– Filho de uma puta! – Antônio gritou se colocando de pé.
O charuto que segurava foi esmagado, tamanha era sua raiva e ele nem se deu ao trabalho de recolher os detritos do mesmo que se espalharam pelo chão.
– Todo esse tempo… – sua voz tremia de puro ódio.
– Calma, pai! – Pietro se aproximou dele, temendo que passasse mal, afinal, não era mais tão jovem, embora sua aparência e porte físico fosse de um homem na casa dos cinquenta anos, era bem mais velho.
Olhou para o filho durante alguns segundos e depois para Eva. Ela observava a cena em silêncio, seu rosto machucado ficando cada vez mais sombrio. Voltou para o sofá que havia ocupado durante todo o relato dela, mas antes, se serviu de uma dose de conhaque e acendeu outro charuto.
– Desculpe. Por favor continue – pediu a ela.
– Não o culpo pela reação que teve, a minha foi semelhante, com a diferença de que estava amarrada e amordaçada.
Eva olhava calmamente para Antônio, deixando que seu sangue frio dominasse seu corpo e suas atitudes sem aplacar seu ódio pelo traidor Rafael.
“A cabeça de Eva latejava fortemente.
Por alguns instantes, não soube o que aconteceu, então abriu os olhos. Rafael estava sentado tranquilamente diante de uma fogueira. Vê-lo a arrancou do torpor em que se encontrava e lembrou-se da forma como ele riu antes de ataca-la.
Respirou pesadamente, engolindo a vontade de gritar todos os insultos e palavrões que conhecia. Observou por alguns instantes e voltou a fechar os olhos. Ele estava acompanhado por duas pessoas. Não conseguiu distinguir quem era o outro homem, mas reconheceu a voz de Marina dizer em tom de deboche:
– Então, a Dona Mandachuva ali é sobrinha do velho?
– Sim.
– Não poderia ser mais perfeito – disse ela, deixando um assovio baixo escapar.
– Pela primeira vez, temos algo realmente concreto para Cortez – o segundo rapaz falou, deixando sua voz grave agredir os ouvidos de Eva.
– Infelizmente, a captura de Camila foi uma surpresa e soubemos disso praticamente na hora de resgatá-la. Se tivéssemos sido informados antes, teríamos não só a filha de Herrera, mas também sua sobrinha, a principal responsável por proteger os aliados do General.
Eva abriu um pouco os olhos e viu que Marina concordou com um balançar de cabeça e um sorriso.
– Você tem razão, mas mais vale um pássaro na mão do que dois voando. E quando entregarmos essa daí para Cortez, saberemos quem são todos os aliados de Herrera. Tudo estará acabado, não sobrará ninguém que possa tomar o lugar dele na luta contra Cortez, essa guerra chegará ao fim e poderemos sair dessa mata imunda como heróis – disse ela.
Rafael riu alto.
– Não vai levar mais que alguns meses, foi o que Cortez me disse no dia em que me enviou para esta selva maldita. Estou aqui há cinco anos, tive de virar bicho nesse mato para conseguir o respeito e a confiança de Herrera, mesmo assim, ele jamais me deixou saber quem o ajudava a esconder seus aliados na capital, nem como conseguia armas do exército. É tão difícil sairmos daqui em alguma missão que nos leve próximos de acampamentos militares que, durante todo esse tempo, poucas foram as informações que consegui repassar para o meu superior – queixou-se ele.
Após um breve momento de silêncio, Marina perguntou:
– Como fará para entregá-la ao exército sem que ninguém desconfie do seu desaparecimento do acampamento? Estamos longe da fronteira, qualquer escapada levaria muito tempo e seria considerada suspeita.
Rafael tomou um gole prolongado da bebida que havia retirado de uma mochila que estava jogada ao seu lado antes de responder.
– Amanhã sentirão falta dela e enviarão alguém para procurá-la, se o General não me enviar de imediato, irei me oferecer para a missão. Então, virei até aqui pega-la e a levarei para o acampamento do exército mais próximo.
Eva vislumbrou Marina concordar com outro inclinar de cabeça e fechou os olhos rapidamente percebendo que ela se aproximava.
– Acho que você bateu nela forte demais. Ainda não acordou e está sangrando muito – observou, enquanto abaixava-se ao seu lado e examinava o local em que Rafael a atingira.
O toque gelado de seus dedos, fizeram o estômago de Eva se revirar. O ódio a consumia, mas ainda não era o momento de deixa-lo sair. Precisava de uma estratégia de fuga.
Ouviu a terra arranhando o solado das botas de Rafael quando ele se aproximou também. Ria baixinho, aparentemente, um pouco ébrio.
– Não se preocupe, é melhor que continue assim. Acordada nos daria muito trabalho. Não é à toa que o sangue de Herrera corre em suas veias.
Marina se afastou, perguntando:
– E se ela morrer?
Ele soltou um suspiro, estava agachado ao lado de Eva, e ela pôde sentir seu hálito com aroma etílico. Novamente, seu estômago se contraiu de ódio e asco.
– Será uma pena. É a mulher mais interessante que já conheci. Bela e mortal, como uma serpente.
Marina riu com escárnio.
– Está apaixonadinho?
– Apaixonado, não. Apenas sei admirar o que é belo e de qualidade. Esta mulher é uma inimiga de valor e terei muito prazer em arrancar tudo o que ela sabe.
Eva ouviu a risada clara e cristalina de Marina se espalhar pelo ar.
– Sei. Vi bem seus olhares compridos para ela.
– Apenas observando e avaliando o inimigo – justificou ele se erguendo e retornando para junto da fogueira.
Ela se juntou a ele e Eva pôde abrir os olhos novamente.
– Se prefere chamar assim – Marina o provocou com um sorriso malicioso. – Esse seu perfume de Dom Juan deve estar vencido, pois tudo que conseguiu dela foi um soco e um olhar que racharia uma montanha.
Ele atiçou a fogueira com um galho e Eva percebeu o quanto aquela conversa o estava irritando.
– Não nego que é muito atraente, mas ela não se encantaria por mim, mesmo que fosse um príncipe. Você teria mais chances de conseguir sua atenção que eu. A princesinha ali, gosta de um bom rabo de saia.
Marina riu gostosamente e ele se retirou dizendo que voltaria mais tarde para busca-la e levar para o acampamento militar mais próximo.
– E o que aconteceu depois disso? Como conseguiu escapar? – Pietro perguntava ansioso por uma resposta, já seu pai aguardava calado e trincando os dentes, cheio de ódio.
Ela pediu-lhe outro cigarro e atirou o que restava do outro no cinzeiro.
– Algumas pessoas não deveriam ser tão confiantes – respondeu.
Incapaz de continuar fingindo estar desacordada, Eva abriu os olhos. A cabeça latejava muito e se encontrava tonta. Forçou-se a sentar o que foi um pouco difícil com as mãos atadas nas costas.
Notando-a acordada, Marina se aproximou com um sorriso no rosto. O outro rapaz havia acompanhado Rafael, estavam sozinhas.
– A bela adormecida acordou.
Eva se limitou a lhe dirigir um olhar cheio de ódio.
– Fiquei sabendo que é sobrinha do General. Imagine quando Cortez descobrir isso – acocorou-se ao seu lado tocando seus cabelos que começavam a ficar grossos com o sangue seco.
Ela escorregou a mão pela face de Eva, que virou o rosto para escapar do seu contato. Marina a forçou a voltar a olhar para ela, havia se aproximado mais de Eva com sorriso maldoso.
– Não gostei de você desde o momento em que a vi, mas não posso negar que, assim como Rafael, a admiro. Passar tantos anos debaixo dos bigodes de Cortez é realmente admirável…
Eva respirou fundo. O ódio revirava seu estômago, estava cansada e tonta graças ao sangue que vertia, agora mais lentamente, do corte em sua cabeça. Sabia que não teria outra chance, estava muito machucada para se arriscar com Rafael. Reuniu forças e deu uma forte cabeçada em Marina. A dor explodiu em sua cabeça, mas forçou-se a se colocar de pé.
Marina tentou segurar suas pernas, mas ela foi mais rápida dando um passo para o lado e usando toda a sua força para chutá-la na altura das costelas e ouviu os ossos se quebrando junto com o grito de dor que escapou da traidora.
Eva não perdeu tempo, embora estivesse debilitada e tonta, não hesitou em continuar chutando Marina. A mulher se encolhia a cada nova pancada e, provavelmente, a teria matado se não tivesse ouvido um clique de uma arma sendo engatilhada. Voltou-se no exato instante em que o outro sujeito, que havia saído com Rafael, atirou. Ela jogou-se para o lado, indo se refugiar atrás de uma árvore.
O homem disparou algumas vezes, mas ela se aproveitou que estava próximo da mata mais densa e se embrenhou na mesma, correndo por sua vida e pela daqueles a quem amava.
– Passei parte da noite tentando sair da mata e, pelo início da manhã, encontrei uma estrada, mas escorreguei e bati com a cabeça, acho. Só sei que quando acordei, estava em uma ambulância algumas horas daqui.
– Então, simplesmente fugiu?
– Sim.
– Mas é provável que não soubessem de nada sobre você – Pietro atalhou.
– É uma possibilidade mínima, mas eu não estava nenhum um pouco a fim de descobrir. Além disso, precisava avisá-los imediatamente do que estava se passando. Tio Silas precisa ser informado – explicou deixando um olhar sombrio cair sobre eles.
– Compreendo, mas todos estão desprotegidos agora. Era o seu trabalho que mantinha a todos que simpatizavam ou trabalhavam a favor das FL a salvo.
A carranca de Antônio tornava o ar do ambiente ainda mais carregado e, durante os minutos que se seguiram, o silêncio reinou entre eles até que Eva deu um meio sorriso atraindo a atenção dos outros dois.
– Irão investigar todos os seus arquivos – disse ele.
– Com certeza.
– A maquiagem que fez neles será descoberta, muita gente boa será presa ou pior.
– Não exatamente. Os arquivos originais não estão na minha sala. Não encontrarão nada de que possam desconfiar, no momento. Mas é certo de que irão investigar todo o meu trabalho. Precisamos de alguém que possa assumir a minha função e seja livre de qualquer suspeita.
– Não temos ninguém assim – queixou-se Antônio.
Ela sorriu mais uma vez, como se soubesse de algo que eles não sabiam.
– Qual a razão desse sorriso? – Antônio inquiriu.
Ela balançou os ombros, soprando a fumaça do cigarro.
– Como anda o seu nível de influência no governo? – perguntou, o sorriso se tornando cada vez mais acentuado.
Ele coçou o queixo, desconfiado. Eva era uma mulher de beleza incomparável e de mente altamente engenhosa, fria e calculista. Na realidade, nem mesmo seu tio era tão frio a esse ponto. Quando ela pediu para ajudar trabalhando secretamente a favor das forças de libertação, ele fora totalmente contra, no entanto, resolvera confiar no julgamento do amigo quando este lhe pediu que não se opusesse a participação da sobrinha e não se arrependeu.
Eva demonstrou, ao longo dos anos, que era capaz e que ainda poderia fazer muito mais se tivesse a oportunidade certa. Depois de tanto tempo funcionando como elo entre Silas e ela, Antônio já estava acostumado com seus “repentes” que sempre vinham acompanhados de meios sorrisos indicando que ela havia encontrado a solução para o problema.
Ele pigarreou antes de responder:
– Digamos que é um bom nível, mas vai depender do que você tem em mente.
– Não só do que tenho em mente, mas também do quanto vocês estão dispostos a arriscar para dar continuidade a esse trabalho.
***
Rafael olhou para Marina que agonizava no chão.
– Avisei que ela era perigosa como uma serpente – falou ajoelhando-se ao lado dela.
Seu belo rosto estava muito machucado e ela respirava com grande dificuldade.
– Ela fez um estrago em você – se voltou para mirar o companheiro que os observava em silêncio. – E você a deixou escapar estando armado e ela com as mãos atadas.
O rapaz fez uma careta e guardou a arma que segurava na cintura. Estava suado e cheio de arranhões, pois havia passado o resto da noite à procura de Eva na selva, mas esta o tinha despistado com perfeição e ele retornou para junto de Marina onde encontrou Rafael.
– Como você disse, ela é escorregadia como uma serpente – respondeu com sua voz grave.
Rafael voltou a mirar Marina. Não havia como explicar aquilo para o General.
– O que pretende fazer?
– Volte para o acampamento, eu cuido do resto por aqui – ordenou.
O rapaz o fitou sem se mover por um longo minuto. Sabia o que iria acontecer, mesmo assim, não sentia pena de Marina. Sem olhar para trás, entrou na mata e seguiu rumo ao acampamento.
Uma hora mais tarde, Rafael adentrou na cabana do General Herrera de forma intempestiva. Tinha vários arranhões e hematomas pelo rosto e nos braços trazia o corpo sem vida de Marina.
O General olhou horrorizado para aquela cena e Camila, que estava sentada ao seu lado, ergueu-se de supetão e correu ao seu encontro.
– O que houve?
Ele depositou o corpo inerte sobre a mesa e sentou-se pondo as mãos sobre o rosto de forma dramática.
– Ela! Veja mo que ela fez! – mostrou os braços cheios de arranhões, apontou para o próprio rosto, um arranhão lhe cortava a face. Apontou para o corpo de Marina e voltou a esconder a face entre as mãos. – Ela a matou!
– Ela?
– Ela! Vejam o que ela fez! Vejam! – parecia um louco. – Pobre Marina!
– Ela quem? Quem fez isso com Marina?
Ele se empertigou na cadeira, dizendo:
– Eva.
Camila olhou-o atônita. Depois sorriu com convicção, enquanto dizia:
– Eva não faria isso! Ela não faria.
O General observava tudo em silêncio, olhava atentamente para o corpo de Marina, mas não se conteve ao ouvir Rafael acusar sua sobrinha.
– Quero saber como isso aconteceu – exigiu, a voz em um tom perigosamente baixo.
Esforçando-se para parecer convincente, Rafael contou como ele e Marina haviam saído à procura de Eva na mata e depois de algumas horas a encontraram acompanhada de um oficial do exército. Haviam se aproximado cautelosamente e, sem serem vistos, ouviram Eva confabular com o inimigo e dizer-lhe que em breve entregaria o General Herrera e sua filha para Cortez e toda aquela guerra chegaria ao fim. Surpresos, eles resolveram captura-los e, no meio do combate que se seguiu, Eva assassinou Marina e fugiu com o militar.
Rafael olhava desolado para o chão.
– Nunca pensei que ela pudesse fazer uma coisa dessas, afinal ela nos ajudou! – ele não parava de repetir. – Mas eu a ouvi, juro. Ela dizia que em breve vocês estariam presos e…
– Está tudo bem, rapaz. Vá descansar – Silas o interrompeu.
Dando uma leve batidinha em seu ombro, pediu que ele se retirasse. Seu rosto não exibia qualquer expressão que evidenciasse o que estava pensando e, antes de sair, Rafael se voltou para perguntar:
– O que fará em relação a isso?
O General olhou pesaroso para o chão.
– Confesso que sempre esperei isso de Eva.
Camila o olhou, horrorizada.
– Pai, como pode?
Ele ergueu uma mão para impedi-la de continuar.
– Depois de tantos anos trabalhando com o governo, sempre achei que havia uma possibilidade de uma traição por parte dela… – deixou um suspiro longo e cansado escapar.
– Mas ela é sua sobrinha! Você a criou! – Camila argumentou de coração partido.
– Não é mais! – ele gritou esmurrando a mesa e a fazendo recuar um passo. Jamais o vira com tanto ódio em seu olhar.
Rafael partiu para sua cabana e, tão logo virou as costas e se viu longe do alcance dos olhos do General, deixou um sorriso vitorioso escapar por entre os lábios. Um de seus problemas estava resolvido, pena que tivera de matar Marina para resolvê-lo.
O General voltou a se aproximar da mesa, olhando para o corpo inerte fixamente e quando seus olhos cruzaram com os de Camila, apesar de toda a tristeza e decepção que lhe corroía o coração, ele sabia o que deveria fazer.