorou muito no quarto, ela afastou-se e caminhou lentamente para fora do cômodo sob o olhar atento de Camila que a avaliava com grande curiosidade, pois agora que a vira novamente e em um ambiente mais iluminado, não pôde deixar de achá-la familiar.

***

Eva havia ido até a ala médica da Agência para tentar avisar Camila de que, naquela noite, estaria fora daquele local. No entanto, a chegada da enfermeira a interrompeu e estragou seus planos, pois em seguida tivera de sair atendendo ao chamado urgente de Morales.
Antes mesmo de se aproximar do corredor onde ficava a cela em que Morales estava, ela sentiu o cheiro de morte no ar. Um calafrio percorreu-lhe o corpo em sinal de mau presságio. E, alguns metros antes de chegar à porta da cela, pôde visualizar o triste cenário que se desenhava lá dentro.
Diante de seus olhos, jazia o corpo de Diego banhado em sangue e, praticamente, mutilado. Nas mãos, a ausência de alguns dedos e em seu lugar uma grande mancha de sangue já coagulado. Os pés atados, tinham sua sola azulada e já adquirindo uma tonalidade arroxeada, assim como seu rosto que de tão inchado mal dava para divisar os olhos que estavam opacos e sem vida.
O estômago de Eva contorceu-se em náuseas. Já havia presenciado os métodos de tortura do Tenente Morales. Ele era cruel, mas nunca havia deixado alguém morrer.
Ajoelhou-se e olhou para a face inchada e sem vida, para aquela casca do que antes fora um belo rapaz de cabelos encaracolados e sorriso atrevido, como tantas vezes vira quando ia as escondidas ao acampamento rebelde ter com seu tio.
Sentiu a revolta e o ódio consumindo o seu íntimo como se fosse uma eterna chama devoradora e perguntou-se incessantemente, durante alguns minutos, quando que aquela matança iria terminar.
O tenente Morales parecia desconcertado, até o sorriso simpático abandonara sua face. Aproximou-se de Eva.
– Estávamos o interrogando quando ele morreu.
Ela ergueu-se de um pulo e deixando transparecer a ira que sentia, gritou:
– Veja o estado em que ele está! Por que você não parou?!
Respirava com certa dificuldade devido o estado de fúria em que se encontrava. Era mais alta que Morales, mas nem por isso deixou de se curvar um pouco até que seus rostos ficassem a centímetros um do outro e ele pudesse sentir a raiva que dela emanava pelos poros, gestos, olhar e tom de voz.
Nunca antes, ele presenciara tal acontecimento e sentiu o sangue fugir-lhe ao rosto, pois aquela mulher em nada se parecia com a de frieza marmórea que conhecia.
– Nunca fomos tão longe em um interrogatório… – explicou.
– Não foi esta a pergunta que fiz!
– Mas…
– Mas, nada! Responda à pergunta, Tenente!
Ele engoliu em seco. Neste momento, sentia que se encontrava em uma grande encrenca. Talvez, se fosse o Coronel Castilho que estivesse alí naquele momento, só recebesse uma bronca, mas Eva Torres era diferente.
Ninguém sabia ao certo de onde ela viera, até mesmo a inteligência tivera dificuldades para descobrir algo a seu respeito na ocasião em que fora indicada para assumir o departamento de investigação interna.
Toda a informação que obtiveram datava a partir de seus quinze anos e resumia-se a de que era órfã. Após completar dezesseis anos, o orfanato em que vivia fora destruído por um incêndio. Sem ter para onde ir, ela ingressara nas forças armadas, mas por ser muito jovem fora dispensada do serviço militar após um ano. Aos dezoito, ingressara na polícia do governo com as melhores recomendações de algum figurão da política.
Naquela época, cabia a polícia do governo a missão de controlar toda e qualquer manifestação contra o governo do General Cortez e Eva desempenhara bem o seu papel, reprimindo a ação de manifestantes e desmontando uma organização não ligada as FL que planejava assassinar Cortez. A partir desse momento, a carreira de Eva Torres na polícia deslanchou e ela ganhou destaque a ponto de logo ser indicada a ocupar um cargo de menos importância na agência de inteligência e, como logo demonstrara sua capacidade, foi escalando cargos e ganhando novas responsabilidades até aquele momento.
Tudo o mais que se sabia sobre ela, era que era implacável e não media esforços para alcançar seus objetivos, nem tinha qualquer consideração em mandar para a prisão pessoas que trabalhavam havia anos para o governo e eram investigadas pelo seu departamento como possíveis traidores.
– Porque ele parecia estar bem e… – tentou responder o tenente.
– Não minta para mim! Basta olhá-lo para saber que não estava bem no decorrer do interrogatório. Diga o porquê!
Ele engoliu em seco mais uma vez.
– Não há motivo! Este desgraçado não abriu a boca para falar qualquer outra coisa além de insultos, então continuei decidido a fazê-lo dar alguma informação que nos fosse útil.
Ela afastou-se dele, o rosto adquirindo uma tonalidade opaca de vermelho.
– E por isso tirou a vida de um homem, alguém que poderia nos dá informações úteis a respeito dos rebeldes? Por orgulho! O matou por orgulho!
– Eu não…
– Calado! Ordenei que não os interrogasse até que eu estivesse presente. Desobedeceu minhas ordens e deixou um prisioneiro valioso morrer. Até que o Coronel Castilho retorne, está afastado de suas funções, Tenente.
– Não pode me afastar! Não tem autoridade para isso.
– Posso e vou! Aliás, vou fazer mais do que simplesmente afastá-lo.
Ela se voltou para os dois soldados que se encontravam a porta e ordenou:
– Prendam o Tenente Morales, imediatamente!
Os soldados a olharam, estupefatos. Como não se mexeram, ela tornou a repetir a ordem, desta vez, ameaçando-os de prisão também. O Tenente Morales foi levado para fora daquela cela com um grito de ódio preso em sua garganta e sob o olhar de gelo de Eva.
Antes de ordenar a outros dois soldados, que se encontravam do lado de fora da cela, para que levassem o corpo e o enterrassem trazendo de volta para ela a informação exata do local do sepultamento, Eva ainda olhou com pesar para o corpo disforme que antes havia sido um rapaz cheio de vida.
Sentiu um nó se apossar de sua garganta trazendo lágrimas aos seus olhos, lágrimas que ela não permitiu que deslizassem por sua face enxugando-as antes disso.
Recuperando seu sangue frio, olhou para o relógio em seu pulso. Estava tarde. Tudo que estava trabalhando para evitar estava acontecendo naquele momento. Tinha de se apressar, senão, logo Camila e os outros estariam fazendo companhia a Diego em seu túmulo e isso ela não poderia permitir.
Morreria antes disso.



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