Na sala, uma discussão acalorada entre Antônio e Silas se desenrolava sob o olhar divertido de Rafael.

– Você está louco? Como pode acreditar que a sua sobrinha, uma mulher que não tinha qualquer obrigação de entrar nessa guerra, mas optou por seguir seus sonhos transformando-os nos dela, uma mulher que vale por dez dos seus melhores soldados, traiu você?

Antônio cuspia as palavras tão alto quanto sua garganta lhe permitia e o General o encarava friamente como se o que dizia não pudesse atingi-lo. No entanto, Silas sentia-se terrivelmente atormentado por deixar o amigo acreditar que era capaz de esquecer qualquer laço de sangue e amizade para acreditar em palavras duvidosas, apenas porque Eva não estava presente para se defender.

Sustentando sua máscara de indiferença, disse com simplicidade:

– Se me chamou até aqui para falar única e exclusivamente de Eva, meu amigo, então vou embora.

Antônio procurou se acalmar, voltou a sentar-se no sofá e acendeu um charuto. Disse, tentando dar um tom mais calmo a voz que saiu um pouco entrecortada:

– Não vá ainda.

O General, que já estava a meio caminho da porta, voltou a sentar-se na poltrona diante do amigo.

– Muito bem, estou ouvindo.

– Meu assunto agora não é com você – dirigiu um olhar penetrante ao rapaz junto à porta – Sente-se, Rafael.

O rapaz o olhou desconfiado, mas obedeceu.

– Quero que me conte exatamente o que se passou entre Eva, você e a tal Marina.

– Mas, senhor, o General acaba de lhe dizer o que se passou e…

– Quero ouvir de você, de preferência, com riqueza de detalhes.

Rafael empertigou-se no sofá e iniciou seu relato. Vez ou outra, parava e molhava os lábios, enquanto observava as reações de Antônio diante de suas palavras, mas este nada deixava transparecer.

– E foi isso que aconteceu – concluiu com um balançar de ombros e uma expressão desolada no rosto.

– Historinha interessante, pensou nela sozinho? – Eva perguntou com escárnio, logo atrás dele.

Atrás dela estava Camila, a mão na arma em sua cintura. Haviam se aproximado tão silenciosamente quanto possível, enquanto Rafael se empenhava em contar sua história.

Ele empalideceu ao perceber que se encontrava em desvantagem. Tentou alcançar a arma na cintura, mas Eva a arrancou dele encostando a sua própria arma em seu ouvido.

– Owww, não, meu “amigo” – escarneceu. – Dê-me isso, não queremos que se machuque.

Ele dirigiu um olhar suplicante a Silas.

– Senhor, ajude-me! – pediu.

Silas cruzou os braços sobre o peito, o desdém se derramando em suas palavras.

– Parece que você sabe se cuidar muito bem sozinho, meu rapaz. Afinal, você sobreviveu ao ataque “feroz” de Eva e seu “comparsa”.

– Senhor, não entendo. Eu…

– Neste caso, deixa eu explicar – Camila o interrompeu.

Aproximou-se calmamente dele e o golpeou violentamente no rosto, um filete de sangue se insinuou por entre os lábios masculinos crispados de raiva.

– Pare de fingir! – ela gritou.

Quase que imediatamente, ele mudou sua postura e deu um meio sorriso.

– O que me entregou? – perguntou.

Silas olhou-o nos olhos, nenhum sentimento era refletido em seu olhar além do desprezo.

– Você foi confiante demais – respondeu.

– Como assim?!

– Se tivesse acusado qualquer outra pessoa do acampamento, um de seus colegas ou mesmo um inimigo imaginário, teríamos acreditado na sua história. Mas, o seu pior erro foi ter acusado a minha filha, pois é assim que a considero, uma filha. Sangue do meu sangue não é capaz de um ato tão baixo quanto a traição. Além disso, as marcas no corpo de Marina, principalmente nos braços, encaixavam-se perfeitamente com as marcas no seu corpo e rosto. Um olho destreinado teria sido enganado facilmente, mas estive nessa guerra por tempo demais para reconhecer quando uma morte não é bem aquilo que aparenta.

Rafael deixou escapar por entre os lábios uma espécie de ruído animalesco e com um movimento brusco afastou a arma que Eva segurava próximo ao seu ouvido. O susto fez Eva disparar a arma e o tiro atingiu o assoalho de madeira, enquanto ele corria em direção a janela gritando, à plenos pulmões, para o rádio que retirou da cintura.

– Agora! Agora!

Camila alcançou-o antes que conseguisse saltar a janela, segurando-o pela camisa. Ele se voltou para ela e atingiu um soco em seu rosto. Ela deu um passo atrás, um pouco surpresa e tonta, mas voltou a avançar em direção a ele no segundo seguinte. Rafael tentou acertar outro soco no ombro ferido dela, mas a guerrilheira foi mais rápida e se esquivou ao mesmo tempo em que lhe passava uma rasteira. O traidor caiu com um baque surdo e ela chutou seu abdômen com toda a força que seu ódio lhe permitia.

Enquanto ele se contorcia no chão, tentando recuperar um pouco do ar que os chutes de Camila haviam lhe tirado, Eva se aproximou tranquilamente e arrancou de suas mãos o aparelho de rádio com um sorriso triunfante.

– Acho que seus amigos não poderão ajudá-lo. Eles estão, digamos, no sono eterno.

O General se aproximou calmamente deles, nos olhos uma expressão desconhecida até mesmo por sua filha. Naquele instante, Eva soube que não precisaria sujar suas mãos com Rafael, seu tio havia acabado de se tornar o seu pior pesadelo.

***

O dia estava amanhecendo.

Eva e Camila se encontravam na varanda do casarão. As duas equipes de soldados aliados haviam recolhido os corpos dos soldados leais ao governo e partido um pouco antes do amanhecer com ordens de que trouxessem o local exato da desova dos corpos. Não seriam como o exército de Cortez, não deixariam mães e viúvas sem corpos para velar.

Lado a lado, sentadas no degrau da escadaria que levava até a varanda, Eva admirava a beleza de Camila mesmo com a maior parte do rosto encoberto por uma pintura militar escura. Sentia-se estupida por ter acreditado que aquela mulher sem igual se deixaria enganar pelas mentiras de Rafael.

– Desculpe – pediu baixinho e Camila aprisionou sua mão entre as suas. – Tive tanto medo de perder você que acreditei que seria capaz de se deixar enganar e manipular pelo canalha do Rafael.

– Minha mente poderia se deixar enganar, mas o meu coração jamais se permitiria cegar pelas mentiras.

– Mesmo assim, me perdoe por ser uma idiota.

Camila sorriu.

– Você é mesmo uma idiota, mas é a idiota que amo!

Eva sentiu-se novamente uma criança a admirar o brinquedo tão desejado. O ar frio da manhã se insinuando por seus pulmões, preenchendo seu ser com uma sensação de tranquilidade e liberdade. Camila era a sua vida, a dona do seu mundo. Se a tivesse perdido para as mentiras, a única coisa que ocuparia seu coração seria o ódio e, quando sua vingança estivesse completa, não haveria mais razão para continuar vivendo. A mulher que era, naquele instante, jamais existiria e ela tremeu ante o pensamento.

Camila afastou uma mecha dos seus cabelos castanhos para tomar-lhe os lábios em um beijo tão terno e carregado de amor que, por um segundo, Eva desejou morrer daquele jeito, nos braços dela.

– Poderia morrer agora – Camila falou como se tivesse lido os pensamentos dela.

– Se morrer não poderá desfrutar da companhia dessa pessoa linda, encantadora e maravilhosa que sou eu! – Eva brincou recebendo um beliscão no braço.

– Não conhecia esse teu “lado palhaço e convencido” de ser.

Eva riu.

– Você causa esse efeito em mim. Acha que está me fazendo mal? Poderíamos nos afastar se quiser… – começou a desenroscar o braço de Camila do seu que prontamente a impediu.

– Jamais! Estou adorando conhecer esse teu lado.

Trocaram um beijo leve, quase um roçar de lábios, mas um pigarrear as fez se afastarem um pouco, o General as observava recostado à porta. Havia um pouco de sangue em sua roupa, mas elas não fizeram qualquer comentário, nem ousariam fazer já que se fazia desnecessário, ainda mais porque todos que estavam presentes naquela casa se sentiram aliviados quando os gritos de Rafael cessaram, uma hora antes.

Como o olhar de Silas havia prometido, o rapaz pagou por todo o mal que causara. Descreveu, em detalhes, tudo que já havia feito para atrapalhar e espionar as FL e qual era sua verdadeira missão, além de revelar o nome do aliado que perseguiu Eva na floresta após sua fuga. Tratava-se de um soldado que havia ingressado havia poucos meses nas FL e ainda não tinha conseguido se estabilizar em um posto de maior confiança.

A par dessas informações, o General deliberou que seria necessário transferir o acampamento para outro local e decidiu ordenar que o mesmo fosse feito em todos os outros acampamentos rebeldes do arquipélago.

– Deve haver outros espiões nos outros acampamentos – pontuou Antônio durante a conversa que tiveram meia hora antes.

– É provável – concordou Silas.

– E o que faremos se não podemos mais confiar em nossos aliados?

– Pietro se encarregará disso – afirmou Eva.

– Como assim? – perguntou o tio curioso e ela lembrou que ele nada sabia sobre o que andou fazendo nos últimos dias.

– Ele é o novo chefe do departamento de Inteligência – informou.

Silas deixou um sorriso de canto de boca surgir.

– Vejo que não perdeu tempo – observou.

– Realmente, não tínhamos tempo a perder e precisávamos de alguém de confiança para proteger nossos amigos.

– Como conseguiram? – Camila questionou, tentando evitar que seu olhar retornasse para a porta da sala em que seu pai e Antônio estiveram interrogando Rafael. Seu estômago revirava ao recordar os gritos dele. Sabia que o pai era um homem bom que jamais se permitiu fazer algo do tipo, mas Rafael passou dos limites ao mexer com a família dele; não era inocente ao ponto de ignorar os horrores que se passavam em uma guerra, mas havia ficado triste e profundamente incomodada com o que havia se passado naquela sala.

Antônio deu um sorriso sabichão e acendeu um charuto.

– Pietro é muito bem qualificado para assumir a função, mas tive de usar um pouco da minha influência para colocá-lo nesse cargo – explicou.

– Não é perigoso para você? Afinal, foi você que ajudou a colocar Eva na Agência – questionou Silas ao amigo.

Antônio deixou a fumaça do charuto escapar entre os lábios vagarosamente, enquanto se recostava à parede às suas costas.

– Com Eva foi diferente. Não atuei diretamente, ela fez a maior parte do trabalho com a sua competência; apenas fiz algumas sugestões e comentários às pessoas certas nas ocasiões certas.

Silas inclinou a cabeça em assentimento e mirou a sobrinha.

– Não estamos mais desamparados – afirmou Eva. – Contudo, teremos de redobrar os cuidados. Agora que minha traição foi descoberta, ele estará debaixo dos holofotes.

– Ele precisa se firmar na posição – concluiu Antônio.

Eva notou que Camila evitava olhar para a porta entreaberta da sala de onde Silas e Antônio vieram e enlaçou sua cintura carinhosamente tentando lhe passar calma, mas ela também não se sentia bem com o que havia acontecido lá dentro. Embora fosse o seu desejo fazer Rafael pagar por seus pecados, sabia que jamais teria estomago para tanto. Odiava ter que ir às salas de interrogatório da Agência, pois sempre acabava ouvindo ou vendo coisas que perturbavam seu sono à noite.

– Teremos de abrir mão de algumas coisas para isso – revelou, voltando sua atenção para a conversa.

– O que tem em mente? – questionou o tio.

Ela deixou o ar escapar dos pulmões lentamente. O cansaço de dias insone e preocupada começava a domina-la e Camila se apertou mais a ela sob um olhar curioso de Antônio.

– Ele precisa se mostrar produtivo e firme. Terá que ter mão de ferro. Creio que teremos de abrir mão de alguns esconderijos e armamentos para que ele consiga mostrar serviço.

Silas coçou o queixo, enquanto ponderava sobre o que sugeriu. Não tinham muitas armas, o alimento que conseguiam era escasso, apesar das plantações no meio da selva, pois a maior parte do terreno era impróprio para o plantio. Necessitavam dos esconderijos para armazenar provisões e abrir mão deles seria um grande golpe.

– O que temos é pouco e não podemos nos dar ao luxo de perder – afirmou.

Eva o mirou séria.

– São apenas lugares, podemos encontrar outros, já as pessoas não são substituíveis – falou sombria e encerrou a discussão. O tio acataria sua sugestão e Pietro se firmaria na Agência para dar continuidade ao seu trabalho.

Silas se aproximou das duas mulheres, os dois maiores tesouros de sua vida além da liberdade que tanto buscava para seu país e sentou em um degrau um pouco mais abaixo do que elas estavam.

– Tudo que aconteceu nesses últimos dias, a captura de Camila, seu resgate, o plano de… – ele fez uma pausa e passou a mão pelos cabelos grossos e grisalhos nas têmporas. – Enfim, tudo isso que se passou me fez perceber o quanto vocês são importantes para mim e como fui idiota ao ter aquela reação na cabana quando descobri este romance.

– Tio…

Ele ergueu a mão para impedi-la de continuar.

– O que quero dizer é que só desejo a felicidade das minhas filhas e se vocês se amam não serei eu quem irá se opor a essa união.

– Pai…

Ele sorriu e Camila deu-se conta de que só havia visto um sorriso como aquele em seus lábios quando era criança.

– Amo vocês – falou emocionado e ergueu-se para voltar a entrar na casa, mas Eva o impediu ficando de pé e puxando-o para um abraço apertado no qual Camila também quis participar. Ambas sabiam o quanto era difícil para aquele homem sem igual falar o quanto as amava sem parecer um fraco ou sentimental.

O silêncio reinou, enquanto elas se mantiveram abraçadas vendo o sol ascender ao céu e a fazenda ganhar vida com o vai e vem dos poucos funcionários que ainda trabalhavam por lá.

– E agora? – Camila fez a pergunta que estava presa em sua garganta já havia algum tempo.

– Agora continuaremos a lutar, mas desta vez, juntas. Meu disfarce foi descoberto e, confesso, estou surpresa por ter durado tanto tempo sem que isso acontecesse. Me acostumei àquela vida a tal ponto que cheguei a me questionar, inúmeras vezes, se desejava realmente o fim dessa guerra porque não fazia idéia de quem seria após isso, mas descobri ao seu lado que existe outra Eva e ela só quer paz e tranqüilidade para poder te amar do jeito que sempre sonhou e você merece.

Camila lhe sapecou um beijo rápido, estava muito emocionada. Finalmente, Eva estaria ao seu lado e o que viesse a seguir enfrentariam juntas.

As mãos se uniram, assim como os lábios no que seria apenas o primeiro beijo de uma nova etapa de suas vidas.

***FIM***



Notas:

Não feche a janela ainda. Temos epílogo! 😉




O que achou deste história?

Deixe uma resposta

© 2015- 2021 Copyright Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a expressa autorização do autor.